domingo, 30 de setembro de 2012

Capitulo XIII - Nas Asas do Corvo


Capitulo XIII

    O dia decorria como se Vanda estivesse a assistir a um filme da sua vida. Não era ela que estava ali encostada à secretária rígida de madeira riscada ensinando às suas criança como os romanos tinham-se imposto à resistência feroz do povo ibérico. Olhava-os e desbobinava a lição decorada… A sua alma estava presa à expectativa da explicação dessa tarde de segunda feira. Receberia o seu filho em casa e desfrutaria dele sem ninguém por perto. Estava na hora de conquistar a sua confiança, amizade e amor… Precisava de tempo e paciência. Mas ela sabia esperar era metódica e organizava sempre a sua vida passo a passo. Quando se atrevera a sucumbir à pressa de viver perdera toda a sua inocência, e o preço teria de pagá-lo tal qual uma renda vitalícia. Privaram-na de anos de intimidade, de calma, de decisão sobre a sua própria vida… Privaram-na de um filho…
- Por hoje terminamos! Não se esqueçam que temos teste na próxima aula. – A interjeição de desanimo percorreu a plateia em uníssono  E os lábios de Vanda curvaram-se num misto de ternura e prazer.
- Vamos professora! – Matias olhava para ela sem ternura ou amor, apenas com gratidão e expectativa. Esta constatação atingiu-a como um raio. Ele não sentia nenhuma ligação química super sensitiva em relação a ela que o fizesse olhá-la de forma diferente. Não havia uma magia que os ligasse sem dúvidas ou receios. Não sentiam nenhum chamamento de sangue.
O caminho fez-se numa conversa de ocasião e numa passo apressado, uma vez que o céu enegrecia ameaçadoramente.
- O primeiro período está quase a terminar. Achas que vais ter boas notas de forma a receberes a consola que tu queres? – Matias estendeu a sua mão e entrelaçou na mão de Vanda com uma simplicidade corriqueira. Vanda percebeu amargamente que não havia electricidade no toque.
- Acho que os meus pais não me vão oferecê-la no Natal. Eu tenho feito muitas mausuras… - Vanda riu alto.
- Tens feito o quê?
- Mausuras! Eles mandam-me para a cama quando eu não tenho sono e depois admiram-se que eu não vá para o quarto dormir! – Vanda olhou-o expressando dúvida no erguer de uma sobrancelha. - Ontem a minha mãe começou aos berros porque levei o portátil do meu pai e estava a falar com os meus amigos!
- Mas os teus pais não te deixam falar com os teus amigos? – Vanda sentiu uma brecha que ela podia preencher e quem sabe conquistar o próprio filho.
- Acho que eles me querem só para eles! Quando as brincadeiras estão boas lá vêm eles chamar-me para pôr a mesa ou para tomar banho. Tenho sempre trabalhos de casa para fazer e quando não tenho, mandam-me estudar à mesma, ou lavar o carro ou cortar a relva… Nunca me posso divertir.
- Estou a ver! Diz-me uma coisa Matias, o que queres ser quando fores grande?
- Quero levar os turistas a ver baleias com o meu tio Vasco! – O coração de Vanda derreteu-se quando ouviu aquele nome já tão amado.
Vanda sentou-se no balcão da sua cozinha e iniciou a sua explicação particular a Matias. O menino era realmente inteligente… Possuído por uma inteligência impertinente que fazia lembrar Vasco. O olhar matreiro e o sorriso sempre mal disfarçado também eram heranças do tio. Que ideia ridícula. Eles nem eram parentes de verdade…
Matias torcia-se na cadeira e inventava novos temas de conversa a cada minuto que passava. A sua mente passeava deliberadamente por todos os temas que não se ligassem a história e Vanda suspirava desesperada. A campainha tocou salvando-a do abismo.
- Olá Vanda! – Os olhos dela brilharam ao encontrar Daniel à sua porta. Obrigou-o a entrar rapidamente puxando-o pela manga da camisola.
- Este é o Matias! – E olhou para os dois numa expectativa inútil.
-Olá! - Resmungou Matias que deixava o queixo descair sobre a mão dobrada e impaciente.
