sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XIV - Na Base da Montanha


CAPÍTULO XIV


    As entranhas revolviam-se de uma forma que lhe parecia impossível e expulsavam compulsivamente tudo o que se encontrava alojado no estômago de Ana. O mar fustigava aquela embarcação que era agora demasiado pequena e o sal entranhava-se na sua pele como a água se entranha na terra. As horas daquela viagem pareceram-lhe dias e quando finalmente teve a ilha pretendida no seu horizonte, Ana não teve forças para sorrir.
    Apesar do seu estado débil, Ana pegou na sua mala e saiu do barco. A primeira sensação que teve foi de imensidão. Aquele porto nada tinha de parecido com os portos da sua ilha. A azáfama era muito mais ligeira e as cabeças misturavam-se sem que lhe fosse possível personalizar cada individuo. A cidade erguia-se logo por cima do porto, como se o fosse abafar, e as escadas ingremes que Ana fixava naquele momento pareciam-lhe intermináveis. A subida foi-lhe quase tão penosa como a viajem de barco e o seu desejo de chegar depressa à pensão onde ficaria instalada aumentava a cada degrau.
No cimo das escadas, que agora não lhe pareciam tão penosas, Ana permitiu-se um deslumbre. As ruas palpitavam trocas comercias, trocas de palavras, trocas de vivências e ninguém parecia reparar demasiado tempo em ninguém. Era o lugar ideal para ela que queria passar despercebida. No meio de tantas casas e de tanta vida, as pessoas não deviam ter tempo para olhar duas vezes para a sua condição e comentar a falta da aliança no dedo. Ana só via tanta gente junta nas festas do Sr. Espírito Santo. Mas ali era um dia normal que reunia todas aquelas pessoas em tarefas quotidianas. O cheiro a mar voltou a entranhar-se nas narinas e revolveram-lhe o estômago apressando-a no seu objectivo de encontrar uma cama. Ana tirou um papelinho do bolso com o nome e morada da pensão e pediu indicações a uma senhora de cabelo branco apanhado de forma desajeitada por uns ganchos demasiado grandes. O sorriso que acompanhou as indicações deixou à vista uma falta significativa de dentes.
- Se subires esta canada e virares à direita no cimo dás logo com a pensão.
- Obrigada! – Ana fez um esforço para retribuir o sorriso caloroso que recebia da senhora.
- Vai ser uma menina!
    Esta afirmação deixou Ana um pouco perplexa. Ainda não pensara no seu bebé com um sexo definido e agora tinha naquele olhar cansado rodeado por rugas de sabedoria a certeza de que aquela mulher tinha acertado. Ela teria uma menina. Uma menina que seria só sua…
    A pensão era simples mas asseada. As paredes do quarto deixavam transparecer humidade nos cantos e disfarçavam mal as paredes de pedra mal caiadas. A cama estreita, uma cómoda e uma cadeira com pernas disformes contabilizavam a totalidade do seu conteúdo.
- Tem de pagar a semana sempre adiantado. – A dona da pensão era uma mulher com um corpo abundante que parecia transbordar por debaixo da saia demasiado rodada. O peito pesado movia-se debaixo de uma camisa contrabalançando o rebolar das ancas.
- Claro! Aqui tem o dinheiro para a primeira semana! – Ana esticou o dinheiro àquela mulher constantemente ofegante que o contava cuidadosamente como se tivesse dificuldades na soma.
- Quando é que o seu marido vem? – A mulher não conseguiu conter a sua curiosidade.
- Não tenho marido! Vou ficar aqui sozinha. Vou inscrever-me no exame para entrar no magistério… Vou ser professora. – Ana profetizou aquele futuro que ela buscava com uma ansiedade desmedida, mais para se convencer a si mesma do que à dona da pensão, recebendo da mulher um encolher de ombros desmotivador. Assim que a porta do quarto se fechou e Ana se sentiu finalmente sozinha deixou-se cair na cama e adormeceu até ao dia seguinte.
