Capitulo XI
O
caminho foi feito em silêncio. A vila do Corvo distanciou-se da traseira da
carrinha e Vanda sentia em cada metro de distância daquele aglomerado de casas
o peso da solidão e um silêncio profundamente ensurdecedor chiava-lhe no ouvido
e fazia-a torcer os dedos da mão nervosamente. Não houve necessidade de dar
indicações do caminho. Afinal havia apenas um caminho que saía da Vila.
Daniel
saiu da carrinha e o seu coração parou por uma fracção de segundo. Sem
conseguir explicar se aquela reacção se devia à imagem de Vanda a sair da
carrinha com os braços cruzados e o vento a favorecer-lhe o cabelo selvagem ou
à imagem daquela cratera pacífica que recebia um festim de verde.
-
É de cortar a respiração!
-
A primeira vez que vim aqui também senti uma emoção profunda. Não existem palavras
capazes de descrever o Caldeirão com justiça… apenas podemos admirar e sentir
com todos os nossos sentidos. – Vanda sentou-se na erva húmida sem medo das nódoas
que deixaria nas calças. Nem pensou nisso. E quando finalmente lhe ocorreu que
provavelmente mancharia as calças de forma irremediável limitou-se a rir alto.
-
Estás a rir-te de quê? – Daniel admirava-lhe aquele riso estridente. Nunca
tinha presenciado aquela Vanda… Percebia agora que nem sabia como era a sua voz
antes de lhe falar pela primeira vez ao telefone. Começava agora a descobrir
uma nova mulher, não muito diferente das outras.
-
Esta ilha está a curar-me doutor!
-
Já que eu não o consegui… - Vanda percebeu a frustração na voz de Daniel e
pousou uma mão compreensiva no seu ombro. – Fala comigo Vanda… Diz-me o que te
vai na alma… Diz-me o que te passou pela cabeça durante todos estes anos…
Acompanhei-te naquele dia fatídico e depois no hospital durante anos. E depois
disso nas consultas periódicas e nunca me dirigiste palavra. Porquê?
Vanda
calou-se e Daniel sentiu que a estava a perder novamente.
-
Eu tenho-te acompanhado sempre… Sempre Vanda… Mesmo quando tu não me vias nem
sentias. Enquanto tiraste o curso de história… Ias às consultas periódicas, mas
nos intervalos eu vigiava-te ao longe. – Vanda retirou a mão do ombro. –
Fizeste um percurso académico brilhante… Brilhante. Eras metódica e organizada,
mas nunca te vi sorrir como agora. Mesmo quando estiveste em Vila Real a dar
aulas eu acompanhei-te de longe… e depois vieste para aqui. Podias ficar
colocada onde quisesses Vanda, mas vieste para aqui por opção tua. Sim, eu sei
que esta foi a tua primeira opção… Porquê? Porque é que te esforçaste tanto
para seres uma aluna de excelência, se a tua primeira opção seria este ilhéu?
-
Devia sentir-me assustada com seu discurso doutor Daniel…
-
Por favor Vanda! Não era minha intenção…
-
Como é que queres que fique… andaste a seguir-me de uma forma estranha. – Vanda
arregalou os olhos num medo que lhe gelou o sangue… - Daniel…
-
O que foi? – Ele era psiquiatra e como tal soube que alguma coisa em Vanda se
tinha colocado em alerta.
-
É contigo que tenho estado ao telefone? Claro que é… Desde que tu chegaste que
o telefone nunca mais tocou. – Vanda levantou-se e sentiu que estavam a forçar
novamente uma entrada na sua vida. O pânico atormentou-lhe as entranhas e as
suas pernas ganharam a força do medo e saltaram como uma mola, seguindo-se uma
corrida alucinante.
-
Vanda… espera Vanda! Não é o que estás a pensar… eu nunca te faria mal… Por
favor Vanda! – Daniel levantou-se e correu, mas ela parecia feita de vento e
afastava-se a cada passo. Daniel sentia os pulmões arderem do esforço e
desistiu de a perseguir. Voltou para a carrinha e fez o caminho de volta à
procura de Vanda. O céu azul cobriu-se de um manto cinzento que não se fizera
anunciar e a chuva caía num frenesim que aguçava o nervosismo de Daniel. Ele
fez aquele caminho seis vezes, e em cada uma das vezes o desespero crescia-lhe
dentro do peito. Desistiu de procurá-la sozinho. Encostou a carrinha e ligou a
Vasco.
-
Estou! Vasco!
