domingo, 8 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XVI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XVI




        O Pórtico elevava-se na sua frente em três arcadas imponentes com duas torres nas extremidades. A alvura do edifício tornava-o mais celestial. Ana entrou na Sé Catedral de Angra do Heroísmo numa busca inconsciente de conforto. Os seus olhos não admiraram da forma devida as capelas que se sucediam numa dança de arcos e colunas majestosos que se intercalavam de forma harmoniosa. Ana sentou-se num dos longos bancos e fixou o frontal de prata do altar do Santíssimo Sacramento e por uns segundos permitiu-se apreciar a beleza daquele relevo.
- Ajuda-me Deus! Ajuda-me a não falhar! Ajuda-me! – Ana sentia o calor das lágrimas percorrerem-lhe as faces.- Não deixes que a minha filha nasça no meio da miséria! Por favor, permite uma vida digna para a minha menina.
    Os segundos deram lugar a minutos, e os minutos transformaram-se em horas. Ana não tinha para onde ir e deixou-se ali ficar até que um homem de meia-idade coxo lhe interrompeu a decadência de emoções.
- Temos de fechar a Sé por hoje! – O seu olhar apresentava-se doce e tornava as suas feições feias um pouco mais amenas.
- Não tenho para onde ir! – Ana expôs a sua situação àquele estranho sem se poder dar ao luxo de ter qualquer tipo de recato ou pudor. O homem deixou transparecer a atrapalhação que aquela confidência lhe provocara.
- Eu não sou o padre! Se quiser confessar-se deverá fazê-lo amanhã pelas onze horas da manhã! 
    Ana pegou na sua mala e levantou-se sem vontade. O homem fixou o seu olhar na barriga proeminente e não lhe escapou o facto de aquela rapariga não ter aliança. Subiu o olhar e assimilou aqueles olhos redondos inchados e angustiados, assimilou uns lábios curvados de dor e leu-lhe as rugas de preocupação que se formavam na testa daquela linda mulher. O homem, não podia virar as costas a um filho de Deus. Era um mero sacristão e sabia que não podia contar com a ajuda do sacerdote, que julgaria aquele rapariga como uma devassa que se tinha desviado do caminho sagrado de forma irremediável. Talvez se a moça mostrasse ares de ter algumas posses ainda se vislumbrasse uma salvação possível, mas assim mendiga era de todo impossível salvar a sua alma. Mas o sacristão compadecia-se daquela alma perdida e havia uma vontade interior que o impulsionava a ajudá-la. Sentou-se ao lado dela e agarrou-lhe a mão, num gesto de compreensão.
- O meu nome é Jerónimo, mas todos me chamam de coxo! – Ana deixou escapar um sorriso atrapalhado pelas lágrimas e sentou-se novamente.
- Eu sou a Ana e todos me tratam por Ana! – Os dois trocaram um sorriso cúmplice.
- Espera aqui só um momento! – O homem foi trancar a porta central da Sé e voltou a sentar-se ao lado de Ana. - Conta-me a tua história.
    Ana olhou aquele homem de estatura baixa e uma magreza extrema. O cabelo mal cortado abundava num preto baço e os seus olhos escuros brilhavam enquanto lhe sorria afectuosamente.
- Eu nasci na ilha do Pico! Tenho lá toda a minha família! – Ana apressou-se na descrição da família, já que a saudade teimava em atrapalhar-lhe as palavras. – Apaixonei-me por um jovem médico e engravidei. Como já deve ter reparado hoje estou numa terra estranha, sem ninguém, sem sustento, solteira e grávida!
- Mas porque vieste para a Terceira se tinhas a tua família no Pico? – Aquela rapariga já conquistara a compaixão do sacristão que começava a interessar-se pela sua história.
