quinta-feira, 26 de abril de 2012

Capitulo II - Nas Asas do Corvo



Capítulo II

    O primeiro dia de uma nova vida raiou numa luminosidade de esperança. Vanda acordou antes do anúncio do despertador, como acontecia sempre. Levantou-se pelo lado direito da cama como de costume e puxou a roupa da cama para trás. Dirigiu-se à cozinha e procurou uma base para colocar em cima do balcão. Quase desesperou quando percebeu que não havia base nenhuma. Teria de tomar o pequeno-almoço na rua, o que também não a agradava totalmente, mas não conseguia pousar um prato da sua mesa sem ter uma base própria para isso. Resignada voltou para o quarto e fez a cama com gestos compassados e quando terminou, alisou a colcha com as mão até obter um resultado perfeito. Vestiu umas caças de licra pretas e um top desportivo da mesma cor. Dobrou os pijamas e colocou-os milimetricamente na última gaveta da cabeceira. Depois de lavar o rosto e os dentes, Vanda prendeu o cabelo abundante e negro num elástico disciplinado e olhou-se ao espelho com um sorriso aprovador. Já na porta da entrada, ela descalçou as pantufas encaixando-as minuciosamente no canto encostado à porta e calçou os ténis com cuidado para não sair de cima do tapete. Tinha uma bolsa que lhe rodeava a cintura com um mp3 e algum dinheiro e entrou em pânico quando percebeu que a porta de entrada estava fechada apenas no trinco. Ainda não tinha chave de casa e dormiu descansadamente, quando bastava um maluco qualquer rodar a maçaneta e entrar na sua casa. Sentiu que o ar lhe faltava e a sua postura controlada começava a escapar-lhe por entre os dedos. Uma tontura trespassou-lhe os sentidos desequilibrando-a, e Vanda pisou o chão limpo com os ténis conspurcados. Tinha de controlar a situação como mulher adulta que era. A sua vida podia ser exactamente como ela desejava que fosse. Inspirou o ar com força, fechou os olhos e lembrou-se das técnicas de relaxamento que aprendera nas aulas de ioga. Sentou-se no tapete de entrada e descalçou os ténis, colocando no seu lugar as pantufas. De seguida arrumou os ténis na sapateira e foi buscar uma pana com água e detergente. Debruçou-se sobre o chão que tinha pisado sem intenção e esfregou furiosamente, até lhe faltarem as forças. Quando tudo parecia ocupar o seu lugar devido, Vanda sentou-se no sofá e esperou por Vasco. Ele dissera-lhe que ia busca-la para fazerem não sabe o quê, e quando ele chegasse, Vanda pedir-lhe-ia a chave e tudo ficaria bem… Ela sentia-se frustrada por abdicar da sua corrida matinal. Parecia que alguma coisa no seu dia tinha-se desconcertado de tal forma que a colocara num deserto de acções que lhe paralisava a mente e agora a reorganização do seu dia teria de ser todo repensado.
- Olá Vanda! – Vasco surgiu como era de esperar, dentro da sua casa sem sequer bater à porta. Precisava mesmo do raio das chaves. – Vim mais cedo porque a D. Emília resolveu correr com todos da cama antes da alvorada.
- Esqueceste-te de me dar as chaves de casa! – Os olhos de Vanda faiscavam por detrás daquela calma aparente, facto que não escapou a Vasco
- Não me esqueci, apenas não as tinha comigo ontem! – Vasco tirou-as do bolso a atirou as chaves a Vanda que se atrapalhou na recepção.
- E deixaste-me dormir aqui assim… Com a porta aberta… Podia ter entrado um maluco qualquer e… - Vanda sentia que a vista teimava em turvar-se e que o pânico estava a ganhar aquela batalha.
    Vasco olhou para aquela mulher rígida nos movimentos que não sorria demasiado apesar de ter uma boca carnuda e uns dentes perfeitos que mereciam estar sempre encaixados em sorrisos descontraídos. Olhou aquela mulher que não era capaz de fixar um olhar por mais de dois segundos, apesar de ter uns olhos grandes e negros que brilhavam uma humidade permanente. Olhou para aquela mulher que se movia sem rebolar umas formas divinas que era pecado esconde-las naquela postura fria e distante.
- Tem calma Vanda! Aqui ninguém tranca as portas… Não há problema nenhum… - Vasco aproximou-se dela e abraçou-a numa tentativa de a consolar. Mas a reacção de Vanda foi imediata e agressiva. Ela começou a gritar e a distribuir socos e pontapés sem um destino concreto, e Vasco pasmou perante aquele cenário. Afastou-se e quando achou que estava suficientemente afastado levantou os braços e falou-lhe de forma suave.
- Pronto! Já me afastei… Está tudo bem! - Vasco começou a ver o corpo de Vanda descontrair. Os punhos fechados abriram-se lentamente, os olhos latejantes fixaram os de Vasco. A boca estreita relaxou e Vanda deixou-se cair no sofá. Sem emitir uma única palavra. Tinha perdido o controlo. Aquele dia estava a começar mal. Estava tudo fora do lugar. Ela planeara estreitamente aquele dia, mas as suas previsões não se estavam a cumprir. Ela só precisava de um momento para se recompor e voltar a planear o seu dia a partir daquele momento.
- O que é que se passa? – Marco entrou pela porta dentro… sem bater, constatou Vanda suspirando. – Ouvi gritos!
- Gritos? – Vasco olhou para o irmão que trazia o cabelo solto, parecendo um ninho de palha. – O que ouviste foram gargalhadas histéricas. Eu e a Vanda estamos a dar-nos lindamente, não é assim?
- Sim! – Vanda não se sentia com forças para responder melhor do que uma monossílaba. Teria gritado assim tanto?
- Ah! Que susto! - Marco tentava prender o cabelo atrás da orelha mas sem sucesso. – Bem então vou-me embora.
    Vanda levantou-se do sofá e preparou-se para enfrentar as perguntas de Vasco. Adoptou o seu ar de professora, que perdeu assim que viu Vasco literalmente sentado no balcão da sua cozinha a comer bolachas, sujando tudo de farelos.
- Ai não! Assim já é demais! – Vanda voltou a estreitar o olhar, aproximou-se de Vasco e arrancou-lhe o pacote de bolachas das mãos. – Vai sentar-te no sofá! Já!
- Sim mãe! – Vasco gostava mais dela assim… Mal disposta, mas sem reacções estranhas. No entanto quando a viu a esfregar o balcão aflitivamente só porque ele tinha deixado umas migalhas, ficou alarmado.
- Onde é que eu posso tomar o pequeno-almoço?
- Aqui! – Vasco parecia confuso. – Não gostas dos cereais ou das bolachas? A minha mãe deixou-te aqui tanta coisa… Ora deixa cá ver! – Vasco mostrou intenção de começar a remexer nos armários.
- Nem penses nisso! Afasta-te já dos meus armários, ou eu amarro-te pelos cabelos fora da minha porta.
    Vasco levantou as mãos em sinal de rendição e voltou-se para ela devagar.
