sábado, 8 de setembro de 2012

Capitulo XI - Nas Asas do Corvo


Capitulo XI

O caminho foi feito em silêncio. A vila do Corvo distanciou-se da traseira da carrinha e Vanda sentia em cada metro de distância daquele aglomerado de casas o peso da solidão e um silêncio profundamente ensurdecedor chiava-lhe no ouvido e fazia-a torcer os dedos da mão nervosamente. Não houve necessidade de dar indicações do caminho. Afinal havia apenas um caminho que saía da Vila.
Daniel saiu da carrinha e o seu coração parou por uma fracção de segundo. Sem conseguir explicar se aquela reacção se devia à imagem de Vanda a sair da carrinha com os braços cruzados e o vento a favorecer-lhe o cabelo selvagem ou à imagem daquela cratera pacífica que recebia um festim de verde.
- É de cortar a respiração!
- A primeira vez que vim aqui também senti uma emoção profunda. Não existem palavras capazes de descrever o Caldeirão com justiça… apenas podemos admirar e sentir com todos os nossos sentidos. – Vanda sentou-se na erva húmida sem medo das nódoas que deixaria nas calças. Nem pensou nisso. E quando finalmente lhe ocorreu que provavelmente mancharia as calças de forma irremediável limitou-se a rir alto.
- Estás a rir-te de quê? – Daniel admirava-lhe aquele riso estridente. Nunca tinha presenciado aquela Vanda… Percebia agora que nem sabia como era a sua voz antes de lhe falar pela primeira vez ao telefone. Começava agora a descobrir uma nova mulher, não muito diferente das outras.
- Esta ilha está a curar-me doutor!
- Já que eu não o consegui… - Vanda percebeu a frustração na voz de Daniel e pousou uma mão compreensiva no seu ombro. – Fala comigo Vanda… Diz-me o que te vai na alma… Diz-me o que te passou pela cabeça durante todos estes anos… Acompanhei-te naquele dia fatídico e depois no hospital durante anos. E depois disso nas consultas periódicas e nunca me dirigiste palavra. Porquê?
Vanda calou-se e Daniel sentiu que a estava a perder novamente.
- Eu tenho-te acompanhado sempre… Sempre Vanda… Mesmo quando tu não me vias nem sentias. Enquanto tiraste o curso de história… Ias às consultas periódicas, mas nos intervalos eu vigiava-te ao longe. – Vanda retirou a mão do ombro. – Fizeste um percurso académico brilhante… Brilhante. Eras metódica e organizada, mas nunca te vi sorrir como agora. Mesmo quando estiveste em Vila Real a dar aulas eu acompanhei-te de longe… e depois vieste para aqui. Podias ficar colocada onde quisesses Vanda, mas vieste para aqui por opção tua. Sim, eu sei que esta foi a tua primeira opção… Porquê? Porque é que te esforçaste tanto para seres uma aluna de excelência, se a tua primeira opção seria este ilhéu?
- Devia sentir-me assustada com seu discurso doutor Daniel…
- Por favor Vanda! Não era minha intenção…
- Como é que queres que fique… andaste a seguir-me de uma forma estranha. – Vanda arregalou os olhos num medo que lhe gelou o sangue… - Daniel…
- O que foi? – Ele era psiquiatra e como tal soube que alguma coisa em Vanda se tinha colocado em alerta.
- É contigo que tenho estado ao telefone? Claro que é… Desde que tu chegaste que o telefone nunca mais tocou. – Vanda levantou-se e sentiu que estavam a forçar novamente uma entrada na sua vida. O pânico atormentou-lhe as entranhas e as suas pernas ganharam a força do medo e saltaram como uma mola, seguindo-se uma corrida alucinante.