- Porque me recusei a viver na clausura da vergonha! Eu amei e engravidei. Estou a gerar uma nova vida dentro de mim. Isto não tem de ser motivo de embaraço. Não tem de ser uma condenação de viver uma morte em vida. Eu recuso-me a baixar o olhar a comentários maldosos. Eu recuso-me a afastar-me das pessoas supostamente dignas. Eu não sou uma marginal. Tenho sonhos, tenho projectos, tenho sentimentos e não posso deixar esta Ana que gosta de viver de rir de aprender, numa clausura eterna. As pessoas não podem olhar-me com superioridade nem julgar-me só porque não segui o que esta sociedade hipócrita me impinge. Está tudo ao contrário Jerónimo. – O sacristão sorriu-lhe ao notar que ela o tratara pelo nome e não pela alcunha. – Eu sou acusada com olhares, com comentários maldosos, com propostas indecentes. Sou julgada, rotulada, subjugada a humilhações que me magoam muito. Essas atitudes magoam-me. Essas pessoas magoam-me. E eu nunca provoquei uma dor nessas pessoas que tão facilmente me magoam… Porque é que sou eu que estou a ser julgada em praça publica se não fui eu que magoei ninguém… Mas que raio de sensibilidade é esta que rege a dignidade das nossas gentes?
    O sacristão sensibilizou-se com aquele discurso tão sentido. E tomou a decisão de ajudar aquela menina às escondidas do pároco.
- Vamos fazer o seguinte! – Ana esperava numa expectativa de esperança o que aquele bom homem lhe tinha para dizer. – Vou deixar-te passar a noite na sacristia. Sei que não é lá muito confortável, mas sempre é melhor do que ficares na rua. Tens de acordar cedo, para que o sacerdote não te apanhe aqui. Amanhã acordas e tentas arranjar trabalho. Vamos gerindo um dia de cada vez…
    Ana rodeou o pescoço daquele pequeno homem que Deus lhe colocara no caminho. Jerónimo apreciou o gesto espontâneo. As pessoas não costumavam dirigir-se assim a ele. O seu aspecto físico costumava repugnar os outros, antes mesmo de ele ter oportunidade de mostrar a sua personalidade. Mas naquela noite Deu colocou-lhe uma amiga na sua vida. Uma amiga… Eis uma novidade para ele.
    Os dois conversaram noite fora. Ana contou-lhe todos os pormenores. Riram das pirraças da pequena Maria. Emocionaram-se com união de Glória e João. Trocaram risinhos sobre a intimidade de Ana e Francisco. Choraram a morte de Fátima. Repugnaram-se com a atitude do professor Martins e por fim adormeceram no desconforto daquele banco de madeira.
     Ana deixou a Sé quando o sol começou a despertar. Abriu os braços àquele novo dia e rodopiou provocando uma gargalhada em Jerónimo.
- Boa sorte Ana!
    O pão seco e o pouco leite que Jerónimo arranjara tinham reconfortado o estômago de Ana que não comia nada desde a manhã do dia anterior. Ana seguiu as ruas sem um rumo certo, mas decidida a arranjar trabalho. Não podia continuar a dormir nos bancos da Sé, não só porque ambicionava mais do que isso, mas também porque não queria colocar o Jerónimo numa situação delicada. Ana sorria ao lembrar-se das horas de conversa que tinham tido no dia anterior. Ele nem se apercebera de como tinha saudades de conversar. E agora tinha alguém que naquela terra estranha que lhe dava guarida e amizade. Ana entrou num pequeno estabelecimento, incentivada pela placa que anunciava precisarem de empregado.
- Bom dia! – Ana cumprimentou o senhor anafado com um bigode farfalhudo que se encontrava atras de um balcão alto. Rolos enormes de tecido forravam as paredes, formando um arco-íris de cores e texturas. – Li a placa que tem colocada no umbral da porta.
- Ah sim! Estou a precisar de um funcionário aqui para a loja. Tenho este estabelecimento há já alguns anos, e tenho estado sempre sozinho, mas agora a minha esposa está muito doente e quero passar mais tempo com ela.
