Capitulo XXII
Vanda despertou com a claridade a entrar pelo quarto e a promessa de um
novo dia. Não lhe agradava o facto de vestir a mesma roupa, mas sinceramente
não tinha grande importância. Enviou as calças e a camisola, pegou na mala,
prendeu o cabelo sem sequer o pentear. Tomou o pequeno almoço na
residencial e saiu. Parou numa mercearia e comprou uma escova de dentes e uma
pasta dentífrica. Entrou de seguida num café escuro e vazio de clientes. Tomou
um café curto e foi à casa de banho lavar os dentes. Essa parte da sua higiene
diária não conseguia abdicar. De seguida dirigiu-se à rodoviária e apanhou um
autocarro para Ourém. O seu espírito não absorveu as mudanças da pequena cidade
que continuava a parecer uma aldeia. Não era uma visita de cortesia à sua
terrinha, mas uma visita ao seu passado. Vanda apanhou um táxi e dirigiu-se
para fora da cidade em direcção à casa da avó.
A casa continuava situada numa inclinação de terreno sem nada à volta
para além de ervas altas. As paredes brancas começavam a descarnar-se deixando
à mostra a pedra encoberta. A porta da frente estava descaída e o verde gasto e
sujo descolava-se da madeira podre. Vanda rodou a maçaneta mas sem sucesso. O
seu coração galopava uma angústia velha no peito. Vanda olhou em volta. Os
vasos sustentavam terra seca sem vestígios de vida. Vanda olhou para um em
especial. Levantou o vaso e lá estava a chave enferrujada. Sorriu um sorriso de
reconhecimento. Finalmente abriu a porta e estava tudo arrumado exactamente
como se lembrava. O pó descolorava os móveis velhos e antiquados e a carpete
azul onde ela tantas vezes rebolara. A lembrança daquela pequena sala cheia
pelos pais e pela a avó inundou-lhe a memória… e de repente era como se tivesse estado sempre ali. Vanda sentou-se na cadeira tosca que balouçava encostada à
janela, onde a avó gostava de se sentar a fazer renda, e falava dos tempos
antigos em que ela se sentia confortável. Vanda costumava sentar-se ali quando
a avó não estava por perto. E quando a senhora se sentava a balouçar-se
pacificamente, Vanda sentava-se no chão com as suas bonecas espalhadas sobre a
alcatifa azul pedindo à avó que lhe contasse histórias. E ela estava ali novamente com a
sua voz aguda e trémula a contar as aventuras de D. Nuno Álvares Pereira. Vanda
sorriu e deixou-se balouçar naquela cadeira olhando pela pequena janela e vendo
o quintal abandonado à libertinagem de uma vegetação selvagem.
- Gosto mais da tua casa do que da minha casa em casa em Paris! – Vanda tinha
novamente oito anos e penteava os cabelos dourados de um nova boneca.
- Se vivesses aqui e passasses férias lá, passavas a gostar mais da casa
de Paris. – A avó parecia ter sempre respostas inteligentes.
- Mas sinto sempre muitas saudades tuas.
A avó sorriu-lhe uma bondade que Vanda sentiu novamente.
- Eu também tenho sempre muitas saudades tuas minha pequenina. Mas os
filhos devem estar perto dos pais. – A televisão começou a dar as noticias das
oito. Era um momento sagrado para a avó. Ela aumentava o volume e prendia-se a
cada noticia com uma atenção comentada de vez em quando. A noticia de abertura
tratava uma troca de bebés numa maternidade que tinha acontecido há quase dez
anos. E agora levantava-se as questões típicas. As crianças trocadas tinham-se
habituado a uns pais que não eram os seus. Estavam comentadores e psicólogos a
discutir o assunto e o melhor para as famílias.
- Esta gente fala demasiado nos problemas dos outros. Os dois casais e as
crianças é que sabem o que estão a passar e eles é que devem decidir o que é
melhor para eles… Raios parta quem tem tanta opinião e tão pouco para dar…
Vanda riu-se da asneira que a avó disse.
- Se me dissessem que eu teria outros pais, eu não os queria…
Vanda arregalou os olhos perante aquela lembrança que lhe assentou como
um soco e sentiu-se sufocar.
Daniel entrou com a rapidez do nervosismo ao ouvir os gritos de Vanda.
Ela estava enrolada sobre si mesma no chão da cozinha. A mesma cozinha onde ela
tinha sido violada. A mesma cozinha onde ela matara o seu violador. Daniel debruçou-se sobre
ela e obrigou-a a encará-lo. Ela surpreendeu-se quando o viu e agarrou-se a ele
afundando o rosto no seu pescoço como se quisesse privar a vista daquela
lembrança.
Daniel conduziu-a para fora de casa e sentou-a num degrau de pedra. Deixou
que ela chorasse e quando o cansaço se sobrepôs à dor sentou-se ao seu lado.
- Como é que tu estás aqui Daniel?