    O dia amanheceu cedo numa nova esperança. Ana encheu uma bacia de água fervida e equilibrou-a até à intimidade do seu quarto. Depois de se lavar, vestiu um vestido azul-escuro com uma gola muito bem engomada em renda e prendeu o cabelo num coque sem que deixasse escapar algum cabelo mais rebelde. Ana mirou-se naquele espelho tosco que tinha por cima da cabeceira e aprovou o seu visual discreto e um pouco conservador. Parecia uma professora e essa ideia fê-la sorrir.
    Ana desceu as escadas da pensão a saltitar e dirigiu-se à pequena cozinha para beber um pouco de leite e comer um pão com queijo. Depois de saciada saiu da pensão dirigindo um sorriso afectuoso á dona da pensão e recebendo em troca um revirar de olhos. Quando Ana encontrou o ar frio da manhã fechou os olhos e deixou que os raios de sol lhe aquecessem o espirito naquela manhã fria de inverno. O papel com a morada do magistério estava guardado na palma da sua mão como se se tratasse de um tesouro. Ana começou a andar sem rumo apenas observando o que no dia anterior não tinha sido devidamente apreciado. Assustou-se com a buzina de um carro preto que quase a atropelara. Ali ela teria de se deslocar sempre em cima dos passeios, uma vez que os carros eram abundantes. As casas encostadas umas às outras delineavam as ruas em calçada. Não se via ruelas em terra batida e tudo parecia muito asseado. As pequenas varandas eram ornamentadas com flores variadas em vasos cuidados para o efeito. Ana anda até chegar à Praça velha. Os seus olhos deslumbraram-se com a grandeza daquela obra. A calçada da praça era ornamentada em granito banco e basalto preto, formando desenhos que Ana tinha medo de pisar. À volta da praça espalhavam-se altos postes com um vidro em cima como se fossem lanternas. Ana aproximou-se e inspeccionou aquelas altas lamparinas lembrando-se da explicação que Francisco lhe dera sobre a electricidade. Ana sentiu um aperto no peito ao lembrar-se daquela noite e fechou os olhos visualizando as feições de Francisco bailando a chamarrita com ela naquele baile de uma freguesia simples. O sentimento continuava a palpitar-lhe nas veias e percorria-lhe o corpo descaradamente provocando-lhe agonias várias. A imagem do jovem médico invadia-lhe a mente e enchia-lhe o peito de sensações. Os olhos rasaram-se com uma água saudosista e fixaram o Monte Brasil que impunha o seu verde naquela paisagem citadina. Ana forçou-se a ultrapassar a saudade súbita que lhe invadira a alma e concentrou-se no seu futuro. Apertou o papel na palma da mão e seguiu rumo ao magistério. O edifício apresentou-se à sua frente numa sequência previsível das casas que se multiplicavam alvas com contornos de basalto. Ana entrou a medo e deparou-se com um corredor escuro com o chão de soalho. Ao fundo uma secretária escura de carvalho preencheu os receios de Ana que avançou vagarosamente fixando. Não se encontrava ninguém para a receber.
- Está aí alguém? – Perguntou Ana num tom de voz baixo como se tivesse receio de acordar alguém. Incentivada pela falta de resposta Ana avançou um pouco mais e espreitou por uma porta entreaberta onde descobriu uma senhora de cabelo branco curto que se equilibrava sobre um banco vacilante estivando-se numa tentativa de alcançar uma pasta de arquivo na última prateleira. Ana prevendo que aquela acção seria mal sucedida aproximou-se mesmo a tempo de seguras a senhora antes de esta cair.
- Oh! – A senhora rondava os cinquenta anos de idade e tinha uns olhos pequenos e astutos que se perdiam numas faces redondas e fogueadas. – Muito obrigada minha querida! – A mulher alisou a saia cinzenta com as palmas da mão e recolheu a pasta pretendida do chão com um ar triunfante. – Então! O que a traz por cá? – A mulher observava agora Ana com um olhar avalista que se demorou na barriga proeminente.
