domingo, 25 de março de 2012

CAPÍTULO XXIII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XXIII


    A voz de Luzia elevava-se trespassando as paredes numa exaltação improvável, enquanto Maria choramingava palavras soltas. Ana apressou-se a entrar em casa seguida por George, Tina e John.
- Mas o que é que se passa aqui? – Ana lamentou encontrar Luzia com os olhos azuis completamente opacos de fúria e Maria encostada num canto com as lágrimas gordas a lhe rolarem pela cara. A cozinha com o chão de terra batida parecia mais escura do que de costume. O braço erguido de Luzia denunciava bem a sua intenção e Ana num instinto protector colocou-se entre a mão e a irmã mais nova.
- Então? Vão dizer-me o que se passa ou não?
- Não sei o que fazer com essa rapariga! – Luzia soltou as palavras, agora sentindo mais a amargura do que a raiva inicial, e deixou-se cair num dos bancos de madeira. Tina aproximou-se dela e massajou-lhe amigavelmente os ombros, como se este acto atenuasse a tensão.
- Não és tu que tens de fazer alguma coisa de mim! Sou eu! Mas ela não percebe isso, Ana! – Agora que Mari via a mãe sentada com os ombros descaídos sentia-se mais incentivada a marcar a sua posição. – Estou farta de que ela seja esta mãe-galinha…
- Cuidado com as palavras Maria… - Ana queria voltar a restabelecer a ordem naquela discussão.
- É verdade… Ela quer obrigar-me a calçar essas albarcas horrorosas… - Os olhos de Ana e de Tina dirigiram-se automaticamente para as albarcas.
- Realmente não são nada bonitas! Mas porque é que não podes continuar com os teus sapatinhos de camurça? – Quando Tina percebeu que o tema da discussão era tão ridículo como o próprio par de albarcas quase sorriu de alívio.
- Porque a dona Luzia quer que eu vá trabalhar para a terra… Quer que eu pegue num ancinho e vá revolver a porcaria da terra e que fique com calos horrorosos como os que ela tem… - Maria sentia-se explodir de indignação e Ana percebeu exactamente o que se estava a passar.
- Oh! Mas isso é horrível! – Tina deixou escapar a sua opinião sem perceber bem o efeito da mesma
- Maria! Não fales com a mãe dessa forma… Tu sabias muito bem que este momento chegaria! É altura de te portares como adulta que és…
- Mas eu ainda sou muito nova para trabalhar na terra! – Maria começou novamente a choramingar tentando amolecer o coração da mãe como sempre fizera.
- Deixa-te disso, Maria! Tu és tão adulta para umas coisas… E só és criança exactamente quando te convém… Agora começa a falar com a mãe… - Ana queria que a irmã falasse com a mãe de mente aberta, que lhe contasse os seus projectos para o futuro, que lhe mostrasse o seu trabalho…
- Não tenho nada para dizer a essa senhora que me quer escravizar numa vida de trabalhos forçados.
- Maria Ferreira!... – Ana pronunciou o nome da irmã mais nova com uma acentuação que fazia adivinhar sarilhos se ela continuasse a armar-se em esperta. Então a sua actuação passou das lágrimas acusadoras a uma voz doce e inocente enquanto batia as suas longas pestanas tentando seduzir a mãe à sua causa.
- Oh mãezinha! Desculpa se te consumi! – Luzia amava as filhas acima de qualquer suspeita e o facto de quase ter batido na sua pequenota estava a pesar-lhe na consciência num aperto quase insuportável. Ela era incapaz de provocar qualquer tipo de sofrimento nas suas meninas e ali, pressionada pela atitude desafiadora de Maria quase perdeu a cabeça. Mas ela preocupava-se com o futuro das filhas, e a sua Maria tinha manias de princesa e não sabia do que viveria a filha quando a infância desse lugar ás obrigações. – Eu sei que está preocupada com o meu futuro. – Luzia subiu o olhar até ao da filha e reparou que o ar de desafio se tinha desvanecido.
