domingo, 29 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XVIII

CAPÍTULO XVIII

    Por vezes a capacidade de apreciar uma verdadeira amizade é ocultada por outros factores e nunca se chega a usufruir dos seus tesouros. Muitas vezes a amizade é sobrevalorizada e perdida em teias de malícia que teimam em permanecer na penumbra. Mas raras vezes a amizade atinge o patamar de uma segunda família, e quando se tem a sorte de descobrir uma amizade transparente e liberta de oportunismos, atinge-se um novo clímax do ser. E era exactamente assim que Ana se sentia a poucos dias do grande dia. Deus tinha sido generoso, e agora naquele seu novo quarto em casa de George onde tinha passado os três últimos meses como empregada doméstica, agradecia intimamente o facto de ser merecedora de mais graças do que de privações. Voltaria a passar por todas as dificuldades que aquela terra lhe cobrou só para voltar a ter o privilégio daquelas amizades. Tina era uma amiga tagarela que de forma muito inteligente livrava Ana dos maus olhares e difamações. A cumplicidade que tinha com o marido era partilhada na amizade que nutriam por Ana. George era mais reservado, mas Ana sabia ler nas entrelinhas das suas acções. Via no seu olhar de soslaio a preocupação de saber que ela estava bem. Encontrava amizade no facto de ele sair do trabalho e voar para casa, deixando Ana sozinha o mínimo de tempo possível. Era amizade cada vez que ele tirava a pesada pana de roupa das mãos de Ana e transportava ele mesmo evitando que ela pegasse em pesos. Lia amizade nas vezes em que ele trabalhava o quintal para que Ana não se ocupasse do trabalho pesado. Era amizade todas as vezes que ele lhe segurava a cabeça para ela vomitar nos seus ataques de enjoos de grávida, limpando-lhe depois a cara com uma toalha molhada e deitando-a na cama com um chá fumegante à sua espera. Ana era reconhecida a esta gente que se abriu a ela numa bondade de acções que são tão raras quanto preciosas.
    Uma pontada alucinante na barriga fê-la curvar-se e o sufoco de um grito suspendeu-lhe os movimentos. A dor latejava-lhe dentro das entranhas e o corpo pedia uma libertação urgente. Durou apenas uns segundos e Ana levantou-se no intuito de chamar Tina. Tinha medo de estar sozinha se a dor voltasse. Ao entrar na sala, a dor atacou-a com maior violência, obrigando-a a baixar-se. Ana sentiu o chão duro e frio debaixo de si e a dor que vinha e ia com a mesma rapidez. Em cada intervalo Ana forçava-se a aproximar-se da porta, mas quando as águas rebentaram, Ana entrou em pânico e perdeu a noção do tempo e do espaço, libertando-se em uivos gritados e gemidos doridos. Ana não soube quanto tempo passou até George chegar de rompante respondendo com eficácia aos gritos. Pegou nela desajeitadamente e levou-a para a cama.
- Hold on just a little bit! (Aguenta só mais um pouco!) – George, quando sentiu que Ana relaxava um pouco da dor depositou-lhe um beijo suave da testa. – I’m gonna call the doctor and i´ll be right back. Hold on!... (Vou chamar o médico num instante e volto já.)
    George saiu a correr e os olhos de Ana abriram-se num horror por ficar novamente sozinha. Esse horror durou apenas uns minutos, pois Tina apareceu logo se seguida.
- Oh querida! Acalma-te! – Tina aproximou-se de Ana e apertou-lhe a mão tentando disfarçar a impotência que sentia naquele momento. – O George foi a correr chamar o médico… Está tão nervoso que parece que é ele que vai dar à luz. – Ana emitiu uma gargalhada nervosa e Tina deixou-se relaxar um pouco. – Chegou a hora do nosso bebé nascer minha querida. – Tina sentia a emoção aflorar-lhe os olhos lamechas.
- Vai ser uma menina! – Ambas acreditaram naquela profecia. Quando o médico chegou, tomou as rédeas da situação. George foi ferver água e apareceu com a bacia na ombreira da porta, mas foi impedido por Tina.
- Is better if you wait out here! (É melhor esperares aqui fora!)
- But she screaming so much! She needs me…( Mas ela está a gritar tanto! Ela precisa de mim…) – George sentia que a preocupação lhe estrangulava o bom senso num frenesim que lhe crescia e desabrochava numa necessidade física de estar junto de Ana. Foi John que o tranquilizou e o levou para forma daquele quarto. O parto durou duas horas. Duas horas partilhadas por um sofrimento de dor e ansiedade que George tentava acalmar em passadas largas fora da porta do quarto, retraindo todos os músculos a cada novo grito. Quando um choro fraco tomou conta do cenário sonoro George correu para o quarto e atropelou Tina quando esta o tentava impedir. Aproximou-se de Ana e sentiu o peito apertar-se quando a viu pálida com um olhar de felicidade frágil. O seu respirar era lento, mas quando ela lhe sorriu, George sentiu que estava no lugar certo. O médico depositou-lhe uma menina pequenina nos braços que George aceitou como se lhe estivesse destinada e começou a amar aquele ser desde daquele momento. Tina manteve-se a um canto daquele quarto adivinhando as emoções que começavam a nascer do caos.
- She’s perfect! Just like you! (Ela é perfeita! Exactamente como tu!) – George falava embalando o sono fatigado de Ana que mantinha a bebé encaixada na curvatura interior do seu cotovelo. – We gonna call her Jewel!- George levantou-se da cadeira estrategicamente colocada à cabeceira da cama e beijou a bebé e a mãe. Elas preenchiam-lhe agora o vazio que tinha sido a sua vida até então.
   
