Capitulo XXI
O coração martelava dentro do peito numa
inquietação vulnerável e todo o seu corpo reagia a cada impacto do batimento. A
cabeça parecia pesar toneladas, motivo pelo qual Vanda encostou-a ao vidro do
autocarro enquanto olhava a paisagem sem a absorver. A culpa, o amor, a
amizade, a lealdade, a paixão, a vontade misturavam-se numa sopa passada em que
já não conseguia distinguir o ingrediente principal. Durante a sua infância
guardava como recordação o sentimento de felicidade. Fechava os olhos e via o
rosto sereno e gasto da mãe sorrindo-lhe por entre as olheiras carregadas de
horas de trabalho. O pai chegava a casa ao entardecer e pegava-lhe ao colo
atirando-a ao ar como se ela fosse uma pena. E ela voava como nunca mais foi
capaz de voar. A sua voz grossa tornava-se suave e doce. “Olha a minha pequena
fada a voar!”. “Eu sou uma fada pai?. “ És a mais talentosa das fadas.”. E ela
acreditava. Sentia ainda aquelas mãos grandes e duras profundamente marcadas por
calos novos que se formavam ao lado dos velhos. Aquelas mãos eram sinónimo se
segurança e confiança quando se sentia no ar prestes a cair. Vanda não sabe
precisar o exacto momento em que começou a sentir vergonha dessas mãos
demasiado deformadas para pegar numa caneta. A imagem do pai dentro do banco a
ser atendido por um senhor distinto invadiu-lhe a mente. Ela estava ao seu lado
e corou de embaraço quando o senhora segurou delicadamente as pontas da folha
onde o pai assinava numa tentativa frustrada de conseguir uma melhor
assinatura. O embaraço transformou-se em raiva quando o pai puxou da sua
humildade e desculpou-se com o facto de ter poucos estudos. O senhor bem
educado sorriu um sorriso condescendente que trucidou o orgulho de Vanda. A
adolescência é uma idade parva em que se perde a inocência de criança sem se
ter adquirido a esperteza de um adulto. É um período em que este vazio é
preenchido por valores que definem o futuro. E Vanda encheu-se de rancores
contra as suas origens humildes. Insurgiu-se contra Deus e o diabo. Chorou e
fez chorar aqueles que a amavam. Colecionou amarguras, vendo em todas as
atitudes dos pais afrontas à sua dignidade sem perceber que não a tinha. A
dignidade só se eleva antes da critica. Quem critica sem ter criado argumentos
na sua vida para exemplificar o contrário está isento de dignidade.
Vanda adormeceu e sonhou com a avó. O seu olhar
doce, na noite em que Vanda expulsara os pais da sua vida, estava novamente ali
depositado nela. E aquele olhar magoou-a profundamente. Não era um olhar de
acusação, nem tão pouco de desdém. Era pior. Doía mais. Era um olhar de pena.
- Quando plantamos o mal, nasce um inferno! – As
palavras esquecidas daquela velhota analfabeta renasceram na sua mente.
A avó acolheu-a nos seus braços e na sua vida. E
Vanda poderia ter aproveitado aquela nova oportunidade numa aldeia em que
ninguém se distinguia. Uma aldeia feita de gente humilde, em que eram todos
parecidos. Ali não havia um fosso entre ela e os outros. E de repente já não
lhe bastava apenas ser igual aos outros. Ela queria ser superior aos outros. E
assim a sua popularidade na escola era aumentada pela sua estupidez e a
admiração que ela lia nos olhos dos colegas eram na verdade uma maledicência que
ela alimentava com um andar altivo e um riso demasiado fácil e estridente.
- O riso em excesso é constate na boca dos tolos.
– A avó afligia-se, mas na ignorância da sua velhice era ludibriada pela neta
entre carinhos e argumentos que a excluíam dos tempos modernos.
Vanda passou por terapias suficientes para
perceber que preencheu demasiado a sua adolescência de forma a não ter de
pensar nem sentir a morte dos pais. Mas ela sentia a sua falta e a culpa
pesava-lhe na consciência e no peito.