-
Sim…
-
Ela desapareceu…
-
Como assim ela desapareceu? Isto é uma ilha, e muito pequena por sinal… - Vasco
sentia-se ferver de fúria contra Daniel. – O que é que lhe fizeste?
-
Não fiz nada… Juro! Por favor ajuda-me a procurá-la… Nós estávamos no Caldeirão
e ela saiu a correr… Já fiz este caminho inúmeras vezes, mas não a encontro.
-
Eu vou até a casa dela…
Vasco
desligou o telemóvel sem se despedir. A sua atenção, os seus sentidos, o seu
coração palpitavam na direcção de uma boa noticia que lhe aliviasse aquele peso
que sentia nos olhos. Onde estaria ela e em que condições? Não se podia
permitir a perdê-la… Não agora que sentia a certeza de um futuro correr-lhe nas
veias e em que o desejo do quotidiano repetitivo e previsível parecia
satisfazer-lhe todos os seus sonhos a longo prazo. Ela era forte e tinha aquele
ar altivo que lhe cobria uma fragilidade digna de um fino cristal que se desfaz
em mil pedaços no mais pequeno embate. A vida constrói-se num sucesso de
acontecimentos, porque uma acção só se corporiza depois da fracção de segundo
em que é decidida. E é aquele acontecimento que vai sedimentar mais um pouco a
vida. Aquele acontecimento e não outro, tal como numa corrida de
espermatozóides… Só um é vencedor… E os acontecimentos constroem uma vida forte
e solitária se forem resultante apenas de boas decisões, ou uma vida frágil e
pouco digna se resultarem exclusivamente de más decisões… Do contrabalanço de
ambas é que resulta a vida harmoniosa e sábia, porque é necessário haver um boa
dose de decisões erradas para as decisões certas serem apreciadas e adoptadas.
Vasco sente que é altura de Vanda aprender com as decisões erradas e valorizar
as certas de forma a solidificar a sua vida em torno da vida dele e juntos
construírem algo forte, sensível e longo.
-
Vanda! Estás aí? Responde… Bolas! – Vasco procurava Vanda nas entranhas da
pequena casa. Estava tudo irrepreensivelmente limpo e arrumado. Assim que ele
abriu a porta soube que ela não estava ali. A sua pele não a sentiu…Mas a sua
mente não queria correr riscos e ele procurou-a desesperadamente. Não estava em
casa. O telemóvel tocou e ele atendeu numa antecipação frenética.
-
Estou!
-
Olá Vasco! Sou eu a Catarina… Estou a ligar-te porque achei que devias saber
que a Vanda está aqui
Vasco
fechou os olhos e deixou que o alívio se apoderasse do seu corpo.
-
Ela está bem?
-
Não sei bem o que te diga Vasco! Ela apareceu-me aqui toda suja de lama, molhada
até aos ossos, a bater o queixo de frio. Ainda não disse uma palavra!
-
Eu vou já para aí! Mantém-na quente.
-
Ela está a tomar um duche quente neste momento e eu vou preparar-lhe um café
quente e massa sovada…
-
Obrigada Catarina! De coração…
Vasco
permitiu-se a uns minutos de sossego no sofá já conhecido do seu corpo mole que
começava a relaxar. Sentira medo de perdê-la. Não… Medo não. Pânico. Tinha que
digerir aquele sentimento com calma e assegurar-se de que ela não ia a lado nenhum.
Precisava de se aclamar. Não podia chegar ao pé dela naquele estado, com uma
respiração ofegante de nervos.
-
A roupa ficou-te lindamente! – Catarina olhou para Vanda com um olhar que lhe
perscrutava o rosto com uma preocupação disfarçada em simpatia. Vanda conhecia
aquele olhar. Tinha vivido anos de manicómio com aquele olhar nas enfermeiras,
nos médicos e nas auxiliares e um arrepio do passado percorreu-lhe a espinha.
Sentiu que Daniel a queria forçar a algo que ela não queria… fosse o que fosse…
Era ela que mandava na sua vida e nunca mais permitiria abusos da sua
intimidade.
-
Obrigada Catarina!
-
Não tens de agradecer! Senta-te aqui comigo e faz-me companhia no lanche. –
Catarina sentou-se e indicou-lhe o lugar à sua frente. O café emanava um aroma
quase irresistível.
-
Não quero incomodar mais.
-
Não incomodas nada! É sempre bom ter uma companhia feminina. – Catarina
piscou-lhe um olho confidente que arrancou um sorriso livre a Vanda. E ela
sentou-se e rodou a chávena de café quente com as palmas da mão absorvendo o
calor. – Liguei ao Vasco para te vir buscar. Eu levava-te a casa, mas não tenho
carro. – A gargalhada em uníssono das raparigas partilharam a piada muda
naquelas palavras. Vanda agradeceu-lhe com os olhos o facto de ela estar a tornar
aquela situação fácil.
