Capitulo XXIV
Os preparativos para a festa da Nossa Senhora dos Milagres ocupavam os
murmúrios e as tarefas da Vila do Corvo. O palco estava a ser montado e umas
fileiras de lâmpadas coloridas jaziam no chão à espera de alguma utilidade. O
ar transportava um cheiro a vinha-d’alhos e maresia. Os mais jovens
passeavam-se ociosamente com roupas leves e escassas, na esperança de
conseguirem um tom mais bronzeado. Vanda sentia o calor de Agosto entranhar-se
nos seus poros numa humidade que a incomodava. O mar azul balouçava-se
preguiçosamente numa eterna promessa de frescura.
Vanda seguiu o seu caminho cumprimentando todos os que se cruzavam no seu
caminho.
- A senhora professora está melhor? – Perguntavam os mais novos.
- Já cá fazia falta. Espero que para o ano fique na nossa escola
novamente. – Constatavam os pais dos seus alunos.
- Veio para ficar? – Indagavam os curiosos.
E ela ia respondendo em curtas frases e acenos de cabeça devolvendo
sempre o sorriso. Dirigia-se para o seu futuro e não estava nervosa. Pelo
contrário, sentia-se segura daquele passo que ia dar. Não queria mais recantos
obscuros na sua vida. Não queria mais meias verdades. Não queria mais dúvidas a
minar-lhe o passo seguinte. As meias verdades são parideiras de passos em falso.
As dúvidas são minas mortíferas numa boa decisão. A vida é como um riacho que
corre livremente quando as suas águas são limpas e fica estagnado quando as
águas são turvas e sujas.
Vanda chegou ao destino e os seus olhos admiraram-se quando viu Vasco
encostado ao muro branco que torneava a casa.
- Olá Vanda! – Vasco tinha uma olhar seguro quando a fixou. Ele estava
mais moreno e o cabelo queimado pelo sol e pelo mar dava-lhe um ar rude e apetecível.
Ele vestia umas bermudas largas e uma t-shirt que lhe definia os ombros largos
e a cintura estreita. Vanda não pode deixar de admirá-lo naquele momento.
- Olá Vasco! Vim tratar do assunto do meu filho…
- Eu sei! – Vasco desencostou-se do muro e aproximou-se dela
provocando-lhe um formigueiro no estomago. Percorreu-lhe o braço desde o ombro
até ao punho com o polegar. Aproximou-se mais um passo até que não houvesse
mais passos possíveis e aquela proximidade enevoou o bom senso de Vanda. Vasco
agarrou-lhe um caracol e quando Vanda sentiu todo o seu corto e discernimento
dormentes, Vasco enlaçou na sua mão um envelope e sussurrou-lhe ao ouvido.
- Abre apenas depois da conversa que vais ter lá dentro. – E pousou-lhe
um beijo demorado na testa. – Boa sorte!
Vanda demorou uns minutos a recuperar todas a suas faculdades
intelectuais e olhou para o envelope branco com curiosidade. Ponderou abrir o
envelope antes de enfrentar Vera e Marco. Se havia ali algum tipo de ultimato
preferia saber antes. Com o envelope a pesar-lhe nas mãos Vanda sacudiu-se
arrumou o envelope na mala e rodou a maçaneta.
- Está alguém em casa? – Vanda abriu a porto como era hábito naquela
terra. Vera surgiu-lhe assim que ela formulou a pergunta. Tinha os olhos
inchados e denunciadores de noites mal dormidas.
- Temos estado à tua espera. – Vera exprimia-se num fio de voz que fez
Vanda vacilar por uma fracção de segundo. Mas ela tinha um propósito e ia segui-lo
até ao fim. – Entra. – Vera estendeu o braço indicando-lhe a sala de estar.
Vanda reparou na desarrumação. Tinha dois copos de sumo meios vazios em cima da
mesa de centro. Uma manta muito usada caia pelo sofá roçando o chão. O chão de
mosaico de cerâmica apresentava nódoas e migalhas. E Vanda sorriu… Era uma casa
habitada e vivida como a sua já há muito não era.