- Percebo! – Ana sentia-se esperançosa. – Então acha que posso ficar aqui a trabalhar para si?
- Dá a volta ao balcão para que eu possa mostrar-te o resto da loja e do armazém! – O homem mostrava-se muito amável com um sorriso acolhedor que gelou assim que viu a barriga proeminente de Ana.
- Vai perdoar-me a pergunta, mas o seu marido não se importa que trabalhe? – Aqui estava a questão que preocupava toda a gente assim que viam a barriga de Ana.
- Não tenho marido, pelo que não tem com que se preocupar. – Ana sorriu ao homem tentando mostrar que esta afirmação era positiva, mas adivinhando o desfecho daquela história. O homem até então amável, tornou- se de repente muito atarefado, com muitas coisas para fazer e depois um pouco frio, até que a despachou com um candidato inventado com quem já se havia comprometido.
    Ana saiu um pouco mais desmotivada, mas sem perspectivas de desistência no seu horizonte. O sol foi seguindo o seu caminho num ritmo mais acelerado do que o de Ana que chegou ao final do dia exactamente como começara… Sem nada… Apenas muito mais cansada. Quando voltou para a Sé, Jerónimo não lhe perguntou nada, uma vez que adivinhara a resposta nas feições de Ana.
    Os dias passavam-se numa repetição cruel de esperança e desilusão com apenas duas pequenas refeições diárias que Jerónimo conseguia arranjar-lhe. O seu único consolo residia nas conversas que tinha com aquele novo amigo. Os desabafos, os planos para o futuro, os sonhos, as histórias, as memórias. Tudo era partilhado durante aquelas horas mágicas em que ambos se fechavam para o resto do mundo.
    Algumas semanas passaram-se na mesma monotonia triste e desincentivadora e a chuva tomou o lugar do sol. Ana correu para abrigar-se na Sé. Isto significava que já não podia continuar à procura de trabalho naquele dia. Aproveitaria para lavar-se na bacia minúscula que Jerónimo lhe arranjara, com a água fria a que já se acostumara e depois descansaria um pouco. A barriga pesava-lhe e a falta das forças resultava na sua perca de peso visível ao longo daquelas semanas. Ana rezava todos os dias, para que a sua vida presente não se manifestasse em falta de saúde na filha. Entrou na Sé e procurou Jerónimo com os olhos. Atravessou o corredor central sem reparar nos altares seguidos e espreitou para dentro da sacristia recuando num salto quando avistou o sacerdote. As feições zangadas fizeram com que Ana se encolhesse na sombra da porta encostada e escutasse a conversa.
- Não te bastava seres coxo, tinhas de ser também burro! – A voz grave parecia relampejar cada palavra.
- Mas ela precisa de ajuda! Não posso deixá-la desamparada!
- O povo comenta que todos os dias à tardinha entra uma rapariga na Sé que não sai! Encaram este facto como se se tratasse de um mistério, mas em breve não serão tão benevolentes nessa avaliação!
- Mas não podemos virar as costas aos necessitados. Misericórdia Senhor! – Jerónimo debatia-se contra aquela voz acusadora.
- Não quero mais essa vadia aqui dentro, percebeste? – A voz agora era um murmúrio ameaçador. – Já te tinha avisado e tu fizeste ouvidos moucos. Não quero essa mulher de má rês novamente na minha Sé… Se não for assim a igreja deixa de ter a bondade de albergar a tua mãezinha no convento onde ela beneficia do tratamento misericordioso das nossas irmãs.
- Não vou fazer isso! E não me ameace, porque o senhor padre tem mais a perder do que eu… Ai se eu começo a abrir a boca sobre o que sei… - Jerónimo foi interrompido por um estalo que ecoou por toda a Sé.
- Não me voltes a ameaçar coxo… Quando eu voltar amanhã espero ter a feliz notícia de que já não foi avistada a misteriosa mulher a entrar na Sé.
