segunda-feira, 13 de maio de 2013

Capitulo XXII - Nas Asas do Corvo


Capitulo XXII

Vanda despertou com a claridade a entrar pelo quarto e a promessa de um novo dia. Não lhe agradava o facto de vestir a mesma roupa, mas sinceramente não tinha grande importância. Enviou as calças e a camisola, pegou na mala, prendeu o cabelo sem sequer o pentear. Tomou o pequeno almoço na residencial e saiu. Parou numa mercearia e comprou uma escova de dentes e uma pasta dentífrica. Entrou de seguida num café escuro e vazio de clientes. Tomou um café curto e foi à casa de banho lavar os dentes. Essa parte da sua higiene diária não conseguia abdicar. De seguida dirigiu-se à rodoviária e apanhou um autocarro para Ourém. O seu espírito não absorveu as mudanças da pequena cidade que continuava a parecer uma aldeia. Não era uma visita de cortesia à sua terrinha, mas uma visita ao seu passado. Vanda apanhou um táxi e dirigiu-se para fora da cidade em direcção à casa da avó.
A casa continuava situada numa inclinação de terreno sem nada à volta para além de ervas altas. As paredes brancas começavam a descarnar-se deixando à mostra a pedra encoberta. A porta da frente estava descaída e o verde gasto e sujo descolava-se da madeira podre. Vanda rodou a maçaneta mas sem sucesso. O seu coração galopava uma angústia velha no peito. Vanda olhou em volta. Os vasos sustentavam terra seca sem vestígios de vida. Vanda olhou para um em especial. Levantou o vaso e lá estava a chave enferrujada. Sorriu um sorriso de reconhecimento. Finalmente abriu a porta e estava tudo arrumado exactamente como se lembrava. O pó descolorava os móveis velhos e antiquados e a carpete azul onde ela tantas vezes rebolara. A lembrança daquela pequena sala cheia pelos pais e pela a avó inundou-lhe a memória… e de repente era como se tivesse estado sempre ali. Vanda sentou-se na cadeira tosca que balouçava encostada à janela, onde a avó gostava de se sentar a fazer renda, e falava dos tempos antigos em que ela se sentia confortável. Vanda costumava sentar-se ali quando a avó não estava por perto. E quando a senhora se sentava a balouçar-se pacificamente, Vanda sentava-se no chão com as suas bonecas espalhadas sobre a alcatifa azul pedindo à avó que lhe contasse histórias. E ela estava ali novamente com a sua voz aguda e trémula a contar as aventuras de D. Nuno Álvares Pereira. Vanda sorriu e deixou-se balouçar naquela cadeira olhando pela pequena janela e vendo o quintal abandonado à libertinagem de uma vegetação selvagem.
- Gosto mais da tua casa do que da minha casa em casa em Paris! – Vanda tinha novamente oito anos e penteava os cabelos dourados de um nova boneca.
- Se vivesses aqui e passasses férias lá, passavas a gostar mais da casa de Paris. – A avó parecia ter sempre respostas inteligentes.
- Mas sinto sempre muitas saudades tuas.
A avó sorriu-lhe uma bondade que Vanda sentiu novamente.
- Eu também tenho sempre muitas saudades tuas minha pequenina. Mas os filhos devem estar perto dos pais. – A televisão começou a dar as noticias das oito. Era um momento sagrado para a avó. Ela aumentava o volume e prendia-se a cada noticia com uma atenção comentada de vez em quando. A noticia de abertura tratava uma troca de bebés numa maternidade que tinha acontecido há quase dez anos. E agora levantava-se as questões típicas. As crianças trocadas tinham-se habituado a uns pais que não eram os seus. Estavam comentadores e psicólogos a discutir o assunto e o melhor para as famílias.
- Esta gente fala demasiado nos problemas dos outros. Os dois casais e as crianças é que sabem o que estão a passar e eles é que devem decidir o que é melhor para eles… Raios parta quem tem tanta opinião e tão pouco para dar…
Vanda riu-se da asneira que a avó disse.
- Se me dissessem que eu teria outros pais, eu não os queria…
Vanda arregalou os olhos perante aquela lembrança que lhe assentou como um soco e sentiu-se sufocar.
Daniel entrou com a rapidez do nervosismo ao ouvir os gritos de Vanda. Ela estava enrolada sobre si mesma no chão da cozinha. A mesma cozinha onde ela tinha sido violada. A mesma cozinha onde ela matara o seu violador. Daniel debruçou-se sobre ela e obrigou-a a encará-lo. Ela surpreendeu-se quando o viu e agarrou-se a ele afundando o rosto no seu pescoço como se quisesse privar a vista daquela lembrança.
Daniel conduziu-a para fora de casa e sentou-a num degrau de pedra. Deixou que ela chorasse e quando o cansaço se sobrepôs à dor sentou-se ao seu lado.
- Como é que tu estás aqui Daniel?