- Eu não tenho bases para os pratos, por isso não posso comer em casa!
- Hã? – Vasco emitiu aquela admiração levantando um sobrancelha confusa. Vanda não esperava que ele percebesse. Só queria que ele a orientasse naquela terra desconhecida. Saíram e Vanda deixou que a sua vista absorvesse aquela nova realidade. Vivia realmente no meio de um emaranhado de calçadas negras e escorregadias, que sozinha, já não conseguia descobrir o caminho que fizera no dia anterior. As casas alternavam-se em paredes de basalto negro e tristes e outras brancas e calmas como se houvesse uma eterna promessa naqueles cantos. Desceram as canadas num passo lento e Vasco aproveitou para entranhar-se nuns becos minúsculos onde, por vezes cumprimentava pessoas e noutras fazia festas na cabeça de uns porcos limitados pelo curral.
- Isto é tudo muito pitoresco!
- E calmo! Não mudava nada por aqui! Assim que te habituares a esta terra não vais querer sair daqui!
- És mesmo de cá? – Vanda admirava a paixão com que Vasco falava da sua terra, o respeito que lhe lia no olhar quando cumprimentava os mais idosos, o sorriso manhoso quando piscava o olho aos mais jovens. Ele pertencia ali. Encaixava-se ali, naquela simplicidade. Ela nunca se encaixou em lado nenhum. Sentia saudades da sua terra sem desejar voltar a pisá-la. As únicas pessoas que ela amara já não existiam, e o mundo parecia não ter um lugar em que ela se fundisse de forma perfeita.
- Sou! Nascido e criado.
- E nunca saíste daqui?
- Já! Sabes que quando eu era jovenzinho não havia escola secundária aqui no Corvo. Por isso quando tinha apenas treze anos, fui para o Faial estudar… Sozinho… Imaginas lá o que foram aqueles anos.
- Como assim? Os teus pais deixaram-te ir assim? Sozinho?
- Ou era isso, ou não continuava os estudos! Estive no Faial cinco anos, em que só vinha a casa nas férias do natal, da páscoa e no verão… Adorei essa altura. A minha mãe enchia-me de mimos assim que eu pousava as minhas patas aqui… agora para lhe arrancar um mimo é um ver se te avias.
    Pararam num café pequeno, mas movimentado que se evidenciava por umas mesas díspares de plástico vermelho no seu exterior, ocupadas por velhotes que sorriam e cumprimentavam como se ela passasse por ali todos os dias.
- Bom dia professora! – Um senhor de idade avançada, de pele curtida e com uma falta de dentes descarada, cumprimentou-a com a simplicidade e ternura dos ingénuos.
- Bom dia! Como está? – Vanda retribuiu o cumprimento sem esperar resposta, surpreendendo-a o facto do velhote começou a tagarelar.
- Vai ser professora do meu neto. É o Tiago! Ele é um traquina dos diabos… Pode dar-lhe umas palmadas no rabo quando for preciso.
- Eu estou certa que nos entenderemos muito bem, sem precisar de recorrer a umas palmadas…
- Ah, então a senhora vai ter problemas! – O velho sorria e piscava o olho aos companheiros. – Se não lhe arrear de vez em quando, vai ter problemas… Ele é esperto como um raio… Sai ao meu filho que era para ser doutor se tivesse mais tino na cabeça, mas só queria saber de rabos de saias, e agora tem cinco filhos. São todos espertos… Ou sim, não há nenhum que tenha saído burro, mas são uns malandros…
- Oh Ti Joaquim! O senhor depois conta as suas histórias, mas agora vamos comer qualquer coisa. – Vasco salvou Vanda daquele role de informação que nunca mais acabava com uma descontracção que impressionou-a.
- Ah! Pois já sabe! Vai lá com a moça, que ela há-de preferir um novo do que um velho como eu… - E depois de deixar escapar uma gargalhada animada gritou – Oh Zé! Dá-lhe de comer que sou eu que ofereço.
    Vanda avançou na direcção e começou a contestar educadamente, mas Vasco agarrou-lhe o braço e fê-la entrar no café.
- És tonta ou quê? – Ele sentou-se com as pernas exageradamente abertas e com uma postura desleixada. – Ias recusar um pequeno-almoço à pala… Mas de que planeta é que tu me saíste?
- Eu nem conheço o senhor!
- Mas ele conhece-te a ti e quer ter uma delicadeza com sua excelência. – Vasco ofereceu-lhe um dos seus sorrisos genuínos. – Tu és estranha!
    Aquela afirmação apanhou Vanda desprevenida.
- Se te estás a referir ao que aconteceu lá em casa…
- Tu tens qualquer coisa que te torna cinzenta…
- Oh! Muito obrigada pelo elogio! – Vanda mostrava-se agora um pouco ofendida.
- Não tens que quê! Mas eu descubro os teus segredos noutra altura, porque agora vamos devorar estas torradas.
    Vanda nem percebera como estava faminta. Comeram sem trocar uma palavra. Quando saíram do café, o tempo tinha mudado radicalmente. Vanda nem queria acreditar que estava no mesmo lugar. Até há uns minutos atrás, um sol desavergonhado evidenciava toda a sua claridade num calor húmido, mas agora o céu estava negro e carregado de promessas molhadas. As gotas eram grossas e caíam sem vergonha em cima dela, como se fossem donas daquele espaço. Vanda compadeceu-se de Vasco que vestia umas bermudas coloridas e uns chinelos, que depressa tirou dos pés facilitando a sua movimentação. As canadas eram agora escorregadias e Vanda agradeceu o facto de ter os ténis calçados. Quando chegaram a casa de Vanda, Vasco despediu-se à porta dizendo que tinha de ir trabalhar, causando uma certa estranheza, uma vez que ela nunca o havia interiorizado como uma pessoa com emprego. A própria mãe tratava-o por mandrião. O resto dia foi passado enroscada no sofá com a chuva a fustigar-lhe a janela. Ela teve tempo para pensar. Estava tão perto… Começaria as aulas daí a poucos dias e como apenas havia uma turma do 6º ano, o seu filho faria parte dela com toda a certeza. A não ser que tivesse chumbado algum ano, mas esta hipótese parecia-lhe pouco razoável. Ainda não tinha tido acesso às fichas dos alunos, mas assim que visse as datas de nascimento saberia qual era o dela. Mas primeiro queria dar-se a oportunidade de tentar reconhecê-lo sem recorrer a artimanhas. Ela tinha a esperança que o conseguir reconhecer no meio dos outro rostos infantis, apenas porque tinham um laço de sangue e carne a uni-los.
    Pouco antes de decidir dar por terminado aquele dia ensombrado por um céu negro, O telefone tocou, e Vanda hesitou em pegar no auscultador, mas quando decidiu fazê-lo, ela já sabia quem iria ouvir do outro lado.
-Sim!
- Olá Vanda!
- Olá Daniel!
    O silêncio confortável impôs-se por uns segundos.
- O teu primeiro dia correu bem?
- Começou mal, mas acabou bem!
- Então conta-me como foi…