- Quero inscrever-me para fazer o próximo exame de acesso ao curso de professora. – Ana sentia as pernas a tremerem-lhe, mas a voz saiu límpida e clara, não deixando dúvidas do assunto que a fizera enfrentar um mar revolto de inverno.
- Claro querida! Vou encaminhá-la para o gabinete do professor Martins. – A mulher entrelaçou o seu braço no braço de Ana conduzindo-a pelo corredor em direcção a uma escada que subiram sem pressas. De frente à porta pretendida a mulher entrou sozinha, deixando Ana à espera. Quando a porta se voltou a abrir a mulher piscou um olho cúmplice a Ana. – Podes entrar minha querida!
    O gabinete era mais pequeno do que Ana imaginara e encontrava-se apinhado de pastas, livros e resmas de folhas. Uma secretária pesada e escura alongava-se em frente a uma janela alta que deixava entrar a luz descaradamente. Um homem debruçado sobre a secretária observava Ana por cima de uns óculos redondos que lhe assentavam na ponta do nariz. Como o homem não lhe dirigira palavra Ana avançou na sua direcção e apresentou-se de forma cordial.
- Bom dia! Eu sou a Ana Ferreira! – Ana esticou a mão no intuito de cumprimentar, mas como o homem não mexeu um único músculo, Ana baixou a sua mão, esticou um pouco mais o queixo e sentou-se sem pedir licença numa atitude desafiadora. – Quero inscrever-me no exame de admissão ao curso de professora.
- O próximo exame é só em Maio! – A resposta seca acompanhada por aquele olhar que não piscava deixou Ana desprotegida por uns segundos.
- Muito bem! Eu vim da ilha do Pico de propósito para isto! Gostava de ter mais alguma informação!
- O seu marido ficou no Pico ou veio consigo? – A pergunta mordaz foi feita com um desviar de olhos para o dedo anelar de Ana.
- Não tenho marido?
- Então está simplesmente gorda? – Ana sentiu-se estremecer perante aquele comentário infeliz.
- Eu não tenho problemas de peso graças a Deus! Estou grávida! Este é um facto fácil de se constatar mesmo para mentes mais atrasadas. – Ana não conseguiu evitar a ironia que resultou num primeiro movimento de músculos daquele homem que se levantou, contornou a secretária e depositou-se ao lado de Ana.
- Estás grávida e sem marido?
-Sim!
    O homem que começava a ter de lidar com a calvície disfarçando-a com um puxar de cabelo do lado oposto que o tornava ridículo, aproximou-se mais de Ana.
- És uma mulher fácil e bonita! Isso pode ser um ponto a teu favor!
    Ana sentiu-se humilhada naquele comentário, mas a sua garganta apertou-se impedindo uma resposta afiada de sair. Tinha de se conter. Enfrentaria aquela humilhação e outras tantas desde que conseguisse atingir o seu objectivo. É fácil humilhar aqueles que supostamente estão numa posição frágil. É fácil e cobarde. E quem se esconde neste tipo de atitude é porque sofre de maiores fragilidades escondidas e dissimuladas por atitudes superiores e cruéis.
- O próximo exame é em Janeiro, mas não temos tempo suficiente para te avaliar convenientemente até lá, não concordas?- Ana permanecia rígida e muda face ao roçar das pontas dos dedos amarelas do tabaco pela sua face. – Mas se te portares bem até Maio então poderás fazer o teu exame! – O olhar lascivo aproximou-se de Ana que lhe sentiu um bafo pestilento que ofegava sobre a cova do seu pescoço. Ana não aguentou mais e levantou-se libertando um punho fechado sobre a virilha do professor Martins que rugiu de dor. Ana não fez um movimento de arrependimento, nem esticou uma mão para ajudar aquele homem que rebolava de dor. Simplesmente saiu. Quando passou pela secretária despediu-se convenientemente.
- Talvez seja melhor levar gelo ao professor Martins! – Ana leu um olhar risonho de aprovação na cara redonda daquela mulher que lhe dirigiu um suave sorriso.

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