    Ana sentiu-se tremer e encolheu-se mais quando o sacerdote saiu de rompante passando mesmo ao seu lado sem dar pela sua presença. Assim que aquele personagem alto e intimidador que envergava uma túnica da mesma cor que a sua alma atravessou o pórtico da Sé, Ana esgueirou-se para dentro da sacristia. Sentiu uma dor aguda no peito quando viu Jerónimo sentado no chão com a cabeça apoiada num móvel escuro, que possuía gavetas trabalhas com puxadores em ouro. Ali estava um miserável a jorrar sangue pelo lábio encostado a um móvel que ostentava poder, e Ana sentiu mais admiração por aquele ser humano do que pelo imponente móvel em jacarandá.
- Estás bem Jerónimo? – Ana tirou do bolso da sua saia um lenço branco que a acompanhava sempre, uma vez que tinha sido bordado pela mãe, e limpou-lhe o canto do lábio.
- Nunca me senti melhor! – Jerónimo tentava sorrir de forma a não ser mais uma preocupação na vida de Ana. – Apenas caí! Eu sou assim mesmo desajeitado… E o facto de ser coxo não ajuda. – O riso que acompanhou esta afirmação foi tudo menos sincero. Ana não quis dizer-lhe que ouvira a conversa, pelo que se limitou a mentir.
- Tenho uma excelente notícia! – Ana sentou-se também no chão e encostou-se ao móvel.
- Ainda bem! Estamos ambos a precisar de boas notícias! Então do que se trata?
- Arranjei trabalho numa casa! Vou servir e fico lá permanentemente. Vou ter um quarto com uma cama confortável e os meus futuros patrões compadeceram-se da minha situação.
    Jerónimo levantou Ana num salto e pôs-se a dançar com ela.
- Fico tão feliz Ana! Tu mereces o mundo… E vais ter uma refeição decente, finalmente… - Ambos riam alto e comemoravam a falsa notícia.
    Ana pegou na sua mala e despediu-se de Jerónimo com a promessa de que o visitaria sempre que possível. O riso acompanhou-a sempre até que virou a primeira esquina e as lágrimas voltaram a impor-se ao riso. O mesmo desespero dos desalojados voltou a instalar-se e os seus olhos percorriam as ruas numa ansiedade miudinha. Procurou um beco escuro e encolheu-se na ombreira de uma porta descaída, adivinhando que ninguém morava naquela casa. O frio gelava-lhe as extremidades e os soluços deram lugar a um cansaço que resultou num fechar de olhos que só despertou no dia seguinte.
    Os dias passaram-se com Ana a percorrer as ruas da cidade sem rumo. De vez em quando aventurava-se a pedir trabalho a alguém, mas a resignação ocupara cada átomo do seu ser. Ana acabara de perceber que o mais fundo que uma pessoa pode descer na sua miséria é quando atinge a aceitação da mesma como inevitável. A resignação é o estado de espírito mais degradante que pode haver. É pior do que a fome, a tristeza, a humilhação. Quando se enfrenta o difícil com esperança, significa que ainda existe uma pouco mais para desiludir… Quando se atinge a resignação, então atingiu-se o fundo do poço.
    Ana perdeu a noção do tempo. Não se lembrava de há quanto tempo andava a deambular por aquelas ruas já tão conhecidas. As pessoas já a olhavam de lado e cochichavam mexericos indignos. Ana sentia uma dor permanente no estomago. Não sabia se era fome ou outra coisa qualquer. A visão começava a desfocar-se com alguma regularidade e as pernas cediam facilmente. Ana sentiu a aragem fria que avisava o fim de mais um dia e encostou-se num banco do jardim sem se preocupar com os transeuntes que a miravam. A noite caiu fria, mas Ana já não a sentiu. O seu corpo tombou no chão, sem que Ana o notasse… a sua mente apagara-se finalmente.

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