segunda-feira, 23 de abril de 2012

Capitulo I - Nas Asas do Corvo


Nas Asas do Corvo

Capítulo I

    O céu estava limpo de nuvens e o pequeno DashQ200 mostrou-se mais confortável do que Vanda poderia ter imaginado, quando se deparou com aquela aeronave no aeroporto da Horta. Quando trocou o imponente Airbus A320 da TAP pelo minúsculo DashQ200, sentiu que estava num voou de ligação para uma terra perdida no meio de África, como se recordava de alguns filmes. Passou-lhe pela mente uma imagem de uma avioneta cheia de ferrugem transportando de forma duvidosa seres humanos e galinhas na mesma proporção. Mas quando se sentiu confortavelmente sentada dentro do pequeno avião com a cabeça encostada à janela oval e admirando uma pequena traineira que se aventurava vagarosamente no meio de um oceano imenso, Vanda sentiu que aquele transporte era simpaticamente confortável. Os seus olhos teimavam em fechar-se sob o peso da ansiedade que transportava uma antecipação de algo mais importante do que leccionar história a miúdos do sexto ano. Ela escondia no seu íntimo uma espera de onze anos, que a conduz àquela ilha, que segundo o que averiguou tem apenas quatrocentos e pouco habitantes. Não será difícil encontrar uma pessoa no meio daquela pequena população. O anúncio de aproximação à ilha é feito solenemente, e os seus olhos perscrutam o mar numa procura curiosa que entra em alerta quando se afigura perante si não mais do que um ilhéu. A imagem de uma ilha de piratas desconhecida e perdida de todos os antigos olhares atravessa-lhe a mente. E esta imagem não a desagrada. Um verde húmido e agreste ergue-se de um mar azul e calmo, deixando apenas um lanço de terra plano, parecendo a palma de uma mão aberta com longos dedos que forçam uma entrada escura num mar que contesta incessantemente e onde recebe um aglomerado de casas trepantes pela encosta que se eleva. A calma de um presépio fá-la sorrir. Mas este sorriso desvanece-se no contacto visual imediato com a pequena pista. Não é um aeroporto que a espera, mas um pequeno aeródromo. O avião desce e a sensação que deixa é que roçara o mar antes de chegar ao asfalto. Vanda cerra os olhos e reza. O contacto das rodas com solo firme faz despoletar uma plateia de aplausos e hurras que deslumbrou Vanda.
    O recolher das malas foi simples e fácil, como parecia ser tudo ali naquele pequeno pedaço de terra perdido do resto do mundo. Vanda pegou nas duas malas de viagem e arrastou-as para fora da porta do aeródromo, pousou-as de seguida e pela primeira vez sentiu-se perdida naquela pequenez. Os seus olhos avistaram toda a Vila do Corvo, mas não viram um único táxi. Sentiu que o peito lhe caía aos pés. Olhou em redor e as pessoas deslocavam-se a pé arrastando pequenas malas confortáveis. Arrependeu-se instantaneamente por não ter comprado malas com rodinhas. Viu apenas dois carros passarem e quase sentiu um impulso para pedir boleia. O tempo passava por ela irónico e sem solução à vista.
- Olá! Precisas de ajuda? – Vanda desviou o olhar para a voz masculina que se fazia ouvir no seu lado direito. Um homem na casa dos trinta, alto com um corpo que denunciava bastante trabalho para manter os músculos latejantes anunciaram-se com um sorriso perfeito.
- Queria um táxi! – A gargalhada que recebeu como resposta foi demonstradora da probabilidade de isso acontecer.
- Então precisas mesmo de ajuda! – O homem prendeu o cabelo longo e rebelde com um elástico que trazia no pulso e Vanda pode descobriu-lhe uns olhos pequenos e astutos de um caramelo brilhante. – Eu sou o Vasco! – E a mão estendida esperou uns segundos por uma resposta lenta.
- Eu sou a Vanda!
- Ah! Então vais ser a nova professora de história, certo? – Vanda levou um momento a processar aquela informação.
- Sim! Mas como é que sabe? Também é professor?
- Bem-vinda ao Corvo! – Vasco brindou-a com um sorriso maroto que a deixou deliciada com uns dentes brancos e alinhados. O aspecto do seu primeiro conhecimento era apelativo á vista. O cabelo era de um louro escuro, mas que se mostrava mais claro, fazendo adivinhar longas exposições ao sol. A pele morena pela maresia denunciava ser mais clara do que se mostrava naquele momento. Vasco pegou na mala mais pesada e começou a caminhar, incentivando Vanda a acompanhá-lo.
- Já marcaste quarto?
- Não! Estava a pensar ficar os primeiros dias num hotel enquanto procuro casa. – Esta constatação despertou nova gargalhada em Vasco.
- Ainda bem que apareci na tua vida! No meio deste mundo de gente foi mesmo uma sorte! – Vasco piscou-lhe um olho que denunciou a ironia. – Vou ligar a um amigo que tem um pequeno apartamento para alugar. Podes vê-lo e se gostares ficas logo lá. Pode ser?
    Vanda acenou a cabeça afirmativamente. Sentiu uma incredulidade quando reparou que Vasco tirava um telemóvel das bermudas longas e gastas. Parecia que a tecnologia não combinava com aquele pequeno paraíso. A sua admiração cresceu quando, depois de atravessar uma rua e percorrer uns poucos metros da Rua Matriz, chegou a um emaranhado de casas pitorescas separadas por estreitas canadas. Vanda sentiu uma vontade súbita de abrir os braços, e apenas percebeu que tinha sucumbido àquele gesto quando sentiu as paredes de pedras roçarem-lhe as pontas dos dedos.
- Pois… Abrindo os braços alcanças ambos os lados da rua! Todos os novatos fazem isso! – Vasco pousara as malas e sentara-se nos degraus de uma pequena casa.
- Já estás cansado?
- Claro que não! – Vasco sentiu-se magoado no seu ego macho. – Chegámos ao nosso destino. - Os olhos negros de Vanda pousaram na casa escura de basalto com umas persianas de madeira pintadas de verde e uns vasos vazios no peitoril. Sentiu uma vontade imensa de plantar narcisos naqueles vasos e a curiosidade para conhecer o resto da casa correu-lhe nas veias fervilhando-lhe a decisão tomada antes mesmo de conhecer o resto.
