sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XV - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XV



        Os dias corriam debaixo de um desespero próprio de quem procura ansiosamente sem conseguir alcançar. Ana procurava um trabalho que lhe garantisse o seu sustento e da filha que crescia dentro de si. O dinheiro estava contado e dava para mais três semanas de renda, pelo que se tornava imperativo que Ana conseguisse arranjar uma solução breve. Ela percebera de uma forma perversamente cruel que o espírito de julgar demasiado depressa as pessoas é comum a toda a humanidade, não é um exclusivo dos meios pequenos. As mentes abertas à descoberta do maravilhoso que cada ser pode conter é que são raras. Ela não é apenas uma rapariga grávida sem marido. Ela é Ana Ferreira, uma menina-mulher que sabe o que é trabalhar para garantir o sustento de uma família. É um ser que ama e que gosta de ser amado. É uma pessoa que tem calos nas mãos de trabalhar a terra, que gosta do cheiro do milho acabado de cozer, que tem sonhos grandiosos e sonhos idiotas. É alguém que sabe perdoar incondicionalmente… Quantos se podem gabar do mesmo? Ela poderia voltar para o refúgio da família, mas isso seria fracassar. Estava na altura de escrever a primeira carta, mas as linhas permaneciam vazias e os olhos teimavam em turvar-se dificultando-lhe a visão. Já passaram duas semanas desde a sua chegada e ela não podia baixar os braços.
- Boa tarde! – Ana dirigia-se á sua senhoria de quem o nome não se conseguia lembrar. – Tem um minuto para falarmos?
    A mulher de formas avultadas pousou o pano molhado que estava utilizar para lavar as mesas onde os inquilinos tomavam o pequeno-almoço, e concentrou o seu olhar nas faces de Ana temendo que a rapariga se tivesse metido em sarilhos.
- A senhora tem muito trabalho aqui, talvez precisasse de uma empregada… - Ana sentia-se desajeitada a falar sozinha tendo apenas um hum de vez em quando como resposta. – Eu podia trabalhar para si.
    A mulher puxou uma cadeira e sentou-se deixando que as suas carnes transbordassem pela beira do banco. Abanou a cabeça e finalmente falou.
- Estás a ficar sem dinheiro?
- Sim!
- Ainda tens dinheiro para mais uma semana?
- Sim! – Ana começava a sentir uma pontada de esperança. Ela parecia interessada na situação de Ana.
- Não tens mais ninguém a quem recorrer nesta ilha?
- Não.
- Então fazemos assim… Tu pagas-me já mais uma semana e começas a trabalhar para mim na próxima semana. Tenho de fazer contas para ver o que te vou pagar… Pode ser assim?
    Ana sentiu uma explosão de alegria e rodeou o pescoço farto daquela senhora a quem nunca lhe vira um sorriso. Ela teria um tecto para ela e para a filha e quando chegasse o próximo ano já não estaria grávida e inscrever-se-ia à mesma no exame sem ter de prestar favores duvidosos a um homem repugnante, incapaz de conseguir carinho de alguém de outra forma para além da chantagem.
    Ana acordou no dia seguinte disposta a passear pelas ruas e disfrutar os poucos dias que tinha antes de começar a trabalhar. Desceu as escadas da pensão e dirigiu um bom dia caloroso à sua nova patroa, recebendo desta um acenar de cabeça pouco convincente. O frio fazia-se sentir na vermelhidão da ponta do nariz. Os bafos das pessoas exibiam-se em vapores e Ana rodeava a barriga num acto impensado de protecção. A manhã foi passada a vaguear de um lado para o outro. Aquela será a sua terra nos próximos tempos pelo que queria familiarizar-se o melhor possível com o seu novo futuro. Ana andou sem que a longa distância se traduzisse em cansaço e subiu o Monte Brasil que a deslumbrara desde o primeiro dia. Tratava-se de um cone abatido de um antigo vulcão já extinto, onde Ana se permitiu a uma vista de cortar a respiração. Duas baías rendiam-se ao formato daquele monte e acolhiam um mar azul brilhante e calmo que acariciava a terra com uma estima subalterna. Os ilhéus exibiam-se solitariamente desprezando novas companhias e a cidade estendia-se rendida aos encantos de um dia limpo e frio que permitia uma visão longínqua da sua ilha muito ao fundo, mostrando-se numa humilde sombra duvidosa. A saudade invadiu-lhe inconvenientemente o peito a apoderou-se da sua garganta que se libertava em soluços contínuos, que se faziam acompanhar de lágrimas gordas que rolavam no desespero da solidão. Ela estava sozinha e dependia apenas de si mesma. E esta ideia era aterradora. A vida é convenientemente fácil quando se tem o mundo aos nossos pés, mas pode ser incrivelmente cruel para todos aqueles que lutam ininterruptamente por um pequeno lugar nesse mesmo mundo.
