Capitulo XII
Não
existe um sentido definido e claro para a vida. Existem momentos que nos
indicam que estamos no caminho certo. Momentos em que a felicidade transborda
da alma e sente-se fisicamente em cada poro da nossa pele. Aquela manhã era
mais do que uma felicidade… Era uma certeza firmada nos braços certos e no
sorriso iluminado que dava os bons dias.
-
Dormiste bem? – Vasco sentia uma dormência boa no braço onde o corpo nu de
Vanda repousava.
-
Melhor do que se tivesse tomado os comprimidos! – Ambos riram e o rubor do
embaraço cobriu o rosto de Vanda. Vasco afagou-lhe aquele rubor com o lábios e
soube que ali estava o seu fututo. Vasco levantou-se primeiro, adivinhado o
atraso de Vanda. Não queria que o seu constangimento estragasse ou fizesse
regredir aquele passo tão importante. Vanda tinha-se aberto a ele como nunca
tinha feito a ninguém.
Aquela
nova descoberta na vida de Vanda durou o fim de semana inteiro, tranformando
aquele pequeno apartamento no seu mundo desejado. Não precisava de mais nada
naquele exacto momento. Só os ignorantes podem restingir a felicidade a coisas
grandiosas e pretensiosas. Só os infelizes podem saber antecipadamente onde
encontrar a verdadeira felicidade levando-os a buscas intermináveis e
condenando-os a uma miséria de sentimentos interminável. A felicidade surge de
pequenas coisas em momentos não esperados e de uma forma tão subtil que quando
nos apanha de alma aberta é tão arrebatadora, que depois de experimentada nunca
mais é confundida com outro sentimento.
-
O fim de semana está a acabar… - Vasco estava sentado brincando com os caracois
negros de Vanda espalhados no seu colo. – Dava um ano da minha vida para
prolongá-lo por mais um mísero dia! – Ambos sorriram.
-
Eu estou feliz Vasco! Nunca imaginei dizê-lo em voz alta… Muito menos senti-lo.
– A magia do momento fazia adivinhar um inclinar lento e desejado dos rostos,
mas a realidade da vida trouxe-os de volta num bater de porta insuportável.
-
Já vai! – Vasco levantou-se sem vontade.
-
A Vanda está em casa? – O olhar de Daniel cruzou-se com o olhar brilhante e
febril de Vanda que deixava transparecer aquele fim de semana, atingindo-o como
um soco seco no estômago. – Olá Vanda! Acho que deviamos conversar…
-
Tens razão!
Vasco
saiu deixando-os sozinhos e desejando que todas as feridas de Vanda se
curassem. Daniel sentou-se numa extremidade do sofá e entrelaçou os dedos das
mãos. Sentia-se nervoso.
-
Em primeiro lugar, e para que esta conversa possa correr da forma correcta,
quero que saibas que eu não te persegui de uma forma perversa.
-
Eu no fundo sei disso… Mas por vezes… Nem consigo explicar bem, mas extistem
certas atitudes de pessoas ou palavras que me despertam um medo sufocante… E
sinto como se os meus nervos fervilhassem e os meus múscolos exigem uma atitude
da minha parte… Não consigo explicar muito bem…
-
É a primeira vez que te abres comigo!
-
Foste meu psiquiatra durante demasiados anos… Eras demasiado oficial para que
eu pudesse falar contigo. Houve alturas em que desejei fazê-lo.
-
Devias tê-lo feito! Eu soube a tua história toda… Podia ter-te ajudado a lidar
com os teus medos.
-
Tu não soubeste a história todo Daniel… Esse foi o grande problema!
Daniel
focou os olhos marejados de Vanda e percebeu que ela falava verdade.
Aproximou-se sem nunca desviar o olhar, examinando qualquer sinal de alerta que
lhe indicasse novo ataque de pânico.
-
Então conta-me agora! Eu preocupei-me contigo para além do que a psiquiatria
exigia… Dediquei-me a ti durante todos estes anos. Acompanhei-te sempre ao
longe, enviando-te cartas a marcar nova consulta sempre que sentia que precisavas
e no final de todas essas consultas sentia-me vazio e frustrado… Eu sonhava com
o dia em que confiarias em mim e abririas a tua alma para que eu a pudesse
reparar… Mas esse dia nunca chegou. Houve uma altura em que pensei que
estivesse apaixonado por ti! – Daniel baixou os olhos perante aquele olhar de
Vanda demasiado intenso. – Até à pouco tempo…
-
Desculpa Daniel! Nunca imaginei tal coisa… Nem sei bem como devo sentir-me
relativamente a toda esta situação… Até há pouco tempo eras o meu psiquiatra e
eu só pensava na tua pessoa associada ao hospital… é verdade que sentia a tua
preocupação sincera, mas não podia arriscar… Não podia…
-
Arriscar o quê?