- Claro que estou preocupada com o teu futuro! Nós somos uma família humilde que vive do trabalho da terra… Nunca vos faltou nada Maria. Eu e o teu pai sempre vos demos tudo o que podíamos… Quantas crianças, tu viste a irem para a escola todos os dias calçados? Quantas, Maria? Tu e as tuas irmãs nunca andaram descalças, nem no Verão nem no Inverno… Mas às vezes eu penso que errei… Dei-te a parecer que podias ter uma vida que não podes Maria! Tinhas a tua mala da escola muito bonita, feita em madeira, e os teus sapatinhos de camurça, e as tuas fitas de seda que apanhavam as tuas tranças perfeitas… e de onde é que tu pensas que vêm esses privilégios que eu e o teu pai te demos? Vem do nosso trabalho na terra… Tenho calos nas mão com muito orgulho, porque enquanto eu tinha as rachas das mãos entranhadas e as unhas encardidas de terra húmida, as minhas meninas frequentavam a escola com uma dignidade que era dada a poucos…
- Eu sei disso mãe! – Maria ajoelhou-se aos pés da mãe e afagou-lhe as mãos ásperas e escuras. – E eu tenho muito orgulho nas tuas mãos mãezinha. Eu já enho doze anos e sei que tenho de começar a trabalhar… Mas eu não quero o trabalho da terra.
- Mas… - Luzia soltou as mãos num desespero, que demonstrava a sua frustração na falta de entendimento da filha.
- Deixe-me falar tudo o que tenho aqui entalado! – Maria voltou a concentrar-se nas mãos da mãe, entalando-as entre as suas. Eu tenho dinheiro mãe.
- Mas como? Que conversa é essa?
- Deixe-a falar mãe! – Ana interrompeu a progenitora de forma a que Maria não perdesse a coragem.
- Como a mãe sabe eu vou fazendo alguns chapéus que me encomendam.
- Mas não podes viver disso!
- Porque não? Eu tenho já bastante dinheiro guardado! E é isto que eu quero fazer, mãe… Tem de perceber.
- Esta é uma terra pequena. Agora as pessoas acham-te piada, porque os teus chapéus são uma novidade e tu és novinha. As pessoas olham-te com doçura enquanto fores criança, mas quando te tornares adulta ninguém te achará graça.
- A mãe tem razão! – Agora Ana deixou cair o queixo de espanto perante aquelas palavras da irmã. – E é por isso que também estou a aprender costura. Eu quero fazer vestidos de noiva. Todos os anos há casamentos, e é preciso o vestido de noiva e roupa para a mãe da noiva e avós e tia e madrinha e vou ter montes de trabalho e a mãe vai orgulhar-se de mim sempre que houver um casamento nesta ilha.
    Luzia abriu os seus braços experientes à filha mais nova e deixou-se levar um pouco pelos seus sonhos. Sabia que eram exactamente isso… Sonhos… E os sonhos não alimentam o corpo, mas alimentam a alma e alimentam o início de novas possibilidades. E por agora isso basta.
    O abraço entre as três mulheres emocionou Tina que se desfez em lágrimas juntando-se àquele abraço que não lhe pertencia. George focou a sua sensibilidade em Ana e mais do que apreciá-la, ele admirou-a com uma convicção que lhe aumentou o coração de tal maneira que parecia não lhe caber no peito. Ele desejava-a na sua vida. Não por caridade, não por um capricho, mas porque queria uma família real. Uma família que lhe transmitisse aquilo que ele sentia ali naquela cozinha antiga e rural, onde a cumplicidade e o cuidado familiar surgia sem esforço nem imposição.
    George acolheu Ana na sua casa, porque era incapaz ver qualquer mulher em tal estado de vulnerabilidade. Aquele cenário de ver uma mulher grávida caída no desespero de um banco de jardim rendida às partidas da vida e dependente de caridades alheias, transportaram-no para uma infância em que teve o privilégio e a angústia de viver com uma mãe que ele amava acima de qualquer outra coisa que lhe pudesse ocorrer. Emily era recordada por George como uma mãe carinhosa que lhe sorria com facilidade e o olhava com uma adoração que ainda lhe provocava conforto. Os gestos simples, os beijos frequentes, as festas no topo da cabeça, as palmadinhas carinhosas que ela lhe dava no rabo e o sorriso iluminado que acompanhavam estes gestos desapareciam na presença de outras pessoas. Quando George era criança a mãe fechava o rosto para todos os outros seres humanos. Era sempre séria e até um pouco triste. Caminhava na rua com o olhar sempre baixo, não cumprimentando ninguém, nem os próprios vizinhos que pareciam tão unidos entre si. As outras mulheres do bairro juntavam-se em todas as ocasiões especiais, mas George não se recorda de terem alguma vez convidado a mãe a juntar-se a elas. Os aniversários das outras crianças juntavam em grandes festas todos os habitantes do bairro, e George sentava-se na beira do passeio a ver os miúdos correrem de um lado para o outro emitindo gritinhos de felicidade sem que