“ Queridos Pais, Maria e Glória,

Continuo bem desde a última vez que vos escrevi. Gostei muito de saber que a Maria tem tido muito trabalho a enfeitar as cabeças das senhoras dessa terra. Se existe neste mundo alguém capaz de tornar uma sopeira numa rainha é ela, por isso eu acho que essas senhoras são umas sortudas. Também fiquei muito feliz por saber que a Glória está melhor da constipação. Sinto muitas saudades vossas, principalmente neste momento em que vou partilhar uma boa-nova convosco. A minha bebé já nasceu. É o ser mais lindo que este mundo já recebeu. Tem os olhos verdes iguais aos meus, mas o sorriso é do Francisco. Sei que não gostam que fale dele, mas não consigo lhe guardar rancor. Principalmente agora que olho para a minha menina e vejo o sorriso maroto que termina numas covinhas e que herdou dele. Sem ele eu não teria o meu tesouro. Por falar em tesouro a menina chama-se Jewel, que significa jóia em inglês. Não torçam o nariz e digam à Maria para que em vez de refilar por causa do nome que comece a praticar, pois em breve vai ter de chamar pela sobrinha. Vou baptizar a menina aí. Não quero saber o que essa gente arrogante dirá… que mordam todos a língua, mas recuso-me a baptizar a minha filha sem ser na presença da família que a ama e que me ama. Vou no mês de Agosto. Ela terá nessa altura quatro meses. Bem sei que ela já devia ter sido baptizada, mas é como vos digo, o baptizado da minha filha será feito com toda a dignidade na igreja da freguesia da família e não às escondidas como se fosse uma criminosa.
Já me esquecia de vos dizer. Convidei a Tina e o marido para padrinhos. Primeiro pensei na Glória e no João, mas ele já são tios. E acho que é bom para a menina ter os padrinhos na terra dela. O George também irá para o baptizado.

Amo-vos muito e tenho a minha alma repleta de saudades.
Aguardo notícias vossas em breve.
Ana Ferreira”

     Ana escreveu a carta à pressa, e apesar de não ter ficado completamente satisfeita com o resultado, não se preocupou em reescrevê-la, uma vez que já sentia saudades da sua menina. Pegou-lhe ao colo e cantou baixinho:
Vai-te embora papão negro
De cima desse telhado
Deixa a menina dormir
Um soninho descansado.