    O caminho de volta mostrou-se demasiado longo e o peso do cansaço apoderou-se das suas pernas. Ana apressou-se no regresso à pensão e assim que avistou a porta delineada por uma pedra desajeitada de basalto que contratava com as paredes alvas, Ana sorriu. Subiu as escadas em passadas pesadas e lentas e quando virou a maçaneta da sua porta verificou que esta não abria. Sentiu uma frustração por ter de adiar o seu descanso, quando o desejo pela sua cama crescia no mesmo ritmos que as suas pálpebras teimavam em descair. Ana olhou à sua volta procurando uma solução milagrosa que lhe abrisse aquela porta teimosa. Nesta busca visual, encontrou a sua mala deposta ao lado da porta do quarto e depois de um momento de estranheza sentiu um receio aflitivo apoderar-se de todos o seu ser. Ana pegou na mala pesada e desceu as escadas esquecendo o cansaço. Pousou a mala em frente ao pesado balcão gasto pelo tempo onde histórias várias estavam entranhadas nos riscos abundantes e impróprios.
- O meu quarto está trancado e a minha mala estava no corredor… - Ana fitava a sua senhoria com uns olhos verdes esbugalhados que ansiavam um esclarecimento rápido e a sua mente rezava a Deus para que ela lhe dissesse que tinha sido um erro.
- Sim! – Foi a única resposta que aquela mulher lhe deu.
- Como assim, sim? – Ana sentia as bochechas incharem de indignação a as suas veias da fronte começavam a latejar. – Vai mudar-me de quarto, é isso?
- Não! – Aquela serenidade das respostas revolvia uma inquietação crescente no rancor de Ana.
- Eu tenho mais uma semana paga para além desta…
- Não me parece!
    Ana perdeu a pouca paciência que lhe restava e descarregou naquela mulher todos os seus rancores e receios reprimidos. Agarrou o colarinho daquela senhora deformada pela abundância de gorduras e gritou-lhe bem perto das suas faces redondas e coradas.
- Sua maldita! Vadia! Não são pessoas como eu que sujam o mundo… São pessoas como tu que tornam todo o tipo de convivência humana impossível. Eu amei, e foi este o meu pecado… Mas tu roubaste uma mulher sozinha e grávida e abandonaste-a a uma sorte negra… Vai para o diabo que te carregue sua gorda virgem… O pecado que eu cometi é por ti muito desejado, mas o pecado que tu cometas é por mim repugnado…
    Ana pegou na sua mala e saiu rumo à rua e à incerteza com a dignidade de uma aristocrata. Assim que soube que a pensão já não estaria nas suas costas, Ana deixou que a sua miséria surgisse numa plenitude de um desespero gritante e profundo. Porque poucos conhecem a verdadeira profundeza que o desespero pode ter. Aquele desespero que apaga todas a hipóteses, que encolhe todas as escolhas, que elimina todas as esperanças. Aquele desespero que só se faz acompanhar por uma medo de tudo, porque a única coisa que verdadeiramente nos pertence é o nada. Um desespero atroz que tira tudo o que de básico e intuitivamente se possui até o ar que se respira se torna difícil de adquirir. Um desespero que se faz acompanhar pela miséria da rejeição de um tecto, de uma moeda, de um prato de comida, de um carinho. O desespero e a miséria quando se fundem tornam a divindade e a potencialidade de um ser humano, numa curta e previsível mortal existência. E as ideias de uma morte lenta e gloriosa começa a ser o único conforto de uma vida triste, e a mesquinhice de assistir ao mal dos outros torna-se o único motivo para sorrir… A miséria não tem uma receita eficaz, e quando um ser humano mergulha nos limites desta miséria e deste desespero o resto do mundo deixa de ter planos para esse individuo e esse individuo deixa de ter esperanças nesse mundo.

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