-
Eu não o matei em legítima defesa…
Todas
as certezas de Daniel relativas àquele caso desmoronaram. Ele estava frente a
frente com novos factos e devia saber como lidar com o imprevisto. Afinal Vanda
era sua paciente e ele devia tratá-la como tal e não olhá-la com olhos
acusadores.
-
Conta-me a tua versão! – Daniel manteve a proximidade, mas Vanda viu o seu
olhar gelar. Inspirou fundo e soube que chegara a hora de se abrir. Mesmo que
isso significasse assumir que era uma assassina.
-
O homem que eu matei era meu tio…
-
Eu sei! – Daniel interrompeu-a arrependendo-se logo de seguida, mas sentiu uma
necessidade quase fisica de afirmar em voz alta que ele dominava aquele caso.
-
E… Naquela noite... – Vanda sentiu que a garganta se apertava. – Não foi a
primeira vez… Nem a segunda, nem tão pouco a terceira. Aquele porco investia
sobre mim como um animal sempre que podia e transpirava como um cavalo e rugia
uma satisfação pérfida… E aquele hálito… ai aquele hálito podre de um vinho
tinto amargo – Vanda explodia as palavras sentindo uma raiva que julgava
controlada apoderar-se dela e os olhos raiaram-lhe de sangue e as lágrimas soltaram-se
numa convulsão de choro. Daniel abraçou-a. Ela não precisava de calmantes, nem
de químicos… ela precisava de terapia, e ele iria ajudá-la… como psiquiatra e
amigo.
-
Pronto! Por hoje chega. Acabamos esta conversa noutra altura!
Vanda
começou a rir de uma forma histérica que fez Daniel duvidar da sua saúde
mental.
-
Eu vou ensinar-te uma coisa que percebi no hospício… Isso que tu acabaste de
fazer está errado!
-
O quê?
-
Quando uma pessoa finalmente se abre e solta de uma vez todos os sentimentos e
sensações que tem acumulados dentro de si, os psiquiatras acham que a sessão
está terminada… Está errado… Curar uma ferida da alma é mais do que o que vem
nos livros ou do que os procedimentos que devem ser seguidos perante
determinada reação do doente. Eu via no hospital os doentes tentarem dizer-vos
isso aos berros, mas acabavam sempre em camisas de forças, drogados com pesados
sedativos. Devias ter-me olhado nos olhos e ter percebido que fazer isto foi
doloroso e não me devias sujeitar a isto novamente, porque se o fizeres, aí sim
eu vou dar em doida… já imaginaste o que é para alguém que tem um desgosto
destes dentro de si estar sempre a expô-lo aos poucos e quando finalmente
começa a deixá-lo sair, o médico interrompe o processo e exige que se comece
novamente no dia seguinte… Isso é cruel e muitas vezes conduz a actos de loucura…
Ai como eu percebia alguns doentes que vos ameaçavam… Primeiro abrem a ferida e
depois, ou porque houve uma exaltação, ou porque a hora da consulta passou, deixavam
a ferida aberta a sangrar… Para voltar a abri-la somente quando começa a sarar…
Eis
uma lição que Daniel não aprendeu na faculdade. Olhar nos olhos… era o que ele
estava a fazer neste exacto momento. Estava a olhar aqueles olhos negros e
profundos que choravam lágrimas e muito mais. Aqueles olhos que não era justo
voltar a vê-los no dia seguinte… Aqueles olhos sábios e sofredores que lhe
imploravam uma libertação incompreendida.
-
Tens razão Vanda! Os abusos começaram como e quando?
-
Vou contar-te a minha história! – E Vanda contou. Contou com a emoção da culpa
que arrastava como grilhões pesados. Primeiro a sua infância feliz em Paris. A
simplicidade de enchia os seus dias num prédio em que a mãe era porteira e
empregada de limpeza, porque na infância percebemos melhor o que é simples, mas
com a idade vem o gosto pelo elaborado e a capacidade para invejar a vida dos
outros, e de repente a simplicidade deixa de ter lugar, e o facto de ser filha
da porteira deixa de ser confortável e passa a ser vergonhoso. Vanda contou a
discussão que lhe percorria a mente com demasiada frequência torturando-a e que
antecipou e provocou o acidente dos pais que morreram lutando pelo melhor para
uma filha ingrata que os rejeitou. Vanda chorou… Gritou… desejou poder voltar
àquele dia fatídico. Os promenores da vida em comum com a avó foram despejados
com uma saudade sentida como se aquela passagem fosse chorada num fado profundo
acompanhado por guitarras sofridas. Ela gostava da avó… Sempre a respeitou,
apesar de a ter manipulado para conseguir uma liberdade libertina… E quando
Vanda contou como o tio tinha entrado na sua vida por convite seu, Daniel
também chorava. A primeira violação foi contada pela segunda vez àquele
psiquiatra que a ouvia com ouvidos de amigo e não de médico. As repetições
foram envolvidas de raiva e desejo de justiça… E o lema de vida de Vanda foi
dito pela enésima vez durante aquele discurso alertando o psiquiatra que havia
naquele homem choroso.