- É perfeita!
- Achas mesmo? – Vasco ficou admirado com aquele comentário. Via em Vanda uma mulher mais exigente e levou-a exactamente até àquela casa para um momento de diversão. Ela exalava um perfume caro e sedoso e não vacilava em cima daqueles saltos altos, mesmo quando a levou por entre o emaranhado de canadas de calçadas escuras e húmidas. Esperava vê-la ruborizar e gaguejar tentando inventar a desculpa perfeita para se livrar daquela casa pequena. Pretendia um momento de brincadeira, que aquela mulher alta e esguia que vestia um vestido cinzento e pouco confortável lhe negava. Admirou-a mais do que quis e imaginou-a com o cabelo solto sobre os ombros e uns movimentos menos rígidos.
- Olá Vasco! Já estás há muito tempo à espera? – Marco endireitou a sua postura descaída assim que olhou para aquela mulher distinta que acompanhava o irmão. – Ah! Olá! Eu sou o irmão do Vasco.
- Muito prazer, irmão do Vasco! – Vando sorriu-lhe apreciando aqueles irmãos gloriosos. Ambos tinham um cabelo abundante que tentavam domar com um elástico largo e pouco exigente. Mas ao contrário de Vasco, este novo irmão tinha o cabelo castanho-escuro, e também queimado pelo sol. A pele tornava-se demasiado morena o que lhe conferia um sorriso celestial. Era pouco entroncado e mais alto do que Vasco, o que lhe dava um ar desengonçado tornando-o engraçado.
- O nome dele é Marco! – Vasco apressou aquele aperto de mão. – Vamos entrar? – Mais uma admiração. Entraram sem usar chave. A porta estava simplesmente aberta.
    A casa encontrava-se toda arranjada por dentro, o que a tornava mais apetecível. Entraram directamente para uma divisão que servia de sala e cozinha, pequena e bem decorada. Para além dessa divisão existia apenas um pequeno quarto e uma casa de banho. Era perfeito para ela. Fácil de limpar e de manter tudo em ordem, foi o principal pensamento que lhe ocorreu. No quarto havia uma portada que deixava o sol entrar descaradamente e que dava acesso a um pequeno logrador que tinha uma linha a atravessá-lo.
- Aqui a roupa seca que é um instante! – Vasco mostrava-se entusiasmado. – E podes sempre fazer uns churrascos para o pessoal! – Vasco piscou o olho ao irmão.
- Eu fico aqui! – Vanda não queria mostrar-se demasiado entusiasta, mas a verdade é que se sentia eufórica. Ia ter um cantinho só seu. Pela primeira vez nos seus vinte e nove anos, teria o seu espaço.
    Depois de acertarem o valor da renda e o dia de pagamento, Vanda tentou apressar as despedidas, tarefa que se mostrava impossível com Vasco estatelado no pequeno sofá apreciando os anúncios que passavam na televisão.
- Tens a luz e a água deste mês pagas. – Vasco colocou a mão atrás da cabeça de forma a levantá-la um pouco e encarar melhor Vanda. – E tens telefone fixo.
- Obrigada Vasco! Agora vou desfazer as malas… - E o entendimento de que ele se devia ir embora parecia difícil de chegar àquele homem de aspecto desmazelado que deixava cair os chinelos de plástico no chão. Vanda sentiu que o seu coração acelerava e as faces incendiaram-se. Tentando controlar a fúria que nascia no seu íntimo, Vanda pegou nos chinelos com a ponta do dedos e encaixou-os milimetricamente no canto da entrada. Quando sentiu que assim estava melhor, a porta de entrada abriu-se sem uma única batida de aviso e Marco entrou acompanhado por duas senhoras que falavam alto e ao mesmo tempo.
- Olá querida! Seja bem-vinda ao nosso cantinho! – A primeira mulher de cabelo branco e curto e generosa nas carnes que lhe rodavam as ancas, pousou um saco em cima do mesão de granito que dividia a cozinha da sala. – Eu sou a Emília, a mãe desses dois mandriões! – Depois de dois beijos rápidos, a senhora começou a tirar fruta do saco, espalhando-a na fruteira que se encontrava em cima do micro-ondas.
- E eu sou a Irene! A tia solteira desses mandriões! – O sorriso daquela mulher de cabelo artificialmente louro que deixava á mostra uma raiz escura, enterneceu Vanda por apenas uns escassos segundos. – Tens aqui carne assada para o teu jantar. Basta aqueceres um pouco no forno e fica como acabada de fazer.
- Ninguém faz carne assada melhor do que a tia Irene! – Vasco levantou-se finalmente do sofá e contornou a tia depositando-lhe um beijo na cova do pescoço, enquanto roubava uma pequena batata assada directamente do tabuleiro… e sem lavar as mãos, pensava Vanda. Já não poderia comer aquela comida. As mãos ágeis guardaram pacotes de leite, iogurtes queijo e manteiga dentro do frigorífico. O armário que estava livre de louças e tachos foi atafulhado de bolachas e cereais e a promessa de que no dia seguinte lhe trariam carne de vaca ficou gravada na mente de Vanda.
- Vais adorar a vida aqui! – Emília falava, enquanto fazia a cama de Vanda com roupa que cheirava a alfazema. – É tudo muito calmo! – Vanda revirou os olhos. Ainda não tinha tido um momento de calma desde que chegara àquela ilha. Aquelas duas senhoras, bem como os seus herdeiros ocupavam-lhe a mente e o espaço como se fossem um batalhão. Vasco abriu um pacote de bolachas e comia-as encostado ao balcão, sujando o chão de migalhas. Vanda teve de fechar os olhos para não ralhar e congratulou-se quando a tia Irene lhe deu uma palmada na mão tirando-lhe o pacote e varrendo de seguida a porcaria. Quando finalmente as mulheres olharam em redor e sorriram satisfeitas com o resultado começaram as despedidas e saíram da mesma forma atabalhoada que tinham entrado. Marco acompanhou-as queixando-se de que se esquecera de avisar a esposa do seu atraso.
