sábado, 10 de março de 2012

CAPÍTULO XXI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XXI

    O Barco erguia-se no mar numa imponência arrogante e deslizava sobre aquelas águas calmas de Agosto que o acolhiam na simpatia saltitante de alguns golfinhos. Ana animou-se quando passou ao lado da ilha de S. Jorge que trespassava o mar como uma espada longa, verde e húmida. As fajãs convidavam envergonhadas a um disfrute descarado de tranquilidade e as encostas intimidavam os aventureiros a atreverem-se. Ana sentiu a emoção da antecipação da sua chegada. Sentia tantas saudades dos pais e das irmãs, do cheiro da terra lavrada, de um mergulho no pesqueiro da madeira…
    Quando a ilha do Pico se libertou do longínquo horizonte e se mostrou na sua imensidão, Ana sentiu um aperto no peito. O triângulo era imperfeito visto naquele ângulo, mas igualmente deslumbrante. Os braços de basalto abraçavam o verde húmido de uma terra fértil que subia numa união culminante num único ponto, o cimo da montanha.
- Esta é a nossa terra Jewel! – Ana depositou um leve beijo na cabeça da bebé que forçava o equilíbrio da cabeça de forma e observar com uns olhinhos arregalados. George transpirava de forma heróica o calor de Agosto, mas não se arrependia de ter vestido a sua farda. Sentia um nervosismo infantil e uma vontade adolescente de impressionar os pais de Ana, para além de um instinto de homem adulto de impor respeito, protegendo assim Ana de comentários maldosos que a possam magoar de alguma forma. Ele vai adoptar o seu ar militar pouco afável, intimidando desta forma as mentes fracas a atrevimentos de língua. 
    O barco contorna a extremidade da ilha e Ana tem o vislumbre da Vila da Lajes que parece adormecida na base daquela montanha. O porto transporta a animação típica da chegada de um grande navio. Os braços elevam-se e os nomes gritados misturam-se. Ana deposita Jewel no colo de George e debruça-se numa procura quase desesperada de caras familiares. A primeira que consegue avistar é Maria que pula como uma macaca de forma a ser avistada por qualquer pessoa. Ana chora… Chora uma emoção que transborda amor… Um amor incondicional e inviolável. Um amor leal que permanece intacto mesmo nas dificuldades, na distância, nas angústias. Um amor que deveria condicionar todos os outros sentimentos, pois só assim deixaria de haver atitudes medíocres e sentimentos inferiores. A humanidade ficaria munida de uma força de razão iluminada e impenetrável a dúvidas pouco claras.
    Ana correu por entre as pessoas alheia aos olhares admirados e aos sussurros crescentes e sedentos de aumentar aquele novo mexerico. Mas George seguiu-a com Jewel ao colo absorvendo cada olhar de soslaio, cada sorriso maldoso, cada movimento de lábios que continham uma calúnia. O abraço que recebeu Ana não deixou de penetrar a sensibilidade de George, que encontrou uma família unida num emaranhado de braços, lágrimas e palavras baralhadas. Como era possível que os outros olhos daquele cais não conseguissem ver aquilo que ele via? Como é que a vontade de depreciar o belo é mais forte do que a vontade de o admirar? Quem tem a capacidade de se abrir ao belo, facilmente ultrapassa esse patamar e chega ao maravilhoso, mas quem não tem essa capacidade, nunca passa do medíocre.
- Este é o George, o meu noivo! – Ana ainda sentia que aquela palavra não lhe pertencia. – Estes são os meus pais, José e Luzia. – George esticou a mão para um aperto de mão formal, que intimidou Luzia. José devolveu o aperto de mão com o mesmo vigor. – Esta é a minha irmã Glória e o marido João… - George sorriu e apertou as mãos, apreciando o sorriso fácil de Glória. – E esta é a pequenota da família, a Maria! – George estendeu a mão, mas Maria indignou-se e deu-lhe uma palmada na mão. George nem teve tempo para se admirar, uma vez que os braços de Maria já lhe haviam rodeado a cintura.
- Tu és muito bonito! – Maria estava encantada com aquele militar alto e vigoroso, que sobressaia naquele cais de gentes iguais. – Não tens nenhum irmão? É que daqui a nada já vou ter idade para ter um pretendente. – Maria sorria-lhe e George gostou dela imediatamente.
- Tina! John! Estamos aqui! – Ana abanava o braço elevado num aceno. Os amigos tinham ido buscar a bagagem. Arrastaram as malas e um baú com a ajuda de uns rapazitos cujos olhos luziram quando receberam umas moedas de reis como pagamento. Os cumprimentos foram longos e Tina tomou o braço de Luzia como se fossem amigas de longa data e começaram com as combinações do casamento.
- Vamos! O João leva este carro de bois com a bagagem! – José apressava as conversas, porque ainda tinham um longo caminho pela frente. – A Glória vai na carruagem com o marido, a Tina e o Jona.
- Jonh, pai! – Ana partilhava a gargalhada geral provocada pelo nome mal pronunciado.
- Ou isso… - José não queria dar parte fraca, mas não sabia bem como ia conseguir chamar pela neta e pelo futuro genro. – Tu, o Dejorge, a jaiele e a Maria, vêm comigo e com a Luzia.
    Tina ria-se à gargalhada por tudo e por nada. Sentia-se deliciada com aquele meio de transporte tão caricato, e quando reparou que o boi ia andando e deixando um rasto de bosta desavergonhadamente, sentiu que ia explodir de tanto rir.
    No carro de bois que segui na dianteira, a conversa era de saudade.
- Oh filha! O teu noivo é um homem muito bonito! E vê-se que é carinhoso com a menina. – Luzia admirava o olhar de ternura que George dedicava á neta enquanto ela dormia. – Mas tenho um aperto no peito…
- Não ouças o que ela diz Ana! Eu já lhe disse que esses apertos são da roupa que lhe está a ficar apertada, mas ela não me acredita… - Maria ainda não tinha largado o braço da irmã. Assim que Ana saltou para o carro de bois, Maria saltou logo de seguida, tomando o lugar a seu lado e entrelaçando o braço no dela, numa atitude possessiva. George percebeu com alguma satisfação a personalidade forte de Maria que jogava com ele a um braço de ferro invisível.
- Eu também tenho um aperto no peito mão! – Ana sabia que ali podia ser sincera. Depois de tudo o que tinham passado juntos, não havia lugar a fingimentos ou falsas forças. Ela podia fraquejar, ter dúvidas.
- Olha-me esta também… eu alargo-te as blusas que isso é de teres o peito inchado de amamentares. – Maria não queria correr o risco de perder aquela festa de casamento. Para além de casar a irmã, de certeza que vai haver daqueles bolos muito bonitos que ela vê nas fotografias dos casamentos dos primos americanos. Os americanos fazem sempre doces para um batalhão, e o George é americano, logo a perspectiva de uma doce casamento é muito sedutora.
- Não é isso! Eu sei que é uma boa solução para mim… não podia desejar melhor futuro para mim e para a minha filha…
- Então o que é que te está a angustiar? – Luzia tentava perceber aquele olhar baço que a filha exibia.
- É demasiado bom para mim! Mas sinto que estou a arrastar o George para um problema que não é dele e não lhe estou a dar nada em troca. Eu estou a beneficiar desta situação e o George está a ser penalizado… Não consigo explicar bem… Mas o que é que ele pode encontrar de bom nesta história?
- Parece-me que ele já encontrou… Tu é que ainda não estás a conseguir ver Ana… Mas um dia verás e as coisas vão ficar mais fáceis. – José pronunciou aquelas palavras sem desviar os olhos do caminho.
- Mas tu não o amas? – Luzia começava a sentir-se inquieta.
- Eu… Eu gosto muito dele. Sinto um carinho muito grande… Uma gratidão enorme… O que sinto por ele é na verdade um respeito imenso pela pessoa que ele é.
    Luzia sorriu-lhe e trocou um olhar cúmplice com o marido. Aquilo bastava-lhe. Acreditava mais no respeito do que na paixão. Numa relação em que existe respeito, a paixão tardia é recebida com mais sabedoria e o proveito que daí advém é incomensurável.
    A Tina e o John foram encaminhados para a casa da Tia espirito Santo, uma vez que não havia espaço suficiente na casa dos Ferreira. A hora tardia fez com que todos abdicassem da ceia para se deitarem e descansarem. Luzia fez questão que a bebé ficasse no seu quarto naquela noite, desculpando-se com a fadiga de Ana, mas todos lhe adivinharam a intensão.
 - Tinha tantas saudades deste quarto, desta cama… De ti, pirralha! – Ana fazia cócegas a Maria por debaixo da colcha.
- Eu também senti muito a tua falta! – Maria enroscou-se na irmã. Ela estava diferente. Já não tinha aquele ar inocente que a caracterizava. Estava mais mulher… e vestia-se muito melhor, graças a Deus.
- Tenho medo Maria!
- Do quê?
- De ir viver para a América. A Tina fala-me daquela terra e eu não percebo nada do que ela diz. Parece que existe tanta gente que as pessoas cruzam-se na rua, mas não se conhecem todos.
- Não sejas tonta! Vais para um meio onde as pessoas usam batom e laca todos os dias… Quem me dera!
- Preferia continuar na Terceira, mas o George tem de voltar e eu…
- Pensa em como vai ser bom para a bebé crescer num lugar onde ela pode escolher um futuro. Ela vai crescer sem ter de acordar com as galinhas para ir ordenhar as vacas antes de ir para a escola. Vai estudar em cadernos de papel, em vez das pedras de xisto que nós temos. E quando terminar a escola, não terminam as opções dela, e ela pode escolher ser médica ou advogada como nos romances que os tios nos enviam… E pode tornar-se uma mulher independente e usar calças… E pode fumar e beber vinho com amigos…
- Que idade é que tu tens? – As duas começaram a rir enquanto se aconchegavam nos braços uma da outra, e continuaram a cochichar até adormecerem.
    A azáfama própria de um domingo de manhã fez Ana acordar sorrindo. Tinha saudades daquele preparo domingueiro e vestiu-se apressadamente desta vez sem a ajuda de Maria, provocando uma certa mágoa nesta. Luzia reuniu todos na cozinha e inspeccionou um a um. Após ter dado o seu aval abriu a porta e pediu que a seguissem.
- Esperem! Não vamos comer qualquer coisa primeiro? – Tina sentia-se esfomeada. Tinha adormecido na noite anterior de cansaço sem sequer ter comido e sentia-se com um buraco no estômago.
- Minha querida, não pode comer nada antes da missa! – Luzia explicava-lhe pacientemente, aquilo que qualquer cristão deveria saber de forma intuitiva. – Só podes comungar em jejum… - E voltando-se para o portão. – Agora vamos embora.
    Ana e Maria trocaram umas risadinhas, enquanto Tina bufava. A canada parecia mais inclinada do que Ana se lembrava, ou seria o efeito dos sapatos de salto alto que lhe provocariam aquela sensação. Tina segurava-se no braço do marido caminhando sem vacilar com a segurança de que ele não a deixaria cair. Ana queria entrelaçar o seu braço no de George. Sentia esta necessidade com um força quase física. Ele nunca mais a beijara, e ela lamentava este facto. Recordava aquela tarde e aquele beijo com uma precisão repetida insistentemente e desejava repetir, mas não podia exigir mais a George do que aquilo que ele já lhe oferecia. Ele começava a encaixar-se na sua vida com a mesma naturalidade com que a chuva se funde com a terra, mas Ana queria mais. Ela sonha com um casamento cúmplice, com uma química que lhe escalde as faces e lhe provoque arritmia no batimento do seu coração. George está a absorver-lhe as preocupações e constrangimentos que uma mãe solteira acarreta, mas ela quer mais do que partilhar as suas dificuldades. Quer envolver-se sentimentalmente. Quer estender-lhe a mão num mau momento e beijá-lo nos momentos de felicidade. Quer acarinhá-lo… Quer amá-lo… e quer ser correspondida. Não sente que seja demasiado pretensioso, este seu desejo. Ela não é menos mulher, só porque uma sociedade fechada assim o afirma. Ela tem mãos, pernas, cabeça, bons momentos e maus momentos, e nenhum destes factores a define individualmente.
    O adro da igreja continuava com a cal branco dos muros gasto e o basalto que os definia liso. Sobre a relva seca o rebanho do padre Inácio trocava impressões e mexericos apressados absorvendo o máximo de informação antes da missa. Luzia subiu as escadas de basalto de braço dado com José e com um sorriso aberto a Glória que já os esperava no adro. Foi demasiado notório o corte repentino nas conversas corriqueiras e os olhares trespassaram uma acusação fria e caíram sem piedade sobre Ana que alcançou Glória com um abraço onde aproveitou para esconder o rosto por uns segundos, apenas o suficiente para se recompor.
- Oh George! Deixa que fico com a menina durante a missa. – Glória pegou na sobrinha derretida e piscou um olho cúmplice a George, enquanto lhe empinava o queixo para o lado de Ana mostrando-lhe naquele gesto onde era o seu lugar. George aproximou-se de Ana e pegou-lhe na mão. O seu corpo reagiu imediatamente ao toque e George encaixou aquela mão perfeita na curvatura do seu cotovelo. Sorriu-lhe e inclinou-se sussurrando-lhe ao ouvido.
- Don’t worry! I’m right her by your side, and i’ll never leave you… - George terminou aquele murmúrio com um suave beijo na face de Ana. Esta fechou os olhos e deixou que aquele arrepio de prazer lhe percorresse a espinha sem pressa.
- George!
- Hum!...
- Eu podia amar-te! – Os olhos de Ana penetraram o olhar de George forçando um entendimento que tardava. E quando o momento se perdeu e Ana desviou o seu olhar, encontrou outros olhos que ela pensava já ter esquecido… Francisco.

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