domingo, 4 de março de 2012

CAPÍTULO XX - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XX

    O sol aquecia agradavelmente as costas curvadas sobre os canteiros de culturas que eram mimados pelas mão experientes de Ana. O cheiro matinal da terra húmida entranhava-se nas suas narinas que se dilatavam numa ânsia saudosa. Ana cantarolava uma felicidade despreocupada e agradecia intimamente a sua nova vida. Tinha uma família que provara amá-la acima de qualquer constrangimento. Os seus amigos eram leais e não se confundiam com as amizades corriqueiras de ocasião. A lealdade é a melhor das virtudes em qualquer relação. É um acto de entrega pleno e puro, sem requintes de engano ou perversões de abuso. É o garante de beneficiar do melhor de todos os outros sentimentos positivos. É uma tranquilidade para quem é seu merecedor e um privilégio para quem a dedica.
- Ana! Onde é que te meteste mulher? – A voz de Tina soou estridente no interior da casa. Ana largou o ancinho e entrou pela porta traseira sacudindo a terra das mãos.
- Estou na cozinha!
- Ah sua labrega! – Tina contornou a mesa abriu um armário e tirou um frasco de vidro que continha bolachas de manteiga. – Não tens nada para me mostrar?
    Ana ergueu uma sobrancelha duvidosa, como se procurasse uma resposta lógica àquela pergunta.
- Oh! Anda lá! Não faças mais suspense…
- Juro-te que não sei do que estás a falar Tina! – Ana já tinha colocado uma chaleira ao lume e esperava que ela apitasse. Desde o seu primeiro dia naquela casa que se apaixonara pela chaleira que apita quando a água ferve, como se gemesse uma agonia escaldante.
- Ora! Do anel…
    Ana mostrou-se surpresa. Já nem se lembrava do anel.
- Ah! Já sabes que o George me ofereceu um anel?
- Não te faças de tonta e mostra-me o anel. – Ana obedeceu de imediato àquela ordem sem perceber bem o motivo para tanto entusiasmo. Entrou no seu quarto com um excesso de cuidado para não acordar Jewel que descansava de uma noite mal dormida. Pegou na pequena caixa e levou-a até à cozinha contrariada. Não lhe apetecia partilhar aquele anel com Tina. Mas no momento seguinte arrependeu-se deste sentimento egoísta com uma pessoa que se abriu a ela sem escrúpulos ou condições.
- Aqui o tens, mexeriqueira! – Ana atirou-lhe a caixa e dirigiu-se à chaleira que chiava, preparando o chá que acompanhariam as bolachas de manteiga, enquanto Tina emitia exclamações excitada.
    George entrou na cozinha conduzido pelas risadinhas agudas de Tina. Roubou-lhe a bolacha intacta que ela tinha na mão e comeu-a com vontade.
- What’s up? ( O que se passa?) – Tina piscou o olho a Ana de forma incompreensível e retirou-se com um sorriso malandro. George bebeu o chá, levantou-se, contornou a mesa e colocou-se atrás de Ana que lavava a louça com uma mão apoiada na bancada alva. A proximidade provocou-lhe um arrepio e o coração começou a pulsar-lhe nos ouvidos. Não evitou o impulso de pegar numa mecha de cabelo de Ana e enrolá-lo no dedo.
- I´m in love with you! ( Eu estou apaixonado por ti!) – As palavras sussurradas juntou ao pescoço de Ana fizeram com que os seus músculos se retesassem e num impulso de afastar o que quer que fosse que ele lhe provocava nos nervos, Ana afastou-se passando por baixo do seu braço.
- Não tens que lavar nada! Já está tudo lavado, não vês? – Ana pegou num esfregão e começou a esfregar a mesa no lado oposto. George atravessou a cozinha, sentido um certo prazer machista naquele constrangimento que provocava em Ana e voltou a colocar-se atrás dela.
- I want to protect yourself from people like professor Martins… That´s why I want to marry you. (Quero proteger-te de pessoas como o professor Martins… é por isso que vamos casar.) – George enterrou o seu rosto no cabelo de Ana e inalou o cheiro do champô de camomila que já se tornara familiar. – You are so beautiful… ( És tão bonita…)
    Ana virou-se com intenção de voltar a afastar-se, mas os rostos ficaram demasiado perto e os pensamentos entorpeceram-se. George rodeou-lhe a cintura e encostou-a mais a si. Os olhos não se despregaram e as palavras deixaram de fazer sentido. Os lábios encostaram-se timidamente e voltaram a afastar-se apenas o suficiente para George ver a reacção no rosto de Ana e esboçar um sorriso ao ver um brilho de paixão acender-se. Ainda era pequeno, mas George sabia ser paciente, só precisava de um incentivo e acabara de o ter.
- One day you will be completely mine! (Um dia serás apenas minha!) – E pegando no anel que descansava em cima da mesa, George colocou-o no dedo anelar de Ana beijando-o seguidamente.
    Finalmente, os olhos de Ana arregalaram-se de compreensão. Ela saiu daquele estado de dormência e afastou-se.
- Não entendo nada do que estás para aí a dizer! Vou buscar a Jewel e… Ou ela agora está a dormir… mas alguém tem de lavar a roupa que está no cesto. – Ana afastou-se numa atrapalhação de gestos e palavras apreciadas pelo corpo de George que se encostara à bancada a rir desavergonhadamente.