- Bem! Agora que já estás orientada, vou andando… - Vasco estava a calçar os chinelos junto da porta de entrada.
- Espero que o Marco não tenha problemas com a mulher. – Vanda tentava apressar a despedida, abrindo-lhe a porta.
- Não te preocupes. Já todos sabem que nós estávamos aqui contigo!
- Mas… Como? – Tinha chegado apenas há um par de horas. Era impossível que toda a ilha soubesse da sua chegada.
- Bem-vinda ao Corvo! Aqui a tua vida é quase um livro aberto! – Vasco sorriu-lhe e beijou-lhe a face numa descontracção que incomodou Vanda. – Amanhã venho buscar-te por volta das dez… e veste qualquer coisa mais prática.
    Vasco fechou-lhe a porta antes que ela pudesse contestar. Não queria companhia para o dia seguinte. Queria apenas acordar como sempre por volta das oito horas da manhã, fazer a sua corrida matinal de trinta minutos, tomar um pequeno-almoço consistente e preparar a sua primeira aula que seria daí a uma semana.
    Vanda entrou na casa de banho para o merecido duche e sorriu quando verificou que as duas mulheres lhe tinham deixado embalagens de shampoo e gel de duche intactos. A água quente escoria-lhe pela pele massajando-a e descontraindo-a finalmente. Fechou os olhos e deixou que o perfume do shampoo de morango lhe percorresse o corpo e os sentidos. Estava quase relaxada. Os ombros começavam a descontrair e a mente a abstrair-se das preocupações corriqueiras, quando um toque irritante a arrancou deste relaxamento. O toque repetiu-se novamente até que Vanda voltou à realidade. Embrulhou-se numa toalha impecavelmente branca e procurou a fonte daquele som. Era o telefone. E esta constatação era estranha, uma vez que ainda não tinha tido tempo para dar o número a ninguém. Nem ela própria sabia o número do seu novo telefone. Levantou o auscultador.
- Sim! – Vanda ouvia uma respiração do outro lado. – Quem fala? – A pessoa teimava em não responder, e ela desligou o telefone. Deve ser engano, decidiu. Mas o toque voltou a surgir no silêncio, e Vanda levantou o auscultador de imediato como se fosse perder o seu interlocutor.
- Estou! – A pessoa do outro lado continuava muda. – Eu sei que estás aí… Eu ouço a respiração… Se não responder eu chamo a polícia… e…e… vão descobrir o número de telefone de onde me está a ligar… e vão… vão prendê-lo numa jaula bem pequenina… e vais atrofiar lá… e vais ficar cada vez mais pequeno e mais pequeno…e… e vais apodrecer lá, percebes? – Vanda sentia que o pânico começava a controlar a sua voz que se esganiçava num nervosismo miudinho.
- Olá – A voz que respondeu do outro lado era suave e masculina, e surpreendeu Vanda que demorou um momento a retribuir o cumprimento.
- Olá! Quem fala?
- Daniel! – Vanda vasculhou na sua memória um Daniel, mas sem resultado.
- Qual Daniel?
- Preciso que me ouça por um instante sem desligar o telefone, por favor!
    Vanda sentiu que a curiosidade era maior do que o bom senso que a mandava desligar.
- Diga.
- O meu nome é Daniel e sinto-me sozinho. Moro em Oeiras e estou rodeado por muita gente, mas continuo a sentir-me sozinho. Hoje preciso de ouvir uma voz que não tenha segundas intenções ou interesses escondidos. Ainda ontem descobri que fui enganado pela pessoa com quem pensava passar o resto da minha vida. Pelo meu dia passam tantas pessoas, tantos sorrisos, tantas atenções e eu continuo a sentir-me sozinho. E hoje quando estava a pensar na minha solidão no meio de tanta gente resolvi pegar na lista telefónica e ligar para um lugar bem distante que falasse a mesma língua que eu… Queria ouvir uma voz que apenas conversasse comigo… Já te sentiste assim?
    Vanda sentia-se assim todos os dias. Não podia ser honesta com ninguém e afastava todos os seres humanos que insistissem em frequentar a sua vida por mais do que quinze dias. Não gostava das relações humanas. Tinha um medo excruciante de se expor para os outros, porque os abusos nasciam dos excessos de confiança.
- Sim! Sinto-me assim todos os dias… - Vanda respondeu em voz alta sem que percebesse. O momento de silêncio que se seguiu foi longo, mas nenhum dos dois desligou o telefone.
- Peguei simplesmente na lista telefónica e procurei o lugar mais improvável para encontrar alguém que pudesse conhecer…
- Hum! – Vanda não sabia o que dizer. Tinha os pensamentos dormentes.
- És daí do Corvo? Posso tratar-te por tu?
- Sim podes tratar-me por tu… E não, eu não sou do Corvo!
    Mais um momento de silêncio.
- És de onde?
- Sou de Ourém. – Vanda lembrou-se da sua terra com uma certa nostalgia, mas sem vontade de voltar, como se as suas dores estivessem todas lá guardadas.
- E já estás há muito tempo nessa ilha?
- Cheguei há umas horas…
- Hum! Isso é estranho…
- O que é que é estranho?
- Ando com este número de telefone rabiscado num pedaço de papel há duas semanas. Neste tempo levantei o auscultador todas as noites e marquei o número… Mas só hoje é que deixei o telefone tocar… É estranho, não achas?
    Vanda sentiu a mesma estranheza.
- É realmente estranho!
- Estás de férias? – Daniel sentiu um medo repentino que aquela voz se desvanecesse da sua vida. Se ela estivesse apenas de passagem, não queria manter o contacto. Não queria correr o risco de estabelecer aquele contacto com alguém que em breve pisaria a mesma terra que ele.
- Não!
- Então mudaste-te para ai?
- Sim!
- Porquê?
- Sou professora de história e fiquei aqui colocada.
- Ah! Tens nome?
- Sim… Sou a Vanda!
    Daniel fechou os olhos e absorveu aquele nome.
- Vanda!...
- Tenho de ir! – Vanda começava a sentir frio nos pés nus pousados sobre os mosaicos, e a humidade da toalha embrulhada no corpo era desconfortável.
- Ah! Desculpa! – Daniel forçou-se a ser educado e contra a sua vontade despediu-se – Então adeus!
- Adeus!

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Capitulo XXV - Na base da Montanha . FIM

    CAPÍTULO XXV

    “Dia 7 de Julho de 1954

Querida Glória,

    A saudade pesa-me todos os dias no meu peito, mas diminui no mesmo ritmo dos dias que nos separam. Consegui arrendar uma casa na rua onde moramos. Não é muito grande, mas dá para começares uma nova vida aqui em Denver. Fiquei muito contente quando decidiste vir para cá com o João e o Armando. Por falar no menino, já começou a andar? A Jewel anda ansiosa para conhecer o primo.
Os pais adoram viver aqui, se bem que no princípio foi difícil. A mãe desconjurava tudo e excomungava todas as raparigas que namoravam libertinamente na rua. E quando viram uma televisão pela primeira vez… Foi de rir… A mãe assustou-se, e gritava que se tratava de um rádio com imagens enquanto o pai virava a televisão ao contrário na esperança de perceber como é que aquilo era possível. Temos vários electrodomésticos que depois de criticar, a dona Luzia abençoou… Mas quem está mesmo a gostar desta vida é a nossa Maria. Devias vê-la agora. Está transformada numa mulherzinha muito linda e anda sempre nas últimas modas. Ela já acabou o curso de costura e diz que vai trabalhar numa fábrica de roupa que fica aqui em Denver até ter dinheiro suficiente para ir para Hollywood. A rapariga sonha poder fazer as roupas do Elvis Presley, que é um cantor de rock n’ roll. Vou contar-te uma das histórias dela para que te rias. Na base militar onde o George está havia um rapaz que se embeiçou por ela. Pois ela fez gato-sapato dele. Se chovia fazia o pobre rapaz estar com um guarda-chuva fora da escola à espera dela. Se fazia sol ralhava-lhe sempre que ele não lhe oferecia um sorvete. Um dia perto do fim de ano estava tudo coberto de neve, e o rapaz veio bater à nossa porta. A Maria abriu-lhe a porta e quando o viu com um trenó na mão ralhou-lhe, porque ele devia estar mal da cabeça se pensava que ela ia embrulhar-se num casaco grosso e sair assim à rua parecendo uma salsicha. Ora o rapaz que fez um longo caminho na neve para tentar passar um bom momento com ela saiu de cabeça baixa. Passado um bom bocado, a Maria sentou-se à janela a fazer a bainha de umas calças dela, quando vê o rapaz na rua numa troca de brincadeiras e gargalhadas com uma outra moça. A Maria não tem meias medidas e sai porta fora embrulhada num robe com uns sapatos de salto alto que se enterravam na neve atrapalhando-lhe cada passada, mas mantendo a cabeça erguida enquanto caminhava de uma forma desastrosa. Arrancou a outra rapariga do trenó e ordenou para o rapaz com aquele ar superior dela “empurra”. O rapaz atrapalhado empurrou o trenó enquanto ela reprimia o entusiasmo que aquela acção simples lhe proporcionava. Passadas duas semanas apaixonou-se perdidamente por um outro militar mais velho que sempre que a vê lhe faz uma festa no topo da cabeça reduzindo-a à sua idade e fazendo-a ferver de indignação.
Eu estou tranquila nesta minha vida. Gosto muito de viver aqui, mas sinto muito a falta do nosso Pico. O cheiro da terra húmida ao acordar, do pão cozido no forno de lenha. Tenho saudades da simplicidade das nossas gentes e mesmo da proximidade das pessoas. Hoje olhando para trás não guardo mágoa de ninguém. Afinal de contas trata-se de um povo solitário que se fecha na redoma de uma mentalidade oprimida e que afasta qualquer perigo de fenda nessa mesma redoma. Aqui as mentalidades são mais abertas, mas com o perigo que isso acarreta em si. As mentalidades demasiado abertas desprendem-se da solidariedade e do altruísmo com uma facilidade angustiante. Na nossa ilha se alguém fica doente, as pessoas ajudam sem esperas de grandes retornos, porque fecham-se numa mentalidade comum, numa família comum, numa sociedade comum que protegem sem esforço ou obrigação. Protegem simplesmente porque sim… Protegem tanto que quando a ajuda necessitada por um dos membros foge do entendimento comum excomungam esse membro. E o mais interessante é que esta não é a atitude errada. É uma forma de ajuda, porque libertar aquilo que nós não entendemos é um acto de sabedoria. Viraram-me as costas quando não me compreendiam e eis que me deram oportunidade de encontrar o meu caminho. Mas quando a ajuda está ao seu alcance, aquele povo é incansável como nenhum outro.
Fiquei muito triste quando me relataste na tua última carta o estado do Francisco. Um casamento como o que ele fez com essa moça de Lisboa, requintada e lustrada, mas sem afecto só podia resultar nesse cenário que me contaste. Mas doí-me muito imaginar o Francisco numa vida de traições e leviandades. Que Deus me perdoe, mas ainda bem que não têm filhos.
Eu, o George e a Jewel estamos bem, com a graça de Deus.
A minha felicidade só estará completa quando a nossa família estiver novamente reunida, que será daqui a nada. Cá estaremos todos como de costume com os braços abertos para te receber numa nova vida.
Até breve irmã da minha alma.
Com Amor,
Ana Ferreira Smith”



