domingo, 22 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XVII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XVII



    As pálpebras pareciam coladas e o pequeno raio de luz feria-lhe a visão. Ana sentia que fazia um esforço sobre-humano para abrir os olhos e quando finalmente conseguiu a imagem pouco nítida começou a focar-se para seu espanto. Dois pares de olhos estranhos miravam-na com uma cautela exagerada. Uma mulher loura de cabelo impecavelmente apanhado foi a primeira a esboçar um sorriso torneado de um vermelho vivo.
- Olá querida! – A sua voz doce ecoou na cabeça de Ana que voltou a fechar os olhos. – Não querida! Já dormiste demasiado. Faz um esforço para te manteres acordada. – Ana encaixou aquela informação. Quanto tempo teria estado adormecida? E quem era aquela gente. A urgência que uma resposta lhe provocava fizeram-na arriscar umas poucas palavras.
- Onde estou?
- Estás em segurança querida! – A mulher loura deu-lhe aquela resposta insatisfatória e fixou o outro par de olhos. Eram uns olhos pequenos e astutos de um azul profundo, invulgar naquelas gentes. – Nós encontramos-te na rua e trouxemos-te para aqui… Mas não te preocupes com nada. Vais ficar bem minha querida. – Ana permitiu-se a um novo fechar de olhos. A sua cabeça doía-lhe e o esforço para se manter atenta às palavras daquela mulher cansavam-na de um forma incomum.
- Tenho fome! – Ana permitiu-se exprimir a sua miséria, porque era exactamente assim que se sentia, esfomeada. Fez mais um esforço para levantar a sua mão e pousou-a um pouco a medo sobre o ventre inchado. Não evitou um sorriso quando sentiu a sua menina. Era como se lhe quisesse dizer que está bem.
   Ana comeu uma sopa de carne com um apetite que compadeceu ainda mais a mulher loura. E só levantou novamente o olhar quando terminou. Os olhos azuis estavam fixados nela e pertenciam a um homem alto com uma constituição atlética. Tinha uns ombros largos e o cabelo era claro e muito curto.
- Is she okay? – As palavras que saiam da boca daquele homem confundiam a mente de Ana.
- She was hungry, but now she looks better.
- O que é que vocês estão para aí a dizer? – Ana sentiu-se em alerta.
-Não te preocupes minha querida! – A senhora loura levantou-se e conduziu pelo braço o homem até à beira da cama. – Este é o George e é americano. Não fala nada de português… E estás na casa dele.
    Ana assimilou aquela apresentação sem saber como se dirigir àquele ser humano que não entendia. Resolveu a situação com um abano de cabeça.
- E eu sou a Cristina, mas todos me tratam por Tina. – A mulher loura tinha finalmente um nome, para conforto de Ana. – Hoje ainda estás muito abatida. Vais descansar e amanhã falamos melhor, está bem assim? – Ana voltou a acenar a cabeça numa afirmação e deixou-se adormecer profundamente.
    O dia seguinte começou muito cedo. Ana abriu os olhos com os primeiros raios da manhã e perscrutou o quarto que começava a clarear. O quarto tinha as paredes brancas e era amplo. Uma janela demasiado grande deixava a luz entrar de forma agradável. Ana agradeceu o facto de aquela janela não ter um cortinado que fechasse o quarto àquele espectáculo matinal. Os olhos de Ana confirmaram a cama larga e confortável que o seu corpo já havia testado. Uma cómoda de madeira e couro com umas imagens douradas maravilharam-na. No canto oposto do quarto, um espelho de corpo inteiro reflectia a imagem de um homem adormecido numa posição desconfortável. Ana assustou-se e desviou o olhar para a imagem real. George estava sentado num pequeno cadeirão de couro vermelho e pendia o corpo para o lado esquerdo apoiando a cabeça na cova interior do cotovelo. Ana compadeceu-se daquela figura e levantou-se com a sua almofada numa mão e uma manta na outra. Colocou a manta por cima daquele homem de traços rudes que se suavizavam num respirar profundo. Quanto tentou levantar a cabeça de George para lhe colocar a almofada, este abriu os olhos preguiçosamente e quando percebeu que Ana estava de pé deu um salto.
- You can´t be up! Please! Go back to bed! – A atrapalhação de George e a falta de entendimento de Ana fizeram-na rir. Ela riu tão alto que George se sentiu ainda mais confuso.
