Capitulo XXIII
A ilha aumentava à medida que o avião se aproximava. O veludo verde
recebia, numa passividade altiva caricias violentas de um mar celestial que
transpirava um fogo-de-artifício branco numa tentativa frustrada de chama a sua
atenção. O asfalto da pista do aeródromo pareceu-lhe insuficiente e pela
segunda vez teve aquela sensação de que o avião tinha roçado o mar antes
encontrar terra firme. O avião travou a fundo e o seu corpo impulsionou-se
contra o assento da frente. E Então a explosão de aplausos rebentou num calor
humano que apagava as frivolidades trazidas do resto do mundo. Vanda saiu do
avião com uma mala de rodinhas arrastada atrás de si. Parou na rua e olhou à
sua volta. As pessoas cumprimentaram-na calorosamente como se ela não se
tivesse ausentado por tanto tempo. Passou a Rua da Matriz contornando a igreja
embrenhou-se pelo labirinto de calçadas estreitas. Chegou finalmente a casa.
Rodou a maçaneta sem recorrer à chave e sorriu quando a porta simplesmente se
abriu. As paredes negras de basalto receberam-na no seu interior e ela sentiu
que aquele era o seu lugar.
A casa estava impecavelmente limpa como se a casa fosse imune ao pó se
sete meses de ausência. Era óbvio que alguém tinha tido a preocupação de manter
a casa arejada e sem pó, uma vez que ela não avisara ninguém da sua chegada.
Vanda Largou a mala e descalçou as sandálias. Sentia o corpo melado daquela
humidade quente. A casa trouxe-lhe uma frescura agradável que a aliviou do
calor de Verão que se sentia na rua.
- Olá!
Vanda levantou os olhos numa ânsia voraz de encontrar o rosto que
correspondia à voz. Vasco estava com um ombro encostado à ombreira do quarto
dela com o cabelo rebelde a cobrirem o olhar e os braços cruzados. Vanda
sentiu-se paralisar. Queria saltar para aquele abraço conhecido, mas os seus
braços não se abriram para ela.
- O que fazes aqui? – Vanda queria mostrar-se fria e distante e
permaneceu no tapete de entrada com as sabrinas penduradas nos dedos da sua mão
direita.
- Tenho morado aqui… - Vasco olhava-a com um olhar fixo que ela não
conseguia descortinar.
- Ah! – Vanda baixou o seu olhar cobardemente, sem ser capaz de o
enfrentar de frente. – Eu tenho pago a renda todos os meses… Pensei que
continuasse com o contrato de arrendamento…
- E continuas… - Vasco desencostou-se da ombreira da porta e aproximou-se
três passos. Os traços do seu rosto continuavam sério. E Vanda sentiu-se
encolher, mas contrariando os seus sentimentos ergueu a cabeça e preparou-se
para enfrentá-lo. – Tenho estado à tua espera.
Vanda abriu a boca, mas foi incapaz de proferir uma única palavra. O que
significava aquilo. Iria ele ameaçá-la…Iria proibi-la de contactar com o filho?
- Senta-te a Vanda! A casa é tua… - Vasco disparava as palavras numa
frieza que lhe gelava o sangue. Ela obedeceu, mas apenas depois de arrumar as
sabrinas na sapateira.
- Eu estou cansada Vasco… Vamos despachar isto…
Vasco sentou-se na ponta oposta do sofá tentado manter a distância. Mas o
sofá era pequeno e o perfume dela tomou conta da pequena distância.
- Pois… E tu és boa nisso.
- Nisso o quê?
- A despachar pessoas… - Vasco dirigiu-lhe um sorriso triste que lhe
cortou o coração. Mas Vanda manteve-se imóvel e impenetrável.
- Porque é que estiveste de baixa durante tanto tempo? – Vasco queria
falar no sobrinho, mas a preocupação com o que lhe tinha acontecido nestes sete
meses sobrepunha-se a outras conversas que tinham de ter.
- Estive a fazer um tratamento…
- A quê? Estavas doente? – Ambos pareciam estar a percorrer um caminho
minado, usando de uma cautela exagerada.