    George entrou em casa naquele momento e dirigiu apenas um acenar de cabeça a Ana retirando-se de seguida para o seu quarto. Desde o nascimento da menina que ele andava estranho. Já se havia passado três semanas em que ele não se esforçava por estabelecer qualquer tipo contacto, e Ana começava a sentir saudades daqueles momentos em que as gargalhadas que surgiam em cada tentativa de entendimento eram o único ponto de comunicação bem-sucedida. O medo de estar a perder o que tinha com George afligia-a de forma pouco convencional e Ana concentrava-se na filha e no trabalho de casa para não se deixar arrastar por emoções que não percebia. A porta do quarto abriu-se e Ana sentiu que o seu coração disparava numa esperança que George lhe dirigisse uma palavra. Mas ele contornou-a, depositou um leve beijo na bebé e voltou a sair. Ana sentiu uma pontada de ciúme dirigida a alguém incerto que usufruiria do cheiro daquela colónia nova que ele havia comprado. Pela hora ele não deveria lanchar em casa e pela produção, também não devia jantar.
- Está alguém em casa? – Tina entrou como fazia sempre, sem bater!
- Olá Tina! – Ana tentava limpar as lágrimas de forma atrapalhada e esta atitude não escapou a Tina.
- O que se passa querida?
- São apenas saudades da minha família!
- Oh querida! Não fiques assim! Eu sei que não é a mesma coisa, mas tens-me a mim, ao John e ao George… e agora tens esta coisinha linda! – E tirando a bebé das mãos de Ana continuou com um falar apalermado – Quem é a menina mais linda da sua madrinha… quem é? Estás a rir-te sua marota… É muito marota esta nossa menina!
    Ana passou das lágrimas à gargalhada com uma facilidade que surpreendeu Tina.
- Pareces uma tonta a falar dessa maneira!
- Olha quem fala! Devias ver as figuras que fazes quando te babas para cima da menina! – As duas riam enquanto adoravam juntas aquele pequeno ser que já as conquistara. – Ah! Já me esquecia do que vinha aqui fazer.
- Não vinhas apenas matar saudades da minha filha, que já não vias há uns dez minutos?
- Não sejas parva Ana! – Tina sorriu-lhe. Realmente estava a afeiçoar-se àquela pequena e desejava muito fazer parte da vida dela. Vamos sair as três.
- E vamos onde?
- Depois vês! Agora vai vestir algum trapinho melhor do que esse e vamos embora! – Ana foi mudar-se de roupa. Tinha agora um guarda-fato cheio de roupa que Tina lhe tinha dado, porque engordara um pouco e já não conseguia meter-se dentro daqueles trapinhos como ela lhes chamava. Mas Ana ficava magistralmente linda naqueles fatos de saia casaco que lhe delineavam umas ancas perfeitamente encaixadas numa cintura fina, pouco própria de quem tinha dado à luz.
    John já as esperava dentro do carro que conduzia com um cuidado exagerado. O carro era do seu general e ele não queria correr o risco de estragar as suas relações superiores. Chegaram ao centro de Angra do Heroísmo e Ana sentiu um arrepio. Desde que acordara na casa de George nunca mais saíra da base militar, e agora voltar àquela calçada era voltar a sair da sua zona de conforto. Mas Ana sabia que não podia permanecer fechada ao mundo. Teria de enfrentar os olhares e comentários maldosos e as censuras em surdina. As duas entraram no jardim onde Ana foi encontrada caída e miserável, e Tina mirava a amiga numa preocupação disfarçada por um discurso tagarela e confuso. Quando saíram do jardim, Ana avistou os pórticos tão seus conhecidos e não resistiu a atravessá-los novamente. Tina seguiu-a questionando mas sem obter qualquer resposta. Ana percorreu a ala direita conhecedora do caminho e espreitou para dentro da sacristia.