- Não entendo nada do que estás para aí a dizer! – Ana falava muito pausadamente como se fosse essa a solução para um entendimento entre os dois. George encolhia os ombros e percebendo que não conseguiriam ter uma conversa resolveu fazer-se entender de outra forma. Pegou-a ao colo e depositou-a na cama. Após um arregalar de olhos de espanto, Ana voltou a rir-se.
- Podias ter dito logo que querias que eu voltasse para a cama.
- George! – O homem que envergava uma farda militar apontava para o peito enquanto proferia o seu nome. Depois apontou para Ana e esperou uma reacção.
- Ana! – Ana sentiu um baque no peito face a este primeiro entendimento. E ambos sorriram quando George repetiu Ana em voz alta.
- Where is your husband? – George preguntava devagar enquanto apontava para o dedo anelar. Ana sentiu um medo de responder. Podia fingir que não percebia a pergunta, mas não teve coragem de começar a enganar quem lhe tinha feito bem e tentou explicar-se o melhor que pode.
- Não sou casada! – Ana abanava a cabeça em negação enquanto falava. – Vou ser mãe solteira! – George pegou-lhe na mão e Ana retraiu-se perante aquele gesto.
- I understand… - Ana não percebeu o significado daquelas últimas palavras, mas sentiu a compreensão de George e emocionou-se. – Please don’t cry! Everything will be resolved. – Como George começava a sentir-se desconfortável resolveu levantar-se e saiu do quarto.
    Ana voltou a encostar-se na cama. Não queria passar mais um dia na cama. Tinha uma vida para resolver, mas neste momento sentia-se segura ali no meio daquela gente desconhecida que lhe estendera a mão e cuidara dela. Que futuro lhe estava destinado? Que caminho seguiria a partir daquele ponto? A consciência do incerto é intimamente provocadora de um medo efervescente que à medida que cresce se transforma em coragem para novas soluções. E esta nova coragem ultrapassa a dor, apaga o comodismo e incentiva novas descobertas e oportunidades.
- Ana! – George estava novamente à porta do quarto onde Ana se encontrava. Entrou sem pedir licença. Ana sorriu com este pensamento. Mesmo que ele lhe pedisse licença para entrar ela não o entenderia. George ajudou-a a levantar-se e encaminhou-a para fora do quarto. Ana sentiu-se aliviada por deixar aquele quarto e sorriu quando encontrou Tina na cozinha ampla e moderna. Não pode deixar de compará-la à cozinha escura com o chão de terra batida dos seus pais. Ali tratava-se de um espaço amplo com uns mosaicos verdes no chão. O que mais admirou Ana foram os electrodomésticos. Nunca vira nada assim. Tina abria a porta daquilo que chamava friger e tirava de lá ovos que saíam frios e manteiga dura. Aquela cozinha tinha electricidade e Ana não conseguiu evitar um pensamento dedicado a Francisco. Sentaram-se à mesa e tomaram um pequeno-almoço que deliciou Ana.
- Fico muito feliz que te sintas melhor querida! – Tina falava enquanto penicava uma fatia de pão.
- Como é que vim aqui ter? – Ana ansiava esclarecer melhor aquilo que lhe parecia um lapso de memória.
- O George foi a Angra do Heroísmo com outros militares aqui da base. Já sabes como é… Quando se apanham de folga querem é boa vida e umas meninas fáceis… - Tina trocou um sorriso cúmplice com Ana ambas seguras de que George não as perceberia. – Então parece que eles encontraram-te caída no chão à beira de um banco de jardim.
- Ah! – Ana sentia-se tão humilhada que não conseguiu dizer mais nada, mas Tina não percebeu o embaraço de Ana e continuou o seu relato.
- Às tantas da madrugada sinto bater na porta da minha casa, que é aquela ali… A última deste lado, vês? – Tina apontava pela janela larga da cozinha e obrigava Ana a concentrar-se nas indicações. Só se deu por satisfeita quando Ana percebeu qual era a sua casa. – Pois bem! Apareceu-me à porta um pouco embriagado e foi o John, que é o meu marido, vais conhecê-lo hoje à noite porque vais jantar lá a casa, mas depois combinamos melhor… Continuando, apareceu-me lá em casa e nós pensámos que ele estava bêbado. O John acompanhou-o até aqui com a intenção de o deitar, quando deu contigo estendida ali no sofá… O que é que ele podia fazer? Correu para casa e fez-me vir aqui em camisa de dormir. – Tina soltou uma gargalhada como se aquela fosse uma aventura deliciosa que contava a amigos. – Os homens nunca sabem resolver nada sozinhos, sabes como é. Mandei o George levar-te para o quarto e tranquei-me lá contigo. Mudei-te de roupa e passei a noite a colocar-te panos de água fria na testa para te baixar a febre.