- O Vasco ligou-me e contou-me a vossa conversa. – Daniel deixou que a
informação assentasse na mente dela. – Ele queria vir procurar-te, mas eu não
deixei.
- Ah! – Foi tudo o que Vanda conseguiu dizer.
- Precisamos de falar Vanda. De ter uma conversa franca e definitiva… Mas
agora não estás em condições.
- Hum…
Daniel levantou-se e ajudou-a a dirigir-se para o carro. Entraram e Vanda
adormeceu quase imediatamente.
O toque de um telemóvel despertou-a numa confusão de ideias. Vanda abriu
os olhos e não reconheceu o quarto. Levantou-se de um pulo e correu para a
porta rodando a maçaneta numa aflição duvidosa. Quando chegou a uma sala branca
e bem decorada acalmou-se ao encontrar Daniel sentado numa cadeira roxa com um
design engraçado que fazia lembrar uma mão aberta.
- Olá dorminhoca! – O sorriso que Daniel forçou não lhe chegou aos olhos.
– Tens fome?
Vanda surpreendeu-se com a reacção do seu estômago. Estava verdadeiramente
faminta. Daniel conduziu-a a uma cozinha pequena mas bem equipada em que um
azul celeste contrastava com o inox dos electrodomésticos de uma forma
confortável. Daniel preparou uns ovos mexidos que ela devorou sem trocarem uma
única palavra.
- Queres mais?
- Não. Estou bem assim obrigada! – Vanda seguiu Daniel de volta à sala e
sentou-se na ponta do sofá. – Esta é a tua casa?
- Sim! É o meu canto, o meu mundo! – Daniel aproximou-se dela no sofá. –
Não trago aqui muitas mulheres… Tu és uma sortuda. – ambos riram um riso
constrangido que antecipava uma longa e dolorosa conversa. – Temos de falar
Vanda!
- Sobre o quê?
- Sobre a verdade de tudo isto! Eu vou falar contigo abertamente e
gostava que abrisses a tua mente para tudo o que vamos conversar.
Vanda assentiu.
Daniel levantou-se e serviu-se de um pouco de licor beirão. Bebeu um
longo gole e fechou os olhos por uns momentos procurando as palavras certas
para começar aquele diálogo.
- Lembras-te do tempo em que estiveste internada?
- Sim! Quer dizer mais ou menos… - Vanda mexeu-se do sofá tentando
encontrar uma posição mais confortável. – Existem momentos pouco claros na
minha mente. Suponho que seja por causa da medicação…
- Quando te dissemos que estavas grávida, tu choraste durante dias
seguidos e nunca disseste uma única palavra. Beliscavas a tua barriga até
fazeres nódoas negras e por vezes sangue. Estiveste durante duas semanas
amarrada à cama… Quando dei a ordem de te amarrarem senti que estavam a
martelar-me na cabeça… Mas o pior foi quando cheguei ao teu quarto e vi-te de
braços e pernas esticados presos à barra da cama. Tu nem te mexeste quando
entrei no quarto. Tentei falar contigo, mas nem me olhaste mantiveste-te imóvel
a fixar um ponto muito distante como se só o teu corpo estivesse ali. Os teus
olhos não emitiam uma única expressão quando eu estava contigo. Fechavas-te num
mundo inacessível e o teu corpo não te traía. Nem um único músculo se mexeu,
mas uma lágrima rolou pela tua face inexpressiva e eu saí do quarto a correr.
Queria mandar que te libertassem, mas eu sabia que não podia fazer isso. Tu
fizeste com que tomasse as decisões mais difíceis da minha vida…
- Desculpa. – Vanda não se lembrava bem dessa fase. Agora parecia
realmente lembrar-se de ter estado atada para não se magoar. Mas era uma
lembrança vaga e muito enevoada. No entanto Vanda lembrava-se bem do que lhe ia
na alma nesse momento. Queria morrer… Queria que aquela gravidez acabasse por
qualquer motivo… ela não queria dar à luz o filho de um monstro. Não
suportaria. Lembra-se de tentar magoar a barriga e quando não podia magoá-la
por estar com os movimentos limitados, lembra -se de passar horas a fazer força
para ver se expelia aquilo que estava a crescer dentro de si.
- Tu não querias aquela criança. Tu gritavas isso mesmo durante o sono.
- Eu falava enquanto dormia?
- Era a única altura em que ouvia a tua voz. Tinhas muitos pesadelos e
normalmente falavas, muitas vezes de uma forma desconexa, mas noutras vezes fazias
sentido. E naquela altura era bastante evidente que não querias aquela
gravidez. E depois acalmaste e deixaste de estar presa à cama. Passavas os dias
a deambular. Já não magoavas a tua barriga, e já não sonhavas alto. Mas não me
pareceu que tivesses aceite a tua gravidez… Apenas estavas num estado e apatia
conformista. Depois entraste em trabalho de parto mais cedo do que seria
esperado, mas num período em que já não era demasiado frágil para o bebé.