Fim

quarta-feira, 4 de abril de 2012

CAPÍTULO XXIV - Na base da Montanha

CAPÍTULO XXIV

    Casamento… Era este o dia… E a palavra martelava na cabeça de Ana com o peso da responsabilidade que daí advinha. O espelho alto reflectia uma noiva simples, mas elegante. O vestido disfarsava a falta de pureza num linho branco bege calmo e passivo que caia numa seda leve e modelada pelos movimentos. O cabelo apresentava-se preso num coque perfeito com um gancho de pérolas por único efeito. A discrição da vestimenta de Ana resultava numa elegância sóbria pouco usual nas noivas abusadoras de rendas e tules.
    Ana colocava a liga com um cuidado exagerado e sorriu quando pensou na sua lingerie nova e rendada expectante de uma noite de núpcias que ela desejava, mas que dificilmente se concretizaria. O quarto estava silencioso. A mãe e as irmãs já se tinham posto a caminho da igreja acompanhadas por George. Ela estava ali à espera do pai que tinha ido buscar Chico, o burro que a transportaria até à igreja.
- Ana! – A voz petrificou-lhe o sangue nas veias e o movimento quase teatral parecia desejar um devaneio momentaneo. Mas os seus olhos confirmaram a imagem que a sua mente fizera corresponder àquela voz.
- Francisco! – Ana sentiu que o pensamento perdera a sua agilidade natural.
- Não te cases, Ana! Por favor! – Francisco tinha perdido o sorriso fácil e aquele ar superior que o caracterizava. Os olhos estavam envoltos numas olheiras profundas e raiados de sangue e lágrimas que já não caiam.
- Porquê? – Ana aproximou-se de Francisco que susteve a respiração.
- Porque eu amo-te!
- E o que é que eu faço com o teu amor, Francisco?
- A minha vida tem sido um inferno, desde que soube que vais casar! – Francisco inspirou fundo e deu um passo na direção de Ana. Colocou-lhe as mão nos ombros sentindo um certo estremecimento naquele toque, e fixou-lhe o olhar. – Não consigo dormir, não consigo comer… Ando atormentado Ana… Não podes casar… Eu amo-te! Nós podemos resolver tudo isto… Fica comigo Ana!
- Oh meu querido Francisco! – Ana pousou a palma da sua mão no rosto áspero de Francisco e permitiu que o seu polegar percorresse as linhas duras daquela feição. – Nem imaginas como desejo que encontres a calma…
- Eu só fico bem se tu não te casares… Por favor… Enquanto estiveste fora eu pensei por momentos que te tinha esquecido… - Francisco cobriu a mão de Ana que se mantinha quente, encostada ao seu rosto. – Não te via e era fácil para mim não pensar em ti… Mas quando chegaste a esta ilha, noiva desse americano… Eu nem sei explicar a revolução que se deu em mim.
- Chegaste a esquecer-me enquanto estive fora…
- A esquecer-te não… Nunca… Mas o meu dia corria com normalidade. É claro que me lembrava de ti… Sentia saudades… Mas o meu coração estava mais tranquilo.
   Ana pegou na mão de Francisco e beijou-lhe a palma da mão.
- Tu és belo e rico Francisco… E eu não te amo!... – Os olhos semicerrados de Francisco abriram-se num espanto. – Que amor é esse que me queres oferecer, se quando eu sofria para ter um filho teu, tu davas-te ao luxo de te lembrares de mim de vez em quando? Que amor é este que eu nunca senti quando passei fome e dormi na rua? Que sentimento te atormenta o sono que eu nunca senti enquanto dava à luz a nossa filha? Tu ensinaste-me a procurar o amor no lugar certo, e eu vou ser-te grata para o resto da minha vida… - Ana empinou o queixo numa certeza antiga, mas que agora se evidenciava luminosa e clara sem sombra das dúvidas de um passado que pertencia exactamente a esse tempo. – Agora vou-me embora. Vou iniciar uma vida nova com um amor sereno que desejo de coração que um dia tenhas a capacidade de sentir… Adeus Francisco…
    Ana chegou à igreja montada no burro da sua infância. Chico representava os anos em que ela e as irmãs corriam naqueles prados, montando o burro sem sela e soltando gritinhos de alegria, que pareciam incentivar o burro a uns coices que apimentavam a brincadeira. Aquele tempo em que a lealdade era vivida apenas a três. Aquele tempo em que as irmãs e os pais eram a sua principal e única família. Aquele tempo que ela tornaria oficialmente numa recordação eterna, no exacto momento em que assumisse esta nova família. Chico zurrou quando Ana lhe virou as costas e incentivou-a a seguir em frente com um empurrão do seu focinho. Ana riu-se, entrelaçou o seu braço com o do pai e deixou-se conduzir para o altar do seu futuro.
    As palavras do padre Inácio soavam ao mesmo burburinho de sempre e o pensamento de Ana vagueava muito acima da intenção dessas palavras. A sua alma só voltou a concentrar-se no seu corpo quando o estremecimento da compreensão de que Deus os abençoava como marido e mulher seu deu num nervoso miudinho que esperava o primeiro beijo público. George não desviou os seus olhos dos de Ana e sorriu-lhe enquanto lhe rodeava a cintura. Os lábios encostaram-se numa suavidade branda que deixava um desejo de aprofundamento. A explosão de alegria rebentou da garganta de Maria que numa emoção própria batia palmas e emitia gritinhos de felicidades.