- O Vasco ligou-me e contou-me a vossa conversa. – Daniel deixou que a informação assentasse na mente dela. – Ele queria vir procurar-te, mas eu não deixei.
- Ah! – Foi tudo o que Vanda conseguiu dizer.
- Precisamos de falar Vanda. De ter uma conversa franca e definitiva… Mas agora não estás em condições.
- Hum…
Daniel levantou-se e ajudou-a a dirigir-se para o carro. Entraram e Vanda adormeceu quase imediatamente.
O toque de um telemóvel despertou-a numa confusão de ideias. Vanda abriu os olhos e não reconheceu o quarto. Levantou-se de um pulo e correu para a porta rodando a maçaneta numa aflição duvidosa. Quando chegou a uma sala branca e bem decorada acalmou-se ao encontrar Daniel sentado numa cadeira roxa com um design engraçado que fazia lembrar uma mão aberta.
- Olá dorminhoca! – O sorriso que Daniel forçou não lhe chegou aos olhos. – Tens fome?
Vanda surpreendeu-se com a reacção do seu estômago. Estava verdadeiramente faminta. Daniel conduziu-a a uma cozinha pequena mas bem equipada em que um azul celeste contrastava com o inox dos electrodomésticos de uma forma confortável. Daniel preparou uns ovos mexidos que ela devorou sem trocarem uma única palavra.
- Queres mais?
- Não. Estou bem assim obrigada! – Vanda seguiu Daniel de volta à sala e sentou-se na ponta do sofá. – Esta é a tua casa?
- Sim! É o meu canto, o meu mundo! – Daniel aproximou-se dela no sofá. – Não trago aqui muitas mulheres… Tu és uma sortuda. – ambos riram um riso constrangido que antecipava uma longa e dolorosa conversa. – Temos de falar Vanda!
- Sobre o quê?
- Sobre a verdade de tudo isto! Eu vou falar contigo abertamente e gostava que abrisses a tua mente para tudo o que vamos conversar.
Vanda assentiu.
Daniel levantou-se e serviu-se de um pouco de licor beirão. Bebeu um longo gole e fechou os olhos por uns momentos procurando as palavras certas para começar aquele diálogo.
- Lembras-te do tempo em que estiveste internada?
- Sim! Quer dizer mais ou menos… - Vanda mexeu-se do sofá tentando encontrar uma posição mais confortável. – Existem momentos pouco claros na minha mente. Suponho que seja por causa da medicação…
- Quando te dissemos que estavas grávida, tu choraste durante dias seguidos e nunca disseste uma única palavra. Beliscavas a tua barriga até fazeres nódoas negras e por vezes sangue. Estiveste durante duas semanas amarrada à cama… Quando dei a ordem de te amarrarem senti que estavam a martelar-me na cabeça… Mas o pior foi quando cheguei ao teu quarto e vi-te de braços e pernas esticados presos à barra da cama. Tu nem te mexeste quando entrei no quarto. Tentei falar contigo, mas nem me olhaste mantiveste-te imóvel a fixar um ponto muito distante como se só o teu corpo estivesse ali. Os teus olhos não emitiam uma única expressão quando eu estava contigo. Fechavas-te num mundo inacessível e o teu corpo não te traía. Nem um único músculo se mexeu, mas uma lágrima rolou pela tua face inexpressiva e eu saí do quarto a correr. Queria mandar que te libertassem, mas eu sabia que não podia fazer isso. Tu fizeste com que tomasse as decisões mais difíceis da minha vida…
- Desculpa. – Vanda não se lembrava bem dessa fase. Agora parecia realmente lembrar-se de ter estado atada para não se magoar. Mas era uma lembrança vaga e muito enevoada. No entanto Vanda lembrava-se bem do que lhe ia na alma nesse momento. Queria morrer… Queria que aquela gravidez acabasse por qualquer motivo… ela não queria dar à luz o filho de um monstro. Não suportaria. Lembra-se de tentar magoar a barriga e quando não podia magoá-la por estar com os movimentos limitados, lembra -se de passar horas a fazer força para ver se expelia aquilo que estava a crescer dentro de si.
- Tu não querias aquela criança. Tu gritavas isso mesmo durante o sono.
- Eu falava enquanto dormia?
- Era a única altura em que ouvia a tua voz. Tinhas muitos pesadelos e normalmente falavas, muitas vezes de uma forma desconexa, mas noutras vezes fazias sentido. E naquela altura era bastante evidente que não querias aquela gravidez. E depois acalmaste e deixaste de estar presa à cama. Passavas os dias a deambular. Já não magoavas a tua barriga, e já não sonhavas alto. Mas não me pareceu que tivesses aceite a tua gravidez… Apenas estavas num estado e apatia conformista. Depois entraste em trabalho de parto mais cedo do que seria esperado, mas num período em que já não era demasiado frágil para o bebé.
- Pois foi…
Daniel mudou de posição. Inclinou-se para a frente e posou o copo em cima da mesa. Descansou os cotovelos em cima dos joelhos e esfregou o pescoço concentrando-se no que tinha para dizer.
- Vanda!
- Sim…
- Vou precisar que entendas tudo aquilo que te vou contar… E por favor, se quiseres culpar alguém, culpa-me apenas a mim…
- Não estou a perceber Daniel!
- As únicas reacções que vi da tua parte relativamente à gravidez foram as que já te descrevi. Foram reacções negativas… E depois apenas um silêncio profundo. E quando dei conta estava numa maternidade a dar à luz…
Daniel fez mais uma pausa olhando o fundo do copo vazio.
- Estava na maternidade a acompanhar-te, quando o Vasco me ligou a dizer que a cunhada tinha dado entrada de urgência na mesma maternidade. Os dois partos deram-se quase em simultâneo e eu como amigo do chefe de serviço tive praticamente livre acesso aos dois processo. Tu deste à luz um rapaz que apesar de prematuro era saudável e a Vera deu à luz um bebé com muitos problemas que não resistiu ao parto.
Vanda abriu muito os olhos com uma compreensão lenta que se formava incrédula na sua mente.
- Cabrão! – Vanda libertou toda a sua energia nuns punhos fechados que se abatiam sobre Daniel numa chuva sucessiva de movimentos descoordenados e imprecisos. Daniel agarrou-a com algum esforço e obrigou-a a sentar-se. – Tu sabias… Foste tu que me tiraste o meu filho…
Aquela acusação magoou-o mais do que os socos.
- Ouve-me até ao fim Vanda… Depois podes nunca mais olhar para mim… Podes até processar-me… Faz o que quiseres, mas ouve-me até ao fim.
Vanda obrigou-se a sossegar e sem derramar uma única lágrima fixou-lhe aquela olhar negro e sombrio que o fez sentir-se encolher.
- Põe-te no meu lugar. Tu estavas internada num hospício recusando tratamentos e, na minha óptica, odiando o ser que geravas dentro de ti. Não havia sequer a hipótese na minha cabeça de ficares com aquela criança. Nem imaginei isso por um segundo… Até aquele dia eu imaginei que a criança seria entregue aos serviços sociais. E tu viverias com a sombra de teres dado vida a um novo monstro… Eu juro que o que fiz naquele momento foi convencido de que te estava a proteger… Pareceu-me o mais correcto… Tinha de um lado uma louca que rejeitava o filho que paria condenando-o a um crescimento entregue a instituições. Tinha do outro lado um casal que desejava aquele filho com todas as forças e que proporcionaria uma vida feliz àquela criança. Tinha ainda um bebé que podia ser criado em instituições privado de amor e provavelmente a sentir o peso da rejeição de uma mãe que o odiava e o peso de ter sido concebido de uma forma tão perversa… Ou que podia ser criado no seio de uma família que o acolheria e que se dedicaria a fazê-lo feliz sem as preocupações que deviam ser proibidas a todas as crianças. – Vanda reparou que o Daniel chorava e deixou-o chorar.
- A Vera ou o Marco sabem dessa troca? – Vanda mantinha uma postura demasiado rígida, um ar altivo e uma expressão fria .
- Agora já devem saber…
- Como assim?
- Quando o Vasco me ligou, eu contei-lhe tudo. Ele ficou furioso e viajou para o Corvo. Disse-me que tinha de contar a verdade.
Vanda pensou naquela situação toda. A sua alma chorava, mas o seu corpo recusava-se. Ela agora sabia a verdade… finalmente. E o que é que significava aquela nova verdade? O que significava verdadeiramente estar na posse de uma verdade que lhe foi ocultada durante tantos anos? Não conseguia olhar para Daniel com uns olhos verdadeiramente acusadores. Chegava até a sentir algum amor naquela atitude. Seria possível sentir-se amor na mentira? Ela sentia naquele exacto momento o peso da compaixão que despertou um dia em Daniel e os sacrifícios que ele se dispôs a fazer por ela sem lhe pedir nada em troca. Era-lhe fácil agora acusá-lo. Ela possui agora todas as condições que lhe conferem a dignidade da acusação. Mas na altura em que estas decisões forma tomadas, ela alheou-se a comprometer-se com qualquer tipo de decisão. É fácil quando nos momentos difíceis deixamos os outros decidirem por nós, e quando chega a calma que vem sempre depois desses momentos, é fácil apontar o dedo ao resultado dessas decisões. O difícil teria sido ela falar, erguer a sua voz e dizer que não estava doida e que queria ajuda para criar o filho… Mas ela não o fez e deixou que a conduzissem. Só tomou as rédeas da sua vida quando a lhe foi mais confortável e não podia exigir que estivesse tudo à sua espera. A sua felicidade parecia  uma porta perra, que só abre o suficiente para uma espreitadela.

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