domingo, 21 de agosto de 2011

Capitulo XIV


Capitulo XIV

    Os olhos abriram-se devagar contrariando a preguiça típica que se segue a um momento se satisfação. O dia já estava claro e Diana deixou que os seus lábios se rendessem ao sorriso de felicidade que o seu peito exigia. Levantou-se devagar e não pode deixar de se emocionar ao olhar para o lençol remexido onde Duarte passara a noite com ela.
- Duarte! – Diana ansiava vê-lo neste dia seguinte. Queria ver os seus olhos brilharem prometedores de um futuro comum. Mas a falta de resposta ao seu chamamento começou a invadir-lhe a mente numa má premonição. – Duarte! – Todas as divisões foