domingo, 18 de março de 2012

CAPÍTULO XXII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XXII

    Os músculos palpitavam a cada novo esforço. Os braços bem delineados erguiam-se armados de uma enxada que caía numa força potente fundindo-se com a terra desavergonhadamente. O suor molhava-lhe a camisa branca colando-a a um peito duro, e Ana não conseguia desviar os olhos daquele corpo perfeito. A terra era revolvida e sachada pelos homens preparando-se assim para receber as próximas sementeiras e transplantações. As mulheres estendiam sementes de melancia e abóbora de forma a secarem ao sol. George não se poupava aos trabalhos do campo, agradecendo no seu íntimo ter esta actividade para lhe aliviar a tensão que sentia desde a manhã do dia anterior. Ainda lhe doía o peito da dor que sentiu quando seguiu o olhar vidrado de Ana no adro da igreja e encontrou um homem alto e demasiado bem-parecido, para quem gosta do tipo. Soube imediatamente que era Francisco, e uma onda trémula de violência trespassou-lhe o corpo. Ana manteve-se hirta ao seu lado com a mão encaixada na curva do seu braço, mas a magia que se havia criado entre eles quebrou-se, e apesar do seu sorriso continuar aberto, o seu olhar fechou-se. Francisco não libertou Ana do seu olhar durante todo o acto religioso e George adivinhou-lhe uma sombra de arrependimento que o perseguia e que naquele momento se começava a dissipar em esperança.
- Oh Ana! Ana! – Tina equilibrava um conjunto de copos com limonada num tabuleiro. Ela ensinara Luzia a aproveitar os limões para fazer limonada, e agora todas as oportunidades eram usadas como desculpas para mais um copo.
- Fica aí Tina, que nós vamos aí refrescar-nos! – Ana sorria ao vê-la em dificuldades em cima daqueles sapatos de verniz com um salto de sete centímetro e uma fivela desconfortável.
    A limonada foi uma boa desculpa para um intervalo merecido. José olhava pelo canto do olho o futuro genro e sorria intimamente. O homem com uma elevada posição no meio dos militares que baixava a sua guarda snobe e pegava numa enxada com a dignidade dos humildes merecia todo o seu respeito.
- Hello George! – Ana tentava impressionar o noivo com o pouco inglês que começara a aprender com Tina.
- Hi! – Ana sentiu-se decepcionada com a reacção dele, mas não desistiu. Encostou-se no muro ao lado dele e tentou captar-lhe um olhar.
- How are you? (Como estás?)– Ana sorriu de alivio assim que terminou com sucesso a frase que lhe enrolava a língua. George arregalou os olhos na sua direcção e riu-se. Sentiu uma alegria infantil quando percebeu que Ana estava a fazer um esforço para comunicar na língua dele.
- Are you speaking english? Why? It’s because of me? (Estás a falar inglês? Porquê? É por minha causa?) – George precisava de ouvir um sim como resposta. Precisava de um sinal, que não estava a perdê-la, que não se estava a impingir, que não estava a tirar partido de uma fragilidade de Ana para seu próprio benefício.
- Tem calma homem! Que eu ainda não domino essa língua! – Ana sorriu-lhe iluminada por uma claridade de Agosto que lhe emoldurou o rosto e George não resistiu, pousando a palma da sua mão sobre aquele rosto suave. Sentiu Ana retrair-se e sem perceber se isso era um bom sinal ou não, George deslizou a mão até à base do seu cabelo e puxou-a para si. Ana não resistiu e não desviou o olhar. Todos os pensamentos esvaíram-se e restou apenas o desejo da antecipação. George beijou-a com suavidade e paciência e quando a sentiu render-se totalmente num gemido tremido, George aprofundou o beijo e encorajou-se quando os braço de Ana lhe rodearam o pescoço. Foi George que se afastou de uma forma um pouco brusca. A imagem de Francisco e do olhar que ambos trocaram na entrada daquela igreja não o abandonava e invadia-lhe a memória de uma forma libertina.
- Viste o George? – Ana sentia-se confusa com aquela atitude. Talvez tivesse feito alguma coisa mal.
- Não! Porquê Ana? – Glória despejou as sementes que tinha no avental dentro de uma pana.
- Sinto-me incapaz Glória! – Ana sentou-se na terra e soltou-se à fraqueza que a perseguia.
- Então Ana? Devias estar feliz! Vais casar-te daqui a quinze dias! – Glória sentou-se ao seu lado e recebeu-a nos seus braços embalando-a. – Fala comigo Ana.
- Eu… Eu nem sei o que pensar! Eu vou casar-me com um bom homem Glória!
- E isso não é bom?
- Ele gosta muito da Jewel!...
- Isso também me parece bom.
- Ele estendeu-me ambas as mãos quando todos me viraram as costas… E vai casar-se comigo!
- Tens de ser mais clara Ana! – Glória tentava acompanhar o raciocínio da irmã.
- Ontem vi o Francisco! Queria muito falar-lhe… Mostrar-lhe a nossa filha linda… Contar-lhe a forma como ela agarra o meu dedo sempre que lhe canto ao ouvido. Queria mostrar-lhe como ela tem o seu sorriso que termina numas covinhas…
- Já começo a perceber-te…
- Não… não percebes! Eu amei o Francisco… Amei-o muito! E agora não sou capaz de lhe guardar rancor… Amei-o tanto que me custa privá-lo das maravilhas de uma filha que ele ajudou a gerar…
- Ele abandoou-te quando mais precisavas! Virou-te as costas… Nunca te esqueças Ana… Eu odeio-o!
- Mas como posso odiar o único homem que me amou?
- Minha querida Ana, como te enganas! Amor não é só dizer lindas palavras que deslumbram o coração. Amor não é um acariciar mais profundo que faz o coração acelerar. Amor não é uma promessa eternamente por cumprir… Amor é um sentimento muito mais construído do que sentido. Amor é cuidar com preocupação. É dar todos os dias um pouco mais de nós com a felicidade do altruísmo. É ceder todos os dias um pouco mais do nosso espaço, sem nunca o reclamar de volta. Amor, Ana, é acordares todos os dias ao lado de um homem que te dá a segurança de uma eternidade de respeito, companheirismo e cumplicidade.
- Que tristeza Glória!...
- O que é que é triste Ana?
- Nunca fui amada… Tenho uma filha… Vou casar-me e nunca fui amada.
    A buzina de um carro parado na estrada fez com que as irmãs silenciassem a conversa numa curiosidade simples. George saiu de dentro do carro e acenou-lhes. Ana levantou-se e limpou as lágrimas substituindo o choro pelo espanto. Correu ao encontro de George.
- Mas onde raio é que desencantaste isto? – George sorriu-lhe adivinhando a pergunta, mas sem possibilidades de resposta.

    O dia seguinte fez-se acompanhar das diligências próprias de preparação de um casamento. George tornara-se bastante próximo de José, apesar de não partilharem a mesma língua. Entendiam-se num silêncio calmo que os identificava, e quando George pegou em Ana e Jewel e as levou a passear no carro que afinal era emprestado por um antigo oficial das forças armadas que tinha optado por viver a sua velhice naquela ilha, José não se opôs. Pararam na casa da Tia Espirito Santo para apanharem Tina e John e foram conhecer a ilha. A viagem até à vila das lajes fez-se numa alegria contagiante. Tina incitava Ana a umas palavras em inglês provocando um riso generalizado.
- Agora vais dizer: eu vou casar-me com o George. I´m going to marry George… Vá, agora diz tu Ana.
- Aima gonga to mariete George! – A gargalhada instalou-se.
- Eu vou casar Ana. – A tentativa de George calou a gargalhada inicial. Ana olhou aquele homem com uma admiração e respeito que lhe martelava no peito. Ele estava também a fazer um esforço.
- Tina, how do i say, i’m a lucky man?
- Eu sou um homem de sorte!
- Eu sou um homem de sorte! – O sorriso que George dirigiu a Ana enquanto soletrava aquelas palavras era um acto de amor. Agora Ana percebia a diferença. A paixão sente-se instantaneamente, mas o amor cultiva-se até cativar o outro num ciclo perfeito de respeito, companheirismo, cumplicidade e desejo. - Pára aqui George! – Ana despertou daquela envolvência que George lhe provocava, quando avistou a casa do presidente da camara. A casa onde a mulher mais determinada que alguma vez conhecera sucumbira à morte em prol de um amor…
- Tina leva o John e o George a dar uma volta à vila que é muito bonita, que eu preciso de fazer uma visita pessoal.
- Can i go with you? – George não queria correr o risco de deixar Ana sozinha. Amedrontava-lhe a ideia de se ir encontrar com Francisco. Sabia bem o que tinha oferecido a Ana e o que ela tinha aceitado, mas era-lhe impossível não desejar mais.
- Ele quer ir contigo querida! – Tina mostrava pressa na decisão. Olhava à sua volta e sentia necessidade de conhecer melhor aquele sítio que parecia parado no tempo transmitindo o mistério de um lugar mágico regido por uma era longínqua.
- Então vamos George! – Ana estendeu-lhe a bebé que ele recebeu com satisfação. O caminho a pé fez-se sem pressas com os olhares perdidos nos braços de basalto que furavam calmamente o mar recebendo em troca um batimento violento que se esvaia numa espuma resignada.