- Pois foi…
Daniel mudou de posição. Inclinou-se para a frente e posou o copo em cima
da mesa. Descansou os cotovelos em cima dos joelhos e esfregou o pescoço
concentrando-se no que tinha para dizer.
- Vanda!
- Sim…
- Vou precisar que entendas tudo aquilo que te vou contar… E por favor,
se quiseres culpar alguém, culpa-me apenas a mim…
- Não estou a perceber Daniel!
- As únicas reacções que vi da tua parte relativamente à gravidez foram as
que já te descrevi. Foram reacções negativas… E depois apenas um silêncio
profundo. E quando dei conta estava numa maternidade a dar à luz…
Daniel fez mais uma pausa olhando o fundo do copo vazio.
- Estava na maternidade a acompanhar-te, quando o Vasco me ligou a dizer
que a cunhada tinha dado entrada de urgência na mesma maternidade. Os dois partos
deram-se quase em simultâneo e eu como amigo do chefe de serviço tive
praticamente livre acesso aos dois processo. Tu deste à luz um rapaz que apesar
de prematuro era saudável e a Vera deu à luz um bebé com muitos problemas que
não resistiu ao parto.
Vanda abriu muito os olhos com uma compreensão lenta que se formava
incrédula na sua mente.
- Cabrão! – Vanda libertou toda a sua energia nuns punhos fechados que se
abatiam sobre Daniel numa chuva sucessiva de movimentos descoordenados e
imprecisos. Daniel agarrou-a com algum esforço e obrigou-a a sentar-se. – Tu
sabias… Foste tu que me tiraste o meu filho…
Aquela acusação magoou-o mais do que os socos.
- Ouve-me até ao fim Vanda… Depois podes nunca mais olhar para mim… Podes
até processar-me… Faz o que quiseres, mas ouve-me até ao fim.
Vanda obrigou-se a sossegar e sem derramar uma única lágrima fixou-lhe
aquela olhar negro e sombrio que o fez sentir-se encolher.
- Põe-te no meu lugar. Tu estavas internada num hospício recusando
tratamentos e, na minha óptica, odiando o ser que geravas dentro de ti. Não havia
sequer a hipótese na minha cabeça de ficares com aquela criança. Nem imaginei
isso por um segundo… Até aquele dia eu imaginei que a criança seria entregue
aos serviços sociais. E tu viverias com a sombra de teres dado vida a um novo
monstro… Eu juro que o que fiz naquele momento foi convencido de que te estava
a proteger… Pareceu-me o mais correcto… Tinha de um lado uma louca que
rejeitava o filho que paria condenando-o a um crescimento entregue a
instituições. Tinha do outro lado um casal que desejava aquele filho com todas
as forças e que proporcionaria uma vida feliz àquela criança. Tinha ainda um
bebé que podia ser criado em instituições privado de amor e provavelmente a
sentir o peso da rejeição de uma mãe que o odiava e o peso de ter sido
concebido de uma forma tão perversa… Ou que podia ser criado no seio de uma
família que o acolheria e que se dedicaria a fazê-lo feliz sem as preocupações
que deviam ser proibidas a todas as crianças. – Vanda reparou que o Daniel
chorava e deixou-o chorar.
- A Vera ou o Marco sabem dessa troca? – Vanda mantinha uma postura
demasiado rígida, um ar altivo e uma expressão fria .
- Agora já devem saber…
- Como assim?
- Quando o Vasco me ligou, eu contei-lhe tudo. Ele ficou furioso e viajou
para o Corvo. Disse-me que tinha de contar a verdade.
Vanda pensou naquela situação toda. A sua alma chorava, mas o seu corpo
recusava-se. Ela agora sabia a verdade… finalmente. E o que é que significava
aquela nova verdade? O que significava verdadeiramente estar na posse de uma
verdade que lhe foi ocultada durante tantos anos? Não conseguia olhar para
Daniel com uns olhos verdadeiramente acusadores. Chegava até a sentir algum
amor naquela atitude. Seria possível sentir-se amor na mentira? Ela sentia
naquele exacto momento o peso da compaixão que despertou um dia em Daniel e os
sacrifícios que ele se dispôs a fazer por ela sem lhe pedir nada em troca.
Era-lhe fácil agora acusá-lo. Ela possui agora todas as condições que lhe
conferem a dignidade da acusação. Mas na altura em que estas decisões forma
tomadas, ela alheou-se a comprometer-se com qualquer tipo de decisão. É fácil
quando nos momentos difíceis deixamos os outros decidirem por nós, e quando
chega a calma que vem sempre depois desses momentos, é fácil apontar o dedo ao
resultado dessas decisões. O difícil teria sido ela falar, erguer a sua voz e
dizer que não estava doida e que queria ajuda para criar o filho… Mas ela não o
fez e deixou que a conduzissem. Só tomou as rédeas da sua vida quando a lhe foi
mais confortável e não podia exigir que estivesse tudo à sua espera. A sua felicidade parecia uma porta perra, que só abre o suficiente para uma
espreitadela.
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