- Jerónimo? – O olhar do sacristão turvou-se numa emoção que tocou a sensibilidade de Tina. O abraço continha em si uma curta mas intensa história de miséria e de bondade. Os actos mais nobres resultam normalmente da junção destes dois químicos: Bondade e Miséria. É fácil ser-se bom quando se tem muito para partilhar, mas o heróico é fazê-lo sem nenhum poder especial. Os dois choraram e trocaram palavras de consolo rápidas e certeiras, e Ana terminou aquela visita rápida com uma preocupação a mais no peito. Jerónimo sofria por estar enclausurado nas censuras e tiranias de um sacerdote pouco misericordioso.
    De volta à rua Tina não voltou a questionar a cena que assistira. Ela sabia toda a história de Ana e sabia exactamente quem era Jerónimo. Percebeu que o homem sofria em silêncio e que a sua deficiência na perna fez dele prisioneiro daquele trabalho.
    Entraram então na loja pretendida e Ana surpreendeu-se com um vestido encomendado em nome dela.
- Mas!... – Ana nem sabia o que dizer. Apesar de ter poupado todos os seus ordenados desde que servia em casa de George, não se sentia com vontade para gastar dinheiro num vestido lindo daqueles.
- Tens de experimentar para ver se as medidas estão certas. – Tina assumiu o comando da situação e Ana sentia-se embriagada sem poder de reacção. – Vai lá que eu seguro a menina. O vestido assentava-lhe melhor do que o esperado. No corpo esguio de Ana o vestido parecia tomar outra forma e o tecido preto caia numa elegância descarada deixando os ombros de Ana à mostra. Tina emitiu um gritinho de satisfação.
- Podes tirá-lo! – Ana obedeceu com o pensamento congelado pela sua imagem que vira reflectida no grande espelho. Ela estava transformada numa mulher. O corpo de menina alongou-se numas formas sóbrias e transformaram-na numa imagem que lhe agradava particularmente. Quando Ana saiu, o vestido foi cuidadosamente guardado numa caixa.
- Eu não vou levar esse vestido! É um vestido de noite e o meu guarda-fato não tem por hábito sair à noite! – Tina deixou escapar uma gargalhada divertida, pegou na caixa e saiu. Ana correu atrás dela com a bebé ao colo.
- Vais sair assim com a caixa? Olha que eu não volto para trás para pagar esse vestido! – Ana sentia que o seu coração se acelerava face à possibilidade de estarem a cometer um furto.
- Não sejas tonta querida! O vestido já está pago…
- Mas… Oh não devias Tina…
- Não fui eu que o paguei!
- Tu ou o John é a mesma coisa…
- Não foi nenhum de nós! – Tina parecia divertida com aquele jogo de gato e rato.
- Então quem foi?
- O George! – Tina sorriu de prazer quando viu o olhar esbugalhado de Ana. – Ele precisa de um par apresentável para o baile de hoje à noite.
    Ana sentiu um turbilhão de emoções, mas a surpresa tomou um lugar dianteiro. Como podia George, um homem distinto, que ocupava um alto cargo na base das Lajes apresentar-se num baile com a criada?
- Não posso! – Ana soltou as palavras numa aflição cómica.
- Porquê querida! Já tens alguma coisa marcada para esta noite?
- Porque… Ora porque não posso deixar a Jewel sozinha… Claro… - Ana quase sorria de satisfação por ter encontrado a desculpa ideal.
- Ora querida! Esse assunto já está tratado. A Jewel ficará comigo em casa, porque o John não pode ir ao baile… estará de serviço…
    Ana não podia dizer que não deixaria a filha com Tina, até porque poderia ofendê-la. E a verdade é que confiava em Tina para deixar a sua menina aos seus cuidados. Ela iria ao baile. Agora que pensava nisso, ela tinha saudades de se divertir. De ter um momento egoísta em que o foco principal é o que lhe dá prazer. Irá com George ao baile, independentemente de ele lhe dirigir palavra ou não. Haverá quem fale português com toda a certeza…

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