- Estava… Mas levei muito tempo a perceber. – Vanda suspirou ao ver que
Vasco continuava a fitá-la esperando uma justificação melhor. – O Daniel achou
que devia ser acompanhada por uns tempos. Esta minha obsessão pelas limpezas, pelos
horários, pela perfeição é uma doença e tem de ser tratada.
- Ah! E melhoraste?
- Não como imaginas… Continuo com um quotidiano muito próprio… Mas já não
tenho ataques de histeria porque a ponta do tapete está dobrada. Também
ajudou-me a arrumar as várias etapas da minha em vida em gavetas. E estão todas
fechadas. Aprendi a ser arrumada na minha cabeça e desarrumada na minha vida. –
Vanda sorriu esperando um retorno de Vasco que não se verificou.
- Pensei que tivesses ficado chateada com o Daniel…
- Não foi ele que fez as asneiras… Fui eu. Ele apenas tentou tratar dos
meus problemas da melhor forma possível.
- Ah! – Vasco desviou pela primeira vez o olhar concentrando-o num ponto
distante. – Estiveste fora muito tempo. Deixaste o teu trabalho, a tua casa…
- Sim, mas eu arranjei uma substituta para as minhas aulas bastante
competente. A escola não ficou prejudicada pela minha ausência…
- A escola não… - Vasco voltou a concentrar-se em Vanda. Existia uma química
inegável no ar, como se as suas peles tivessem sido feitas para se completarem.
E era difícil estar assim a manter uma distância tão curta que seria facilmente
encurtada por simples gesto.
- Vieste para ficar?
- Não sei… - Vanda tinha de ser o mais sincera possível com ele. Afinal
ela amava-o.
- O que vais fazer relativamente ao Matias?
Afinal era este o ponto que importava e Vanda sentiu-se um pouco
desiludida.
- Vou contar-lhe a verdade… - Vasco baixou os olhos e deixou o tronco
descair apoiando os cotovelos sobre as pernas. Esfregou as têmporas com as
pontas dos dedos. Vanda tinha-o desiludido… Podia senti-lo. – Agora quero saias
Vasco! Estou cansada e nada do que me digas vai mudar aquilo que vim cá fazer. –
Vanda suspirou.- Só estive à espera que o Matias recuperasse da sua doença.
Agora é a altura ideal para colocar as coisas no lugar certo. – Como Vasco não se
moveu, Vanda levantou-se e dirigiu-se para a porta abrindo-a. – Não temos mais
nada para conversar.
Vasco fitou por uns segundos sem se mexer, mas acabou por ceder.
Levantou-se contrafeito e dirigiu-se para a porta. Parou antes de sair e fixou
o olhar de Vanda com uma profundidade que a incomodou.
- Essa terapia não te valeu de muito. Numa relação tomam-se decisões a
dois. E quando não se chega a consensos respeita-se a opinião do outro. Amar
não é aceitar e acatar tudo o que vem do outro. Amar é saber travar o outro
quando ele age da forma errada. Amar é levantar a voz quando é necessário e abrir
os braços quando se impõe a fragilidade de afinal se ter errado. Eu queria
caminhar ao teu lado… Queria que independentemente da tua decisão tu
desabafasses comigo e me pedisses uma opinião… E queria no fim poder acompanhar-te
em qualquer que fosse a tua decisão… Mas para isso tu terias de aprender a amar…
Quando a porta se fechou, Vanda sentiu que aquele assunto não estava
arrumado numa gaveta dentro da sua cabeça. Vasco ocupava todos os poros do seu
ser. Como podia ele ter a ousadia de lhe dizer que ela não sabia amar? Que agitação
era aquela que ele lhe provocava? Era amor… A sua alma queria gritar-lhe, mas a
sua boca calava cobardemente aquele rodopio que a dominava. Que tristeza era
aquele que sentia sempre que ele lhe virava as costas? Era amor… Que
necessidade de o ver feliz era aquela que lhe pesava no peito? Era amor… Que
atrevimento dele supor que ela não sabia amar.
Vanda estava a desfazer a mala e a organizar a sua roupa de Verão. A
humidade daquele lugar acentuava as temperaturas que nem eram assim tão altas.
Nem que ria imaginar o que seriam mais de 30º graus naquela ilha. Derreteria
com toda a certeza. Vanda ouviu a porta de entrada abrir-se e voou para a sala
na esperança que fosse Vasco. Sentiu um misto de desilusão e de felicidade
quando viu na sua cozinha Catarina e Vera Câmara com um sorriso de boas vindas.