- Vanda… espera Vanda! Não é o que estás a pensar… eu nunca te faria mal… Por favor Vanda! – Daniel levantou-se e correu, mas ela parecia feita de vento e afastava-se a cada passo. Daniel sentia os pulmões arderem do esforço e desistiu de a perseguir. Voltou para a carrinha e fez o caminho de volta à procura de Vanda. O céu azul cobriu-se de um manto cinzento que não se fizera anunciar e a chuva caía num frenesim que aguçava o nervosismo de Daniel. Ele fez aquele caminho seis vezes, e em cada uma das vezes o desespero crescia-lhe dentro do peito. Desistiu de procurá-la sozinho. Encostou a carrinha e ligou a Vasco.
- Estou! Vasco!
- Sim…
- Ela desapareceu…
- Como assim ela desapareceu? Isto é uma ilha, e muito pequena por sinal… - Vasco sentia-se ferver de fúria contra Daniel. – O que é que lhe fizeste?
- Não fiz nada… Juro! Por favor ajuda-me a procurá-la… Nós estávamos no Caldeirão e ela saiu a correr… Já fiz este caminho inúmeras vezes, mas não a encontro.
- Eu vou até a casa dela…
Vasco desligou o telemóvel sem se despedir. A sua atenção, os seus sentidos, o seu coração palpitavam na direcção de uma boa noticia que lhe aliviasse aquele peso que sentia nos olhos. Onde estaria ela e em que condições? Não se podia permitir a perdê-la… Não agora que sentia a certeza de um futuro correr-lhe nas veias e em que o desejo do quotidiano repetitivo e previsível parecia satisfazer-lhe todos os seus sonhos a longo prazo. Ela era forte e tinha aquele ar altivo que lhe cobria uma fragilidade digna de um fino cristal que se desfaz em mil pedaços no mais pequeno embate. A vida constrói-se num sucesso de acontecimentos, porque uma acção só se corporiza depois da fracção de segundo em que é decidida. E é aquele acontecimento que vai sedimentar mais um pouco a vida. Aquele acontecimento e não outro, tal como numa corrida de espermatozóides… Só um é vencedor… E os acontecimentos constroem uma vida forte e solitária se forem resultante apenas de boas decisões, ou uma vida frágil e pouco digna se resultarem exclusivamente de más decisões… Do contrabalanço de ambas é que resulta a vida harmoniosa e sábia, porque é necessário haver um boa dose de decisões erradas para as decisões certas serem apreciadas e adoptadas. Vasco sente que é altura de Vanda aprender com as decisões erradas e valorizar as certas de forma a solidificar a sua vida em torno da vida dele e juntos construírem algo forte, sensível e longo.
- Vanda! Estás aí? Responde… Bolas! – Vasco procurava Vanda nas entranhas da pequena casa. Estava tudo irrepreensivelmente limpo e arrumado. Assim que ele abriu a porta soube que ela não estava ali. A sua pele não a sentiu…Mas a sua mente não queria correr riscos e ele procurou-a desesperadamente. Não estava em casa. O telemóvel tocou e ele atendeu numa antecipação frenética.
- Estou!
- Olá Vasco! Sou eu a Catarina… Estou a ligar-te porque achei que devias saber que a Vanda está aqui
Vasco fechou os olhos e deixou que o alívio se apoderasse do seu corpo.
- Ela está bem?
- Não sei bem o que te diga Vasco! Ela apareceu-me aqui toda suja de lama, molhada até aos ossos, a bater o queixo de frio. Ainda não disse uma palavra!
- Eu vou já para aí! Mantém-na quente.
- Ela está a tomar um duche quente neste momento e eu vou preparar-lhe um café quente e massa sovada…
- Obrigada Catarina! De coração…
Vasco permitiu-se a uns minutos de sossego no sofá já conhecido do seu corpo mole que começava a relaxar. Sentira medo de perdê-la. Não… Medo não. Pânico. Tinha que digerir aquele sentimento com calma e assegurar-se de que ela não ia a lado nenhum. Precisava de se aclamar. Não podia chegar ao pé dela naquele estado, com uma respiração ofegante de nervos.