o convidassem para fazer parte daquele mundo agitado e animado que ele desejava tanto. Quando fez dez anos pediu à mãe para convidar as crianças da vizinhança para a sua festa de aniversário e ainda se lembra das lágrimas que se formaram instantaneamente no rosto pálido da mãe face àquele pedido. Percebeu imediatamente que a resposta seria negativa e apesar de lhe ter provocado uma tristeza pesada que o angustiava a uma brincadeira solitária naquele dia, fingiu não se importar. Com o passar dos anos, George assistiu ao definhar do corpo da mãe. De uma mulher alta e com um pouco de excesso de peso, passou a ser uma mulher de trinta e cinco anos frágil e demasiado magra. Os comprimidos diários pareciam já não aliviar-lhe as dores e o corpo murchava a um ritmo que o assustava. Aos catorze anos, George foi forçado a tomar as rédeas da casa face à incapacidade da mãe. Ele não percebia aquela doença e a mãe recusava-se a falar sobre esse assunto. No supermercado sentia que os olhares a vigiavam com desconfiança, mantendo-a sempre à distância. Um episódio em particular marcou-o. Na saída do supermercado do bairro, a mãe teve uma tontura e cambaleou, tropeçando na vizinha da casa ao lado. Tratava-se de mulher alta e apresentava-se irrepreensivelmente bem vestida com um penteado muito elaborado que parecia praticar equilibrismo no cimo do seu cocuruto. George ainda sentiu o estomago revolver-se quando revia na sua memória os olhos da vizinha no momento exacto em que a mãe tropeçou nela. A senhora distinta afastou-a com um empurrão suficientemente forte para aterrar o corpo frágil de Emily no chão. A voz histérica da mulher ainda lhe ecoava na cabeça. “Never touch me again. It should be not allowed to people like you walk in the street… You should not walk in the same place of decent people” (“Nunca mais me toques. Não deveria ser permitido que pessoas como tu andassem por aí… Não devias andar no meio das pessoas decentes”) e virando-se para George que ajudava a mãe a levantar-se, a ilustre senhora continuou. “Close your mother at home. She has the disease of shame, and good people do not have to see it every day. It seems she likes to show is sin…” (“ Tranca a tua mãe em casa. Ela tem a doença da vergonha e não temos de vê-la todos os dias. Até parece que ela gosta de mostrar o seu pecado…). George não reagiu naquela altura e arrependia-se todos os dias de não ter dado a devida resposta àquela mulher insolente. Era como se não tivesse defendido a mãe. Aquela mulher que sozinha o havia criado e protegido de um mundo que não estava preparado para a diferença. George nunca conheceu o pai que morreu antes do seu nascimento deixando apenas uma pensão miserável e uma doença que era mal entendida. Naquele dia, fora do supermercado do seu bairro, com dezenas de olhos depositados na sua aflição, George percebeu de que mal padecia a mãe. A certeza aterrou-lhe no peito com a ferocidade de uma realidade pesada demais para qualquer ser humano. A mãe tinha HIV… Esta doença mal entendida e associada a pessoas duvidosas consumiu Emily debaixo do olhar preocupado de George que ficou completamente órfão com dezasseis anos. Ainda se lembra do último suspiro da mãe em casa quando lhe disse pela última vez que tinha muito orgulho nele. Naquele fim de tarde de Outono o sol baixava deixando entrar uns raios alaranjados por entre as aberturas da persiana e o rosto da mãe pálido já não se contorcia de dores. Parecia quase serena quando o olhou nos olhos e sorriu pela última vez. “I love you George”…
    No funeral da mãe, George contou apenas com uma tia- avó que ele nem conhecia. A mulher receando levar George para junto dela aproveitou o facto de o marido ser um influente militar e encaminhou o sobrinho para uma escola militar. Sem saber, a senhora proporcionou um futuro àquele sobrinho e fez com que George soubesse entender melhor a palavra ajuda. Devemos estar atentos ao mundo que nos rodeia. É tão fácil estender uma mão. Não precisamos de actos demasiado grandiosos e elaboradamente difíceis para ajudar. A tia proporcionou-lhe sem qualquer tipo de dificuldade uma ajuda preciosa para o seu futuro, apenas porque não lhe virou as costas. Sem este acto demasiado fácil para a tia, a vida actual de George teria sido muito difícil. Este é o verdadeiro sentido da ajuda. Um acto que está ao nosso alcance pode proporcionar ao outro um rumo que lhe era impossível. George praticou um acto que lhe era fácil com Ana e tornou o rumo dela possível. E agora era Ana que lhe estava a proporcionar ajuda, direccionando-o para uma família que ele tanto desejava.

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