    Ana vacilou quando se encontrou em frente à casa de Fátima, mas abriu o portão e fora daquela porta verde que lhe causou tantos receios estendeu o pulso e bateu. A porta rangeu quando um homem a abriu. Ana reconheceu o senhor Joaquim naquele rosto triste e envelhecido.
- Ana! Que surpresa! Entra. – A porta abriu-se completamente e Ana aceitou o convite.
- Obrigada! Quero apresentar-lhe o meu noivo, George!
- Ah! Muito prazer! – O senhor Joaquim fez um gesto para que se sentassem. – Já tinha ouvido dizer que ias casar. Fico muito feliz por ti Ana.
- Obrigada. E a D. Alice? – O silêncio que se seguiu demonstrou um constrangimento ao qual Ana se rendeu arrependendo-se da sua pergunta.
- Desde aqueles acontecimentos infelizes que ela encontrou consolo… - O senhor Joaquim fez uma pausa parecendo querer encontrar as palavras certas. – Consolo num tipo de quotidiano diferente.
- Não estou a perceber. Ela está bem?
- Sim! Eu vou levar-te até ela. – Ana e George seguiram o homem até um quarto situado no fundo do corredor. Quando a porta se abriu, Ana encontrou a mulher de traços rígidos que se lembrava, mas havia qualquer coisa diferente. Um brilho de loucura que lhe trespassava o olhar falsamente alegre.
- Ana! Minha querida! Mas que prazer ver-te novamente! Entra… Vem ver o vestido que estou a terminar para a Fátima. – Ana sentiu o choque das palavras e procurou uma resposta no olhar do senhor Joaquim, que se limitou a encolher os ombros.
- Um vestido para quem? – Ana queria confirmar o que tinha acabado de ouvir.
- Para a Fátima. Ela casa-se daqui a quinze dias e ainda tenho toda a bainha do vestido para fazer. Ai ela está tão ansiosa, nem imaginas…
- Eu vou casar-me também! – Ana tentava dar alguma realidade àquela conversa.
- Ai que bom querida! Sempre vais casar com o Francisco? – Ana sentiu que George estremecer face àquelas palavras. Ele já percebia a palavras casar e Francisco e não lhe agradou ouvir ambas na mesma frase.
- Não D. Alice. Eu não vou casar com o Francisco, pode ficar descansada. – Ana não queria causar mais transtorno na mente debilitada daquela mulher.
- Então vais casar com quem?
- Com este homem aqui. Ele chama-se George, mas não fala português.
- Ai, mas que homem lindo Ana! E vê-se nos olhos dele que ele gosta realmente de ti!
- Acha mesmo?
- Ele desenvolveu por ti aquele tipo de sentimento que transporta em si mesmo a garantia de uma felicidade plena sem contratempos ou desilusões. É um sentimento profundo que liga as pessoas pela eternidade. É exactamente como o sentimento que liga a minha Fátima ao seu Manel… E eu fico tão contente com o casamento deles. Agora tenho mesmo que terminar o vestido. Sabes como é importante para uma noiva o seu vestido.
- Claro, D. Alice! Entrego-lhe o convite do meu casamento. Gostava muito que fosse.
    De volta à sala, Ana deixou-se cair incrédula no sofá. A D. Alice autoritária que tantas vezes a intimidou, estava reduzida e uma senhora demente.
- Não fique assim Ana! A Alice encontrou um consolo neste mundo que ela criou. – O senhor Joaquim Percebia a mulher. Por vezes invejava a forma como ela tinha encontrado tranquilidade naquela realidade distorcida que ela criara. Mas o corpo de uma mente que cria uma realidade utópica e renega tudo o resto, só sobrevive se por perto houver um mente consciente que cuide dela. E era esse o papel do senhor Joaquim.
- Mas daqui a quinze dias ela espera ter um casamento que não vai acontecer.
- Nesse momento logo vejo o que faço. Por agora ela está a fazer o vestido.
- E como é que ela tira as medidas? Como é que ela justifica o facto de Fátima nunca fazer provas?
- A tua irmã Glória vem cá todos os sábados e é ela que faz as provas. Alice convenceu-se que a Fátima esta a estudar no Faial e só vem para o casamento…
    Ana saiu daquela casa com algo mais do que saudade de Fátima. Depois do choque a situação, Ana teve a sensação de que Fátima estava a olhar pela mãe. Tinha arranjado uma forma de lhe suavizar a dor provocada pela sua morte intencional.
    Ana e George juntaram-se a Tina e John e sem palavras desnecessárias apreciaram aquele ponto exacto em que o mar e a terra se confundem demarcando a fronteira pouco exacta entre um azul imenso que esconde mistérios e vidas e a base de uma montanha que se prolonga num alcance magistral, tentando uma ligação presunçosa entre mar e céu.

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