Vasco
entrou na guest house conhecedor do caminho e encostou-se à ombreira da porta
apreciando as duas mulheres sorridentes que conversavam assuntos corriqueiros.
Vanda tinha os caracóis molhados e despenteados que lhe caiam pelas costas
exibindo um rebeldia desafiadora.
-
Olá meninas! Têm lugar para mais um? – Vasco sentou-se sem obter uma resposta
positiva. A conversa descontraída arrancava sussurros maldosos seguidos de
gargalhadas e Vanda só parou de sorrir quando os seus olhos encontraram os de
Daniel que entrara todo molhado e que estacara diante deles com os olhos
inchados de remorso. Vanda soube que não tinha sido justa na sua interpretação,
mas por vezes o medo surgia-lhe com uma força que ela não conseguia explicar e o
seu corpo tremia de um pânico avassalador e inexplicável.
-
Olá Daniel! Estás encharcado… Parece que isso virou moda… Mas olhem que não é
lá muito confortável. – Catarina soltou uma gargalhada confortável e pegou no
braço de Daniel conduzindo-o para fora da cozinha. – Vou dar-te umas toalhas
bem cheirosas, tomas um banho quente e depois juntas-te a nós.
Vasco
seguiu-os com uns olhos desconfiados, e quando teve a certeza de que estava
sozinho com Vanda, esticou as mãos sobre a mesa e entrelaçou os seus dedos nos
dedos dela. Desde que chegou à residencial que tinha vontade de lhe tocar.
-
Estás bem? – Vasco sussurrou aquela preocupação.
-
Agora estou! – O sorriso fácil que Vanda lhe dirigiu encheu-o de uma vontade
qualquer que não conseguia precisar.
-
Vou levar-te a casa!
-
Vamos…
O
caminho fez-se no sussurro da chuva que acariciava o carro e dava ao momento
uma surrealidade sentida apenas pela dormência da paixão. Não houve uma palavra
trocada, uma carícia, apenas uma química que eriça os pelos e deixa todos os
sentidos em alerta. Vasco estacionou a carrinha e correu com
os seus braços dormente que protegiam da chuva o corpo encolhido de Vanda.
Entraram em casa e sacudiram os cabelos. Vasco deixou que a ponta dos seus
dedos descessem pelo ombro de Vanda percorrendo sem pressa o braço e fazendo-a
soltar a mala sem se preocupar com o conteudo que se espalhara. Vasco aproximou
o seu corpo do dela e sorriu com a percepção de que se encaixavam
perfeitamente. Entrelaçou os seus dedos naqueles caracois rebeldes e
acariciou-lhe a nuca. Sentiu o seu ego masculino encher-se quando Vanda revirou
os olhos num arrepio de prazer. O seus lábios roçaram-se sem pressa. E
lentamente, como se estivessem a soborear uma iguaria rara, foram aprofundando
um beijo longo que lhes tocou a excitação do corpo e o consolo da alma. Os
corpos uniram-se como se se tratasse de um único ser e as dores libertaram-se
com a roupa. A meiguice dos gestos culminaram com a honestidade dos sentimentos
enquanto Vasco percorria aquele corpo tão desejado com uma experiência nervosa
fundindo-se na intimidade dos corpos e do olhar. As atenções não se desviaram
uma única vez daquele acto consentido deixando que a pele de ambos se
deslumbrasse com o prazer do momento. Quando Vasco se deitou finalmente
extasiado ao lado de Vanda e a envolveu num abraço profundo e num amo-te
sussurado, Vanda fechou os olhos e pensou. Como poderia o mesmo acto ser
sentido de forma tão diferente? Amor e violação…
PARABÉNS Nadia e MUITO OBRIGADO pela tua escrita!
ResponderEliminarA Maria Gaspar conseguiu-me "Transportar para outras vivênvias" e provocar emoções e comoções que me farão persegui-la até parar de escrever.
Li-o fisicamente, como só gosto de os ler, portanto, faça o favor de cuidar muito bem da sua saúde para acabar o que se lhe segue e eu retribuir ao M.A. (...)
Eu é que agradeço as palavras... a relação entre escritor e leitor é muito especial e funciona numa dualidade perfeita. Eu transportei-te para outras vivências provocando-te emoções e comoções... e tu presenteaste-me com palavras de incentivo e motivação. Muito obrigada :)
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