- Olá! – Devolveu Daniel encolhendo os ombro perante aquele olhar esperançado de Vanda. Ela mordia o lábio e balouçava o corpo ansiosamente fazendo pender de um pé para o outro. Os seus dedos contorciam se nervosamente e os seus olhos arregalavam-se e indicavam a Daniel o lugar onde o menino bocejava de tédio. – Não estou a perceber nada Vanda! – Segredou-lhe Daniel.
- Lembras-te de eu te ter dito ao telefone que tinha um filho! – Vanda vigiou por cima do ombro certificando-se que Matias não ouvia aquela conversa. – É ele Daniel! É este menino… O meu filho.
Daniel arregalou os olhos, não só de surpresa, mas principalmente de temor pelo que a mente de Vanda lhe estava a fazer.
- Olá a todos! – Vasco entrou e franziu o nariz à visita inesperada de Daniel. O seu peito encheu-se quando Vanda lhe dirigiu um sorriso rasgado e lhe depositou um leve beijo nos lábios. Vasco aproveitou para segurá-la pela cintura numa atitude possessiva que não escapou ao olhar perspicaz de Daniel.
- Vamos tio! – Vasco arrumou a mochila atirando todo o material lá para dentro e colou-se ás pernas de Vasco apressando-o a sair.
- Não me dás um beijo Matias? – Vanda baixou-se de forma a facilitar a despedida. Matias depositou-lhe um beijo apressado e ela aproveitou para lhe percorrer os caracóis com a ponta dos seus dedos. Ficou novamente desiludida com a ausência de química.
- Vamos tio! Anda lá…
- Bem! Parece que temos um rapazito ansioso para se pôr na alheta! – Vasco piscou um olho cúmplice ao sobrinho. – Queres boleia Daniel?
- Não! – A resposta seca mereceu um revirar frustrado de olhos em Vasco que se despediu sem vontade de Vanda.
A porta bateu e Vanda deixou-se cair no sofá com um sorriso palerma nos lábios. Daniel olhava-a constrangido pela conversa sincera que teria de ter com ela. Só faltava decidir se assumiria o papel de psiquiatra ou o papel de amigo.
- Achas que ele é parecido comigo? – Vanda deu umas palmadas no sofá, indicando a Daniel que se sentasse.
- Quem?
- O Matias! Que pergunta… - Vanda levantou-se num salto que assustou Daniel. Ela estava relaxada no sofá, começando uma conversa e de repente pôs-se a arrumar o material escolar que estava em cima da bancada. Daniel seguiu-a sem proferir uma única palavra. Ela arrumou os livros numa estante em que estavam vários manuais ordenados por cores e tamanhos. Depois retirou um estojo em pele. Deveria ser para arrumar a caneta preta que ela levava na mão. Mas em vez de a colocar lá dentro, tirou todo o conteúdo do estojo, e começou a recolocar todas as canetas no seu interior. Uma por uma. Todas com as tampas voltadas para cima e com as letras inclinadas para o mesmo lado, encaixando-as num puzzle perfeito. Fechou o estojo e colocou-o dentro da gaveta impecavelmente arrumada. Descalçou as botas e passou um pano pelas mesmas antes de as arrumar numa sapateira em que os sapatos se encaixavam numa harmonia constrangedora. Finalmente voltou para a sala e sentou-se continuando a conversa como se nunca tivesse saído dali.
- Eu tinha medo de ver nele o rosto do outro, sabes? Mas não vejo nada que o ligue a ele. Não tem nenhum traço dele… Por isso acho que ele deve ser parecido comigo, não achas?
Daniel engoliu antes de mergulhar nos problemas daquela mulher.
- Não Vanda! Não o acho nada parecido contigo… - Daniel viu a decepção trespassar-lhe o olhar. – O Vasco sabe?
- Não! – Vanda endireitou-se perante aquela pergunta. Ela não se sentia confortável com aquela tema em concreto. – Eu vou dizer-lhe, mas ainda não tive coragem… Estou a tentar conquistar aquele menino primeiro.