    Ela estava noiva! Agora podia perceber isso. Existem compreensões que ultrapassam as palavras e ela possuía agora essa compreensão. Um homem que ela mal conhecia e que não compreendia, era capaz de a proteger e defender melhor do que o homem que ela amara e a quem se entregara. A vida tem desenvolvimentos misteriosos e convoca-nos a sentimentos confusos e grandiosos quando tudo parece perdido. Ela sentia-se amparada por um estranho. Por um lindo estranho…
    A vida tem estratagemas que se emaranham de tal forma que envolvem a mente dos que sofrem numa maresia de desentendimento, mas quando o emaranhado se desemaranha, tudo parece lógico e natural. E de repente o caos dá lugar ao maravilhoso… Como saberíamos que o maravilhoso é maravilhoso se nunca tivermos visto o caos?
    Ana sentia uma necessidade de rir alto, de exibir a sua felicidade repentina e correu com esta intenção para a casa de Tina. Em frente à porta da amiga, conteve-se ao ímpeto de abrir a porta de rompante e bateu suavemente, esperando o convite para entrar.
- Tina! Estou noiva! – Ana atirou-se aos braços da amiga rindo e chorando ao mesmo tempo.
- Bem! Era essa a revelação que eu esperava à pouco em tua casa! – Tina sentiu-se confusa com aquele estado de histeria da amiga e conduziu-a até ao seu sofá. – Bem agora que estás mais calma, explica-te…
- Eu estou noiva!... – Ana não conseguia dizer mais nada. Esta era a ideia que lhe preenchia a mente como uma esponja que absorve água.
- Sim! Isso, eu já sabia! Por isso é que fui a casa do George para ver o anel… - Tina tentava perceber. – Mas o que mudou desde a minha ida á tua casa para agora?
- Como é que sabias que eu estava noiva?
- Ora! Porque o George contou ao John e ele contou-me a mim… Não estou a perceber o que se passa contigo…
- E soubeste quando?
- Ai Ana! Soube ontem… Não foi ontem que o George te deu o anel e tu aceitaste?
    Ana começou a rir desalmadamente para desespero de Tina, que forçava o seu instinto a encontrar alguma atitude apropriada.
- Eu só soube agora! – Ana leu um brilho de dúvida no olhar de Tina. – E não sei bem o que pensar disso… Acho que preciso de falar em voz alta… Eu estou noiva! – Ana levantou-se e gritou e ficou à espera do efeito que o eco da sua voz provocava nela.
- Mas ele ofereceu-te um anel de noivado… Ontem… - Tina tentava perceber onde se tinha dado o equívoco.
- Sim! E eu aceitei, pensando que era apenas um presente para me compensar da humilhação que o Professor Martins me fez passar no baile. – Tina arregalou os olhos face ao entendimento. Ana aceitou o anel, mas não o pedido que lhe estava intrínseco. – E agora que percebo o que realmente aceitei, sinto-me muito feliz, mas ao mesmo tempo…
- Tens dúvidas, não é querida? – As duas amigas sentaram-se na beira do sofá e encararam-se. A mão de Ana foi encaixada pelas mãos de Tina e a conversa iniciou-se cautelosa.
- Eu sei que és amiga do George, mas eu não tenho mais ninguém com quem falar.
- Eu sou muito amiga do George, mas também sou tua amiga! Diz-me o que te consome.
- Eu sinto-me feliz… Sabes Tina, eu sinto-me defendida. Sinto-me segura e até mesmo muito honrada por merecer este gesto tão nobre de um homem com o George… Vaidosa e reconhecida!... É exactamente assim que me sinto, vaidosa e reconhecida… Sinto um alívio perante a perspectiva de poder caminhar de cabeça erguida novamente. Imagina só o que seria voltar à minha ilha pelo braço de um homem como o George… Ai como aquela gente se iria retroceder para conseguir um cumprimento meu. Tirar este peso que me foi imposto por seres alheios a mim, seria bom… Seria muito bom… Mas é uma forma fácil e cobarde de acabar com o meu problema… Mas principalmente seria injusto para George…
- O George sabe muito bem o que está a fazer!
- Será que sabe?
- Ele está a fazer isto exactamente para te proteger Ana! É evidente que tem sentimentos por ti, mas isto em concreto ele está a fazer para proteger a mulher por quem ele se apaixonou!... E ele sabe quais são os riscos, e assume-os…
- Queria tanto falar com ele. Sentar-me a tomar um chá e apenas falar, trocar palavras, ideias, sentimentos… Como é que um casamento pode resultar se não existe qualquer tipo de comunicação?
- Diz-me Ana, o George é um bom homem?
- É o melhor dos homens, Tina! Ele é cavalheiro e atencioso. Sempre pronto a ajudar-me. E quando ele entra pela porta dentro a casa enche-se de vida. E é trapalhão… Eu sei que ele transmite aquele ar militar muito seguro, mas devias vê-lo no abrigo do lar… é muito trapalhão, tropeça sempre nas quinas das mesas… Nunca levanta a mesa sem partir um copo… - Ana sorria. – E com a Jewel… Ele é tão meigo com a menina, que me dá a sensação que ela fará gato-sapato dele quando for crescida… - As duas mulheres riam agora descontraidamente.
- E não foi preciso comunicação, como tu lhe chamas para conheceres tudo isso do George… - Tina acariciou as costas da mão da amiga e depois fixou-lhe o olhar esperando uma resposta sem palavras. – Agora diz-me Ana, de quanta comunicação precisaste para te deixares enganar pelo Francisco?
    Ana recebeu o sentido daquelas palavras com o mesmo impacto de uma bofetada. Que estranha forma de enfrentar a realidade. As palavras são o meio mais eficaz de criar ilusões. É nos actos que reside a verdade de cada pessoa.

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