Ambas cumprimentavam-na e repreendiam-na por aquela ausência tão longa e
silenciosa.
- Sabes para que servem os telefones? – Catarina pousou um saco em cima
do mesão e começou a tirar inhames e linguiça de dentro do saco.
- Não merecias que viéssemos aqui receber-te… Mas tens sorte que aqui não
há muito que fazer e tu és a novidade de agora.
- Esse é que é o teu herdeiro? – Vanda tirou o bebé minúsculo do colo de
Vera sem lhe pedir licença e só depois de se deixar encantar por aquela
criatura pequenina é que percebeu o que tinha feito. Sorriu… Afinal a terapia
tinha valido de alguma coisa. – É lindo, lindo, lindo… Mas não consigo perceber
com quem é parecido. – Todas riram ao mesmo tempo e Vanda sentiu-se grata por
estar ali rodeada pelas amigas sem grandes dilemas para resolver naquele
momento. Os inhames foram fritos juntamente com a linguiça entre risinhos e
confidências. Catarina tinha confessado que Daniel estava a tentar ocupar a única
vaga de médico que ficaria vaga com a reforma do Dr. Vicente. Vera reclamava
das noites mal dormidas.
- Se não é o choro do filho… São os roncos do pai! – O riso fácil surgia
e a mesa ficou posta ao mesmo tempos que o estômago de Vanda roncava. Vanda é
que colocara a mesa e não tinha colocado base por baixo dos pratos. Partira o
pão caseiro usando as mão sem luvas e permitiu-se petiscar um pouco de linguiça
directamente das mãos de Catarina.
- Hum… Isto sane melhor na tua cozinha do que na minha! – Vera Fechou os
olhos e gemia enquanto mastigava.
- Isso é porque é sempre melhor sujar a casa dos outros do que a nossa. –
Vanda piscou um olho a Catarina.
- Afinal de contas tu é que és a mãe do Matias, hem? – Vanda quase se
engasgou com aquele cometário de Vera.
- Como é que sabes?
– Foi o Joe que me disse. Sabes que ele e o Vasco são muito próximos e o
Vasco desabafou com ele.
Catarina reparou na tensão que Vanda adquiriu com aquele assunto. Elas
eram amigas para os bons e maus momentos.
- Existe um lado positivo nessa história.
- Qual? – Vanda interrogou Catarina com o mesmo olhar incrédulo que Vera
lhe dirigia.
- Não sofreste de síndrome de hellp, portanto podes ser mãe sem esse tipo
de complicações quando quiseres. – Aquela constatação foi tão absurda que todas
riram com vontade…
- Amanhã vou contar a verdade ao Matias.
Aquela notícia caiu como uma bomba naquela mesa. As duas amigas pararam de
comer e fitaram Vanda incrédulas.
- Tu vais o quê? – As vozes esganiçaram-se em uníssono.
- Vou repor toda esta situação. Afinal de contas eu é que sou a mãe do
Matias. Alguma de vocês gostava de viver numa mentira destas toda a vida?
- Não, mas… - Vera olhava para o filho tão frágil a dormir no carrinho ao
seu lado. – Ele é apenas uma criança… E já passou por tanto…
- Finalmente, ele está estável junto da família… - Catarina pousou os
talheres dando a sua refeição por terminada. – O Marco e a Vera não merecem…
- E eu? – Vanda agora sentia-se insultada. – Acham que eu mereço esta
situação. Ter de tomar este tipo de decisões… Acham que o Matias merece viver
uma mentira sem ter qualquer hipótese de escolher a sua verdade?
Ambas se calaram.
- é uma situação delicada Vanda… Eu não queria estar no teu lugar. Mas
faças tu o que fizeres, nós vamos estar aqui para te apoiar. – Catarina pegou-lhe
na mão.
- Mas também vamos apoiar o Marco e a Vera… Nós somos uma família nesta
ilha. E tu tens de perceber isso.
Vanda ficou sozinha com uma cozinha por arrumar. Arregaçou as mangas e
agradeceu ter aquela tarefa. O dia seguinte seria um dia duro.
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