Daniel inspirou fundo. O psiquiatra dizia-lhe para a conduzir para uma terapia profunda, mas o homem sussurrava-lhe que lhe oferecesse amizade. Ela não tinha amigos há demasiado tempo, que a conduzissem ou que lhe dessem o exemplo. Ela não tinha um bom exemplo há demasiado tempo e mesmo assim soube trilhar um caminho confortável e aceitável na sociedade. Só precisava de orientação, porque os seus olhos mostravam confusão… Mas a loucura é mais profunda do que a confusão…
- Como é que tu sabes que o Matias é teu filho?
Vanda voltou a recostar-se no sofá. Aquela linha de conversa já lhe era confortável. Ela queria muito laços que a ligassem a pessoas. Já não tinha nenhuma relação familiar e estava a tentar compensar.
- Antes de tirar o curso investiguei! Tornei-me amiga de um enfermeiro da maternidade onde dei à luz o Matias – Daniel engoliu ao ouvir aquela falsa afirmação – e consegui saber todos os nascimentos registados naquele dia…
- No dia em que deste entrada na maternidade em trabalho de parto?
- Sim!
- E tu lembras-te da data? – Daniel estava surpreso.
- Vinte e sete de Agosto do ano dois mil… Foi quando o meu Matias nasceu!
Sim… Foi naquela data que Daniel acompanhou Vanda de urgência até à maternidade e lhe segurou na mão enquanto ela rangia os dentes a cada contracção.
- Como é que podes ter a certeza de que ele é teu filho Vanda? Existem outras vidas e outras histórias em jogo… Não te podes precipitar. Deves primeiro arrumar a tua cabeça. As coisas têm de estar muito claras antes de qualquer decisão da tua parte. Uma atitude depois de tomada, nunca mais poderá ser retirada  quando muito pode ser perdoada, mas jamais esquecida.
- Eu sei Daniel! Como te estava a contar, naquele dia nasceram cinco crianças. Três raparigas e dois rapazes. Apesar de ter uma memória muito turva daquela dia, eu sei que dei à luz um rapaz. Eu vi-o… Olhei-o tão pequenino, tão frágil… Era um rapaz… Tenho essa imagem clara na minha mente. Ele a passar nas mão cobertas por umas luvas alvas ensanguentadas… Muito pequenino… é a única imagem que não está turva na minha mente, Daniel. Era um rapaz…
- Mas dizes que nasceram dois rapazes nesse dia?
- Sim! Deixa-me continuar… Tinha as minhas opções reduzidas a dois rapazes. Já tinha passado muito tempo e resolvi não me precipitar. Tirei o meu curso de história com distinção, assegurando-me que ficaria colocada sempre na minha primeira opção. E assim escolhi Vila Real, porque o outro rapaz era de lá. Conheci o pequeno Pedro! Era um terrorista… - Vanda sorriu com o olhar perdido numa dimensão distante. – Houve uma empatia imediata. Eu não fui professora dele, mas ele tinha dificuldades eu ofereci-me para o apoio escolar de forma a ficar mais perto dele. Aquele menino viva num ambiente familiar degradado Daniel… O pai era alcoólico e a mãe paria como quem vai de férias, uma vez por ano. Eu desejei muito que fosse ele o meu filho. Sonhei dias e noites em resgatá-lo daquela vida… Mas não era ele. Numa aula de apoio fiz uma pequena brincadeira com os meninos. Montei um cenário tipo CSI e transformei-os em investigadores. Entreguei um Kit a cada menino que tinha uma haste parecida com um cotonete. Cada um deles raspou o interior da bochecha com aquela haste comprida e colocaram novamente dentro do Kit esterilizado. Mandei o Kit do Pedro para fazer a análise de ADN, juntamente com uma amostra minha e o resultado foi negativo… - Daniel sentiu tristeza na sua voz e aproximou-se dela pegando-lhe na mão. Acariciou-lhe os nós dos dedos. – Por isso só pode ser o Matias!
- Vanda!
- Sim…
- Eu estive contigo naquela noite… Na maternidade! – Daniel sentiu que Vanda tinha voltado a concentrar a sua mente nele. – E tu deste à luz um filho… Um rapaz… Que morreu!...

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