- A roupa ficou-te lindamente! – Catarina olhou para Vanda com um olhar que lhe perscrutava o rosto com uma preocupação disfarçada em simpatia. Vanda conhecia aquele olhar. Tinha vivido anos de manicómio com aquele olhar nas enfermeiras, nos médicos e nas auxiliares e um arrepio do passado percorreu-lhe a espinha. Sentiu que Daniel a queria forçar a algo que ela não queria… fosse o que fosse… Era ela que mandava na sua vida e nunca mais permitiria abusos da sua intimidade.
- Obrigada Catarina!
- Não tens de agradecer! Senta-te aqui comigo e faz-me companhia no lanche. – Catarina sentou-se e indicou-lhe o lugar à sua frente. O café emanava um aroma quase irresistível.
- Não quero incomodar mais.
- Não incomodas nada! É sempre bom ter uma companhia feminina. – Catarina piscou-lhe um olho confidente que arrancou um sorriso livre a Vanda. E ela sentou-se e rodou a chávena de café quente com as palmas da mão absorvendo o calor. – Liguei ao Vasco para te vir buscar. Eu levava-te a casa, mas não tenho carro. – A gargalhada em uníssono das raparigas partilharam a piada muda naquelas palavras. Vanda agradeceu-lhe com os olhos o facto de ela estar a tornar aquela situação fácil.
Vasco entrou na guest house conhecedor do caminho e encostou-se à ombreira da porta apreciando as duas mulheres sorridentes que conversavam assuntos corriqueiros. Vanda tinha os caracóis molhados e despenteados que lhe caiam pelas costas exibindo um rebeldia desafiadora.
- Olá meninas! Têm lugar para mais um? – Vasco sentou-se sem obter uma resposta positiva. A conversa descontraída arrancava sussurros maldosos seguidos de gargalhadas e Vanda só parou de sorrir quando os seus olhos encontraram os de Daniel que entrara todo molhado e que estacara diante deles com os olhos inchados de remorso. Vanda soube que não tinha sido justa na sua interpretação, mas por vezes o medo surgia-lhe com uma força que ela não conseguia explicar e o seu corpo tremia de um pânico avassalador e inexplicável.
- Olá Daniel! Estás encharcado… Parece que isso virou moda… Mas olhem que não é lá muito confortável. – Catarina soltou uma gargalhada confortável e pegou no braço de Daniel conduzindo-o para fora da cozinha. – Vou dar-te umas toalhas bem cheirosas, tomas um banho quente e depois juntas-te a nós.
Vasco seguiu-os com uns olhos desconfiados, e quando teve a certeza de que estava sozinho com Vanda, esticou as mãos sobre a mesa e entrelaçou os seus dedos nos dedos dela. Desde que chegou à residencial que tinha vontade de lhe tocar.
- Estás bem? – Vasco sussurrou aquela preocupação.
- Agora estou! – O sorriso fácil que Vanda lhe dirigiu encheu-o de uma vontade qualquer que não conseguia precisar.
- Vou levar-te a casa!
- Vamos…
O caminho fez-se no sussurro da chuva que acariciava o carro e dava ao momento uma surrealidade sentida apenas pela dormência da paixão. Não houve uma palavra trocada, uma carícia, apenas uma química que eriça os pelos e deixa todos os sentidos em alerta. Vasco estacionou a carrinha e correu com os seus braços dormente que protegiam da chuva o corpo encolhido de Vanda. Entraram em casa e sacudiram os cabelos. Vasco deixou que a ponta dos seus dedos descessem pelo ombro de Vanda percorrendo sem pressa o braço e fazendo-a soltar a mala sem se preocupar com o conteudo que se espalhara. Vasco aproximou o seu corpo do dela e sorriu com a percepção de que se encaixavam perfeitamente. Entrelaçou os seus dedos naqueles caracois rebeldes e acariciou-lhe a nuca. Sentiu o seu ego masculino encher-se quando Vanda revirou os olhos num arrepio de prazer. O seus lábios roçaram-se sem pressa. E lentamente, como se estivessem a soborear uma iguaria rara, foram aprofundando um beijo longo que lhes tocou a excitação do corpo e o consolo da alma. Os corpos uniram-se como se se tratasse de um único ser e as dores libertaram-se com a roupa. A meiguice dos gestos culminaram com a honestidade dos sentimentos enquanto Vasco percorria aquele corpo tão desejado com uma experiência nervosa fundindo-se na intimidade dos corpos e do olhar. As atenções não se desviaram uma única vez daquele acto consentido deixando que a pele de ambos se deslumbrasse com o prazer do momento. Quando Vasco se deitou finalmente extasiado ao lado de Vanda e a envolveu num abraço profundo e num amo-te sussurado, Vanda fechou os olhos e pensou. Como poderia o mesmo acto ser sentido de forma tão diferente? Amor e violação…

2 comentários:

  1. PARABÉNS Nadia e MUITO OBRIGADO pela tua escrita!
    A Maria Gaspar conseguiu-me "Transportar para outras vivênvias" e provocar emoções e comoções que me farão persegui-la até parar de escrever.
    Li-o fisicamente, como só gosto de os ler, portanto, faça o favor de cuidar muito bem da sua saúde para acabar o que se lhe segue e eu retribuir ao M.A. (...)

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    1. Eu é que agradeço as palavras... a relação entre escritor e leitor é muito especial e funciona numa dualidade perfeita. Eu transportei-te para outras vivências provocando-te emoções e comoções... e tu presenteaste-me com palavras de incentivo e motivação. Muito obrigada :)

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