- Eu tive febre? – Ana sentia que aquela não era a sua história.
- Sim queria! Deliraste durante dois dias!
- Dois dias? – Seria possível que não se recordasse de nada durante todo aquele tempo.
- Dois dias! Estou a dizer-te! Ficámos muito preocupados por causa do bebé, mas o médico ontem de manhã assegurou-nos que o pior já havia passado.
    Tina levantou-se para começar a arrumar a mesa e Ana acompanhou-a. Estava habituada às tarefas domésticas e lavou a loiça num instante para grande satisfação de Tina. O facto de terem água canalizada ajudou bastante a tarefa. Depois de Ana colocar a cozinha num brinco, George despediu-se com um aceno e saiu.
- Vai trabalhar querida! – Tina sentou-se num confortável sofá na sala e fez sinal a Ana para que a acompanhasse. – Temos de ter uma conversa querida!
    Ana assentiu. Devia uma explicação àquela gente.
- O George disse-me que não és casada!
- Não sou! Engravidei de um namorado que não quis assumir a paternidade! – Ana preparava-se para as ofensas e esperou sem resultado pelo olhar recriminador.
- Há homens no mundo que não deviam existir, querida! Não percas mais tempo a pensar nele… Um homem que não tem a dignidade de assumir os seus actos então é um fraco que não serve para mais nada… Ele até te fez um favor, querida! Já viste o que seria o resto da tua vida ao lado de um fraco! – Tina deixou escapar uma nova gargalhada para espanto de Ana. Seria ela uma pessoa razoável da cabeça? Ela não parecia ralar-se nada com o facto de Ana ser uma rapariga solteira e grávida. E ainda tinha a ousadia de ir mais além. Ao contrário de todos aqueles que Ana conhecera, Tina não a recriminava a ela, mas sim a Francisco. Ana começava a gostar sinceramente daquela mulher de estatura baixa, um pouco redonda com um rosto agradável e um sorriso fácil.
- Não tens família, querida? – Tina aprofundava o assunto numa curiosidade mal disfarçada.
- Tenho a melhor família do mundo! – Ana sorriu ao lembrar-se dos seus. Descreveu os pais como pessoas bondosas que amavam mais as filhas do que a própria vida. Falou de Glória e do seu casamento bem-sucedido. Descreveu Maria como a marota da família e provocou risadas intimas entre as duas enquanto descrevia a sua irmã mais nova.
- Então como é que acabas aqui numa ilha estranha e assim tão desamparada?
- Cheguei à Terceira com pouco dinheiro, com a intenção de estudar para professora primária. Tentei inscrever-me no próximo exame de admissão… - Os olhos de Ana fixaram o chão e por um momento voltou a sentir-se humilhada. – Mas não fui aceite.
- Como assim não foste aceite? Chumbaste no exame?
- Não! – Ana sentia-se a diminuir perante cada insistência naquela história, mas devia ser honesta com Tina. – Não me deixaram inscrever no exame.
- Porquê?
- Por causa da minha condição! Confundiram-me com uma mulher de vida fácil e a solução que me apresentaram para que eu tivesse acesso ao exame era pouco decente…
    Tina levantou-se do sofá numa fúria que se reflectia na vermelhidão das bochechas.
- Não acredito! Que cretino! – Tina andava de um lado para o outro, como se estivesse enjaulada. De repente voltou a sentar-se ao lado de Ana e puxou-lhe o rosto na direcção do seu com alguma brusquidão. – Ouve bem o que te digo Ana! Nunca deixes que esse tipo de gente te faça sentir inferior. Tu és muito melhor do que esse jovenzito que te engravidou. É muito fácil cometer erros e não ter que sofrer as consequências, mas a dignidade fica do lado daqueles que se responsabilizam pelos seus erros. – E libertando um pouco mais o rosto de Ana, Tina estreitou mais o olhar como se quisesse que as suas palavras ficassem gravadas a ferro quente na sua mente. – E esse senhor do magistério que sugeriu que te prostituísses, é tão inferior a ti que nem te chega aos calcanhares. Nem sempre as pessoas têm a capacidade para verem o ridículo dos incapazes e enaltecem-nos com prejuízo para todos aqueles que são superiores… Nunca julgues ninguém sem conhecer a sua história. – Tina perdeu o sorriso dos olhos e falava com a emoção das duas na voz. – Aqui nesta casa estarás protegida desse tipo de gente. Eu, o meu marido e o George vamos ajudar-te, a ti ao teu filho.

Sem comentários:

Enviar um comentário