Agora é uma mulher adulta e independente mas
prisioneira das sombras do passado sentindo-se pequena e insignificante perante
a magnificência da vida como se não fosse digna de a usufruir. A capacidade de
saber viver não é um dom que todos possuem. É como o projecto de voar do
Leonardo Da Vinci. Ele idealizou, sonhou, projectou, mas não concretizou.
Depois houve alguém que conseguiu colocar o homem no ar e até na lua. E agora
existem os que usufruem dos sonhos dos outros. O tipo de humanidade resume-se a
três categorias. Os sonhadores, os realizadores e os aproveitadores.
O autocarro saiu da auto-estrada e contornou uma
grande rotunda fazendo com que as emoções de Vanda se sobressaltassem no seu
peito, eriçando a pele e a mente numa corrente de recordações. A avenida estava
arranjada numa calçada portuguesa que fazia o autocarro tremer. As árvores
continuavam a cumprimentar os visitantes em vénias cordeais. Os contornos
enlameados da estrada deram lugar a largos passeios onde grupos de peregrinos
circulavam com coletes florescentes, cajados e posturas descaídas do cansaço,
mas as vozes erguiam-se em uníssono para os céus. Vanda desceu do autocarro.
Atravessou a avenida e dirigiu-se para o
santuário de uma forma instintiva. A capelinha mantinha-se exactamente como ela
a recordava. Apenas a nova basílica se elevava naquele cenário sereno sem lhe
despertar grande interesse. O ritual foi executado sem que ela precisasse de um
esforço de memória. Tirou três velas e colocou o donativo na ranhura.
Dirigiu-se para o toucheiro e acendeu a primeira vela. Fechou os olhos e pediu
a Deus que ajudasse o seu filho Matias a ultrapassar a doença. Acendeu a
segunda vela e pediu que Deus abençoasse os seus novos amigos nomeando os
nomes. E por fim acendeu a última vela pedindo que Deus a orientasse nas suas
decisões. Pediu iluminação e sabedoria suficientes para que desta vez não
tomasse a decisão errada. Pediu forças para seguir o caminho certo.
Sentou-se na capelinha e o tempo ludibriou-a numa
rapidez que lhe foi insensível. Ela fixou os olhos húmidos na imagem adorada e
não rezou… Não Pediu… Não pensou… Apenas chorou um choro calmo que se fazia
notar apenas pelo rolar de lágrimas gordas que lhe acariciavam a cara.
- Olá!
Vanda voltou a ligar-se ao mundo naquele
cumprimento. Uma freira dirigia-lhe um olhar bondoso e uma sorriso gratuito.
- Olá! – Vanda não pode recusar o cumprimento.
- Gosto de vir aqui! – A freira sentou-se ao lado
de Vanda causando-lhe desconforto. – Sinto uma paz que não posso explicar… É
uma calma que apenas se pode sentir e as ideias ficam mais claras.
- Pois… - Vanda não estava para conversas. Não
tinha disposição e a voz ameaçava tremer sempre que ela a forçava.
- Foi aqui sentada que eu soube qual era o meu
papel no mundo!
- Ah… - Vanda revirou os olhos. Não queria
acreditar que naquele momento de introspecção, uma velha freira ia satisfazer
conversa de momento com ela.
- Eu tive uma vida difícil antes de seguir o
caminho de Deus. – A freira mergulhou nos seus pensamentos em voz alta e Vanda
teve de fazer um esforço para não a mandar calar. - Os meus pais eram ambos
alcoólicos e dependentes de ajudas alheias.Mas independentemente disso eles
amavam-me. Amavam-me muito. A assistente social comentava em voz alta como se
eu não percebesse que eles não tinham capacidade para ficar comigo. Dizia que
se eles me amassem de verdade mudavam de vida por mim. Como elas eram
ignorantes… Perceber quem precisa de ajuda é o primeiro passo para poder
ajudar. Quem julga antes de perceber raramente se torna útil na vida do
necessitado. Mas continuando… - A freira
pousou a sua mão no joelho de Vanda dando-lhe umas palmadinhas calorosas, sem
nunca olhá-la. – Então quando eu tinha seis anos estava a sair de casa para o
meu primeiro dia de aulas com os meus pais. Eles tinham-me comprado uma
mochila. E eu estava tão contente. Sabia que eles tinham poupado dinheiro para
me comprarem aquela mochila cor de rosa com uns malmequeres bordados e prometi
a mim mesma que iria cuidar bem daquela mochila até ficar velhinha. Morávamos
no último andar de um prédio de quatro andares sem elevador, e eu comecei a
descer as escadas demasiado gastas agarrada ao corrimão como fazia sempre e com
a mochila às costas. O meu pai estava bêbado como era o seu normal, mas a
felicidade de me estar a levar à escola com uma mochila que ele próprio tinha
comprado estava-lhe estampada no rosto. De repente o meu pai tropeçou nas
escadas e caiu em cima de mim. Rolamos os dois pelas escadas abaixo ao som dos
gritos da minha mãe. Só me lembro de ter acordado no hospital. O meu pai estava
sentado numa cadeira encostado à minha cama e chorava como uma criança. A minha
mãe dormitava numa outra cadeira. Quando o meu pai ouviu a minha voz
ajoelhou-se e agradeceu a Deus. Eu lembro-me de me ter sentido amada naquele
momento olhando para aquele homem que em vez de chorar as suas nódoas negras
chorava as minhas mazelas. Quando nos preparávamos para sair do hospital, o meu
pai entregou-me a uma assistente social. Entregou-me de livre vontade. A minha
mãe chorava… Não ela gritava uma dor que lhe devorava as entranhas e lhe
salientava as veias da testa. O meu pai sorria-me um sorriso nervoso e repetia
que era para meu bem. Que só fazia aquilo porque me amava muito. Eu pedi para
ficar com eles. Implorei. Chorei. Esbracejei. Gritei. Foi como se me
arrancassem um bocado de carne. A Assistente Social teve de pegar em mim e
enfiar-me dentro de um carro. Colei-me ao vidro traseiro do carro até que os
rostos dos meus pais se perderam no horizonte.
A freira deixou de falar de repente e só então
Vanda soube que estava envolvida naquela história. Queria saber o que vinha
depois.
- E então? – A freira sorriu com o olhar sempre
fixo num ponto distante.
- Então fui para uma casa que acolhia crianças.
Os meus pais iam buscar-me todos os fins de semana. E eu ansiava os fins de
semana como um toxicodependente anseia a sua dose. E então deu-se o milagre.
Como os meus pais só estavam comigo durante o dia de Sábado e Domingo começaram
a fazer o sacrifício de se manterem sóbrios nesses dias. - Pela primeira vez a
freira olhou Vanda nos olhos, e o seu olhar tocou-lhe a alma. – Eu tive a
oportunidade de conhecer os meus pais sem o efeito de álcool. Foi preciso saber
abdicar para ser compensada.
Vanda sentiu que aquelas palavras faziam sentido
na sua vida, mas ainda não conseguia precisar como.
- E porque é que se tornou freira? – Vanda sentia-se
envolvida naquele relato, naquela vida.
- Porque é o único lugar onde sinto que sou útil
à humanidade. Eu rezo a Deus para que os homens saibam decidir bem. E uma boa
decisão nem sempre é aquela que resulta dos nossos sonhos ou desejos. Uma boa
decisão é aquela que pensa primeiro naqueles que nós amamos. O meu pai rezou
naquele hospital para ter uma segunda oportunidade comigo. E conseguiu tomar a
decisão correcta para mim e para ele. Tivemos momentos lindos. Fiquei a
conhecer a história da minha família. Tive oportunidade de passear com o meu
pai sem ter de lhe servir de equilíbrio. Corremos juntos. Rimos muito. Porque
no Sábado e no Domingo ele era aquilo que não conseguia ser permanentemente. Eu
rezo para que todos os homens tenham força para seguir o melhor caminho. E tu?
Vanda sentiu-se atordoada com a pergunta.
- Eu o quê?
- Já decidiste? Já pensaste no que é melhor para
aqueles que tu amas? - A freira sorriu-lhe carinhosamente, levantou-se e foi-se embora com uma mochila cor de rosa com uns malmequeres bordados pendurada num ombro.
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