- Esta vai ser uma conversa difícil… Para todos nós. – Vanda deixou Vera
sentar-se primeiro e escolheu o lado oposto do sofá para se sentar. Marco sentou-se
numa poltrona ao lado da mulher. Parecia ter emagrecido e a pele estava com um
tom pestilento. Não era o mesmo homem atraente que Vanda recordava.
- Eu sei… Mas a espera mata-me! Só quero que saibas que eu vou lutar pelo
meu filho com todas as minhas forças. – Vanda assentiu. Não valia a pena
protestar, porque ela sabia que Vera falava verdade.
- Eu queria que o Matias estivesse presente. – Vera abriu a boca e
desviou um olhar espantado para o marido.
- Devíamos poupar o Matias ao máximo. – Marco apressou-se em socorro da
mulher.
- O que nós devemos fazer é tratar o Matias com respeito. E só é possível
respeitar o outro quando lhe damos a verdade do que ele é. O Matias tem uma
parte da sua vida que é dele e que só a ele pertence essa verdade. Eu quero que
o Matias esteja presente.
Vera e Marco pareciam perdidos. Foi a Dona Emília é que resolveu aquele
impasse entrando na sala com o Matias. Vanda sentiu-se vibrar de alegria quando
viu o seu filho com um ar saudável, as bochechas rosadas e os olhos brilhantes
de diabruras infantis. O seu coração deu um pulo. Era como se finalmente o seu
corpo reconhece-se a finidade dos dois, mas o corpo apenas reagia ao que já
sabia, e não a nenhum estímulo paranormal.
- Eu acho que o Matias tem direito a participar nessa conversa. Afinal
ele já é um homenzinho, não meu querido? – A avó depositou-lhe um beijo no
cocuruto.
- Se me continuares a tratar assim nunca vou ser um homenzinho.
Ninguém conseguiu evitar o riso e todos aqueles olhos pousados em Matias,
pertenciam a pessoas que o amavam profundamente.
- Olá Matias! – Vanda já não se sentia tão segura. O olhar desconfiado
que o filho lhe dirigiu feriu-a por dentro. Um olhar frio e indiferente de uma
pessoa amada é sentido mais profundamente do que um carinho. – Senta-te aqui. –
Vanda apontou-lhe o lugar vago no sofá entre ela e a Vera. – Vamos conversar um
pouco pode ser Matias?
Ele acenou a cabeça afirmativamente mas sem grande vontade.
- Tu já és muito crescido e é por isso que te vamos tratar como um
adulto. – Ele revirou os olhos pressentindo uma longa ladainha de cautelas
própria dos adultos. – Vou contar-te um pouco da minha história. – Vanda respirou
fundo e decidiu que a verdade é útil na vida das pessoas, mas quando se trata
de uma verdade demasiado pesada deve ser doseada na sua administração. Então
decidiu que não contaria nada acerca do pai de Matias a não ser que ele questionasse.
– Quando a Vera foi para Lisboa para te ter, ela deu entrada na maternidade
onde eu também estava. Estávamos as duas grávidas.
- Mas a professora não tem filhos! – Matias mostrava-se curioso. Afinal
não parecia uma conversa chata.
- Tenho Matias! Mas já chegaremos lá, meu querido. – Vanda pegou numa mão
de Matias e acariciou-a enquanto falava. – Como te estava a dizer, eu e a Vera
entramos em trabalho de parto as duas praticamente ao mesmo tempo e no mesmo
hospital. Foi um dia muito difícil e muito confuso no hospital porque os dois
partos eram particularmente difíceis. Ambas tivemos dificuldades no parto… E
naquela aflição de haver dois partos difíceis e bem-sucedidos houve muitas
confusões. Ambas demos à luz dois rapazes. O meu rapaz nasceu de boa saúde. –
Vanda fez uma pausa estudando o rosto fechado de Matias. Ele não deixava
transparecer nada, apenas curiosidade relativamente ao desfecho daquela
história. – O bebé que a tua mãe deu à luz morreu.
Todas as respirações sustiveram-se em uníssono e todos os olhos estavam
colados em Matias que continuava sereno.
- Não sabia disso! – Foi tudo o que Matias disse, intimidado por aqueles
olhares. Não percebia bem o que queriam dele.
- Matias! O que te vou dizer agora é muito importante. E quero que,
depois de ouvires o que te vou contar, digar exactamente o te vai na cabeça. Se
quiseres gritar, então grita… Se te apetecer chorar, chora… Não te reprimas.
- Conta lá! – Matias estava curioso, mas tratava-se de uma curiosidade
ansiosa que o deixava nervoso.
- Tu eras o bebé que sobreviveu…
Matias encolheu as sobrancelhas num gesto de dúvida.
- Mas disseste que o bebé da minha mãe morreu… - Ao formalizar a sua
dedução em voz alta, Matias abriu muito os olhos num entendimento instantâneo. Virou-se
para Vera e abraçou-a com toda a sua força. Vera acolheu o filho naquele colo
quente e conhecido e deixou-o estar até que ele voltou a encarar Vanda.
- Estás a dizer-me que tu é que és a minha mãe?
- Sim Matias. – Vanda reparou na diferença de tratamento. Ela não teve direito
ao abraço apertado. O seu filho não via nela um refúgio seguro. Quando precisou
de consolo virou-se para Vera. Foi nesse momento que Vanda percebeu que é mais
forte o amor que é construído no quotidiano rotineiro do que o amor de sangue. –
Eu quero explicar-te que nunca te abandonei. Foi um erro que aconteceu nesse
dia. Eu estava muito doente e internada numa clínica e naquela confusão
trocaram os bebés. A culpa não foi de ninguém…
- Está bem… Mas o que é que queres agora? – Matias estava irredutível.
Ele queria saber o que é que enfrentava, e Vanda sabia que nunca podia força-lo
a amá-la como mãe. Ele já tinha esse lugar preenchido na sua vida. Vanda viu a
lágrimas dele a aflorarem os olhos e sentiu-se vacilar. Pegou-lhe em ambas as
mãos e quando sentiu aquele contacto de pele soube imediatamente qual era o seu
caminho.
- O que eu quero é que tu saibas a verdade. Não é bom viver-se de
mentiras, porque elas surgem sempre nos piores momentos para nos assombrarem.
Se viveres sempre conhecedor da verdade é mais difícil surgirem-te surpresas
desagradáveis pelo caminho. – Matias acenou e não retirou as suas mãos das de
Vanda. – Eu também quero que tu saibas que eu te amo. – Vanda sentiu a sua voz
faltar-lhe. Não era altura para ser forte. Era o momento que devia mostrar-se
por completo ao seu filho. – Eu corri este país à tua procura e desejei-te
muito ao longo destes anos, e quero que saibas isso. Quero que tenhas
consciência do quanto amado tu és. – Vanda sentiu o sabor salgado das lágrimas
no canto dos lábios. – E quero que saibas que fico muito contente por teres
tido esta família na minha ausência. – Todos partilharam lágrimas sentidas.
Todos sentiam aquele momento. Todos temiam o que seria a partir daquele
momento. – E quero que fiques comigo…
Todos voltaram a suster a respiração. Os olhos de Vera faiscaram.
- Eu prefiro saber a verdade. – Matias abraçou Vanda com um carinho que a
emocionou. O abraço apertado transportava os anos de atraso. Matias afastou-se
e voltou a pegar nas mãos de Vanda. – Mas na minha cabeça e no meu coração a
minha mãe continua a ser a Vera e o meu pai é o Marco. E na minha família tenho
os meus irmãos e os meus avós… E tu vais ser a minha tia quando casares com o
tio Vasco… É assim que eu sinto estas coisas. Não me obrigues a ir para um
quarto que não é o meu…
Foi tão simples quanto isto. Um problema que na maioria dos casos é
resolvido pelos adultos durante anos e sessões intermináveis de audiências e
terapias estava resolvido pela sensatez de uma criança… A solução está sempre
no mesmo sítio onde reside o problema. O problema é que muitos se acham donos
da mesma solução.
Esta história está cada vez mais emocionante. Agarra-nos por completo. E dá-nos lições muito sábias. :)
ResponderEliminarParabéns! beijinho
Liliana Vieira
Obrigada pelo incentivo :) Em breve começo o quarto livro :) Espero que continues a gostar... Bjocas
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