-
Os abusos nascem dos excessos de confiança… A culpa foi minha, Daniel… só
minha. – Daniel não se sentia capaz de a confortar… Só a podia ouvir naquele
momento. – Naquela noite, eu estava sozinha… e ele sabia… ele sabia sempre… A
minha avó estava na casa mortuária a velar o corpo de uma vizinha que tinha
falecido, e como era tradição passaria lá a noite toda a rezar. Eu estava a
comer cereais sentada na mesa da cozinha a ver um filme qualquer na televisão.
E eu senti-o atrás de mim, antes mesmo de o ver… antes de o ouvir… Era aquela
presença que me estrangulava, que me punha a alma e o corpo a tremer.
Levantei-me de um salto e tentei fugir, mas ele agarrou-me o braço com uma
força desnecessária. Eu gritei… E senti um desespero que não consigo explicar…
Eu sabia o que ele ia fazer… eu sabia, mas não queria… Lutei contra ele com
todas as minhas forças, com o punho solto, com os pés… Sacudi-me de todas as
formas e gritei… Mas ninguém acudiu… Ninguém ouviu… Nunca ninguém ouvia… Ele
acalmou-me com um soco de punho fechado que me acertou numa dor aguda e
atirou-me para o chão exctamente como ele queria. Ele baixou-se sobre mim e eu
senti-me sufocar naquele cheiro nauseabudo… E arrancou as calças do pijama e as
cuecas ao mesmo tempo… E eu lutava… eu juro que lutei… Dei-lhe pontapés
mordi-lhe a orelha até sangrar e ele rugia e ria alto… então arrancou-me a
camisola e mordeu-me o seio… Eu senti os dentes dele entrarem-me na carne e
uivei de dor… Agarrei-lhe o cabelo… Lembro-me que fiquei com um pedaço de
cabelo colado na palma da minha mão… Mas ele não se afastou e penetrou-me à
força como fazia sempre… Arranhei-lhe o peito e ele socou-me o estomago, as
costelas e a cara… Parei de lutar… E ele começou a arfar… ele estremeceu…
deixou-se cair estafado em cima de mim… e depois levantou-se… Eu sentia uma
angústia e uma raiva rancorosa por não me poder defender… Olhei aquelas costas
flácidas e peludas e jurei para mim mesma que ele nunca mais me tocava…
Levantei-me com esforço, passei a mão por cima do balcão e lá estava a faca…
Uma faca grande e bem afiada que a minha avó utilizava para esquartejar o porco…
a faca adequada para ele… Ele não ia repetir aquele acto naquela noite… Eu
sabia-o porque ele nunca o fazia… e eu estava com aquela faca na mão e ele
estava de costas. Chamei-o e ele virou-se… Eu queria ver-lhe os olhos quando eu
lhe espetasse a faca… E eu vi os seus olhos abrirem-se de espanto e senti que
os meus lábios sorriam… Enfiei-lhe a faca com todas as minhas forças e
admirei-me como a faca escorregou facilmente pelas suas carnes… Os meus dentes
estavam cerrados e sentia um calor percorrer-me o corpo… Tirei a faca e voltei
a espetar… E senti aquele corpo imundo desfalecer e cair de joelhos e a faca
que eu segurava deslizou pelo peso daquele corpo inerte… Os olhos dele estavam
sofridos e eu senti-me vingada… - Os olhos de Vanda já não choravam. Pararam de
chorar quando ela começou a relatar aquela noite fatídica. Pelo contrário, eles
brilhavam de uma forma quase doentia, como se ela não estivesse ali naquela
sala. Daniel soube que ela estava presente quando ela lhe ferrou um olhar negro
e intenso. – Depois eu peguei no telefone e chamei a polícia. Disse-lhes apenas
que tinha assassinado um homem e dei a morada. Depois disso nunca mais falei.
Ouvia a policia e especular… E quando eles formaram a ideia de que eu o tinha
matado porque ele ia fazer uma nova tentativa de violação, eu deixei que essa
ideia se firmasse… E assim eu matei-o porque quis. Se não o tivesse feito ele
tinha saído porta fora e ainda estava vivo… Daniel?
-
Sim!
-
De toda a história que te contei, este acto é o único que não me causa
arrependimento.
Sem comentários:
Enviar um comentário