    O baptizado de Jewel foi realizado logo de seguida, e Ana gostou da sensação de ter a filha nos braços e George com o seu braço a cobrir-lhe os ombros. Eram uma família. O padre Inácio teve dificuldade em aceitar um nome estrangeiro, mas depois de ser confrontado com o argumento de que o pai era americano, ele limitou-se a encolher os ombros e a pronunciar o nome o melhor que lhe foi possível. Tina e John forma uns padrinhos muito solícitos que se emocionaram quando perceberam que tinham tantas responsabilidades na educação daquela menina. Glória e João apadrinharam o casamento vivendo pela segunda vez as emoções de um enlace e com um entendimento de olhar aprovaram o que viram. Ana invejava aquele olhar. O mesmo olhar que lhe inspirara respeito sempre que a voz de um dos seus progenitores emitia uma decisão que expressava a opinião de ambos. Apenas um olhar trocado entre eles e sabiam quando ela e as irmãs mentiam. Apenas um olhar… Porque a cumplicidade e companheirismo de um casal são os elementos fundamentais para que exista amor. A paixão morre com a mesma intensidade com que nasce. E qual é a herança de uma paixão? Amargura na maioria dos casos… Por vezes indiferença… Muitas vezes ódio… Mas é o amor que define a verdade dos sentimentos. É no amor que reside a certeza de sucesso, de futuro, de apoio incondicional… O amor nunca resulta em amargura, nem em indiferença e tão pouco em ódio. Mas esta distinção é tão difícil de se obter, que se pode percorrer as desventuras de uma vida procurando o amor e convencendo-nos de que o encontrámos, mas depois fazemos as malas, fechamos o coração e partimos novamente nessa busca… Só os afortunados têm a sorte de os saber distinguir… Só os afortunados que tiveram a sorte e a capacidade de aproveitar o amor é que sabem fazer esta distinção sem dúvidas ou incertezas, porque nada do que conheçam se pode igualar ao facto de encontrar a outra metade de um ser. E quando isso acontece, quando a nossa mente absorve a aceita essa descoberta, então o sentimento é arrebatador e implacavelmente seguro contra as intempéries do destino.
    - Um brinde à felicidade da minha filha! – José levantou-se da única mesa daquele casamento peculiar e ergueu o copo. – Eu quero dizer umas poucas palavras. Deus tem uma estranha forma de nos mostrar o caminho certo. Eu quero que todos saibam que hoje eu ergo o meu copo pela felicidade da minha Ana com o mesmo orgulho com que a acompanhei quando ela andava de barriga e todos lhe cuspiam desgraças e más premonições. Deus abençoa os audazes, e a minha filha teve a capacidade de não se conformar com uma penitência de infelicidade e procurou novos caminhos… - José sentiu que a voz lhe ia faltar, e antes que isso acontecesse efectivou o brinde. – Brindemos à felicidade da minha Ana, do marido e da minha neta, que tem este nome que ninguém consegue dizer…
    O tilintar dos copos e os desejos de felicidade foram despejados no mesmo ritmo dos grandes goles. Tina jurava que tinha percebido este desfecho desde o dia em que vira George chegar a casa com Ana nos braços, enquanto o marido rebolava os olhos num sinal claro de descrença. Glória derretia-se sempre que Jewel lhe agarrava um dedo com os seus dedinhos frágeis e fazia João prometer-lhe que teriam muitos filhos. Luzia mantinha-se atenta evitando pratos vazios e copos por encher.
- Agora é a minha vez de fazer um brinde! – Maria colocou-se de pé em cima de uma cadeira com o seu copo de limonada cheio. – Eu quero brindar à diferença e aos corajosos que a aceitam e que lidam com ela… - Os olhares daquela mesa, enevoados pelo excesso de vinho depositaram-se naquela menina e forçaram o entendimento pronunciado. Luzia soube que a inteligência daquelas palavras eram dirigidas à sua filha Ana de uma forma directa, mas também eram dirigidas a si, de uma forma subtil e discreta. – E agora que Deus abençoe a terceira filha dos Ferreira com um namorado bonito! – A gargalhada foi geral e determinou que aquele momento seria simples, e animadamente feliz.
    Ana fechou a porta do quarto atrás de si e olhou para George, numa ansiedade visível pelo seu morder de lábio.
- Obrigada George! – Ana aproximou-se do marido. – Thank you!
- It was a pleasure to marry you! – George encurtou a distância que os separava, e deixou que o tacto dos seus dedos sentisse o contorno do rosto de Ana. Sorriu quando os olhos de Ana se fecharam sucumbindo ao prazer daquela carícia. George colou o seu corpo ao de Ana e o encaixe foi perfeito. A palma da mão grande e quente percorreu as suas costas que estremeceram ao toque.
- You looked beautiful. – As palavras sussurradas ao ouvido de Ana anteciparam o roçar de lábios que lhe percorreu o pescoço. Ana sentiu-se perdida naquele momento, e todos os seus sentidos estavam em alerta, desejando mais. Num gesto rápido, George soltou-lhe o cabelo que caiu descaradamente, dando-lhe um ar ainda mais sensual. Os peitos batiam em uníssono e os hálitos fundiram-se num beijo profundo. Os actos foram-se desenrolando numa sintonia perfeita com os sentimentos e os dedos de George emaranharam-se no cabelo rebelde de Ana, enquanto a outra mão lhe fazia correr o fecho do vestido. George afastou-se apenas o suficiente para apreciar o vestido escorregar pelo corpo perfeito de Ana. A visão era mais tentadora do que podia imaginar, mas ainda insuficiente. George desapertou-lhe o espartilho sem embaraços e quando a palma da sua mão sentiu a pele nua de Ana, um calor percorreu-lhe o corpo. Ana desapertou a camisa e fê-la deslizar pelos ombros largos e duros do marido. Quando já não restava nenhuma roupa sobre os corpos nus, os olhares deliciaram-se sem vergonhas e as carícias sucederam-se. Com as peles coladas sentido o sabor e o odor do corpo em descoberta, George conduziu Ana até à cama e deitou-a com uma ternura que antecipa um acto de entrega. O corpo dela era perfeito e quando George se deitou ao lado dela e percorreu a curva dos seios redondos com o polegar Ana revirou a pupila dos olhos. Os braços envolveram os corpos, os lábios sucumbiram ao desejo, as peles trocaram calores, e Ana abriu-se para um clímax até então desconhecido. Quando o peito acalmou e os corpos relaxaram, George aconchegou Ana no encosto do seu braço, pegou-lhe no queixo e fê-la fixar a verdade dos seus olhos.
- I love you!
- Eu também te amo! – A magia daquela troca de olhares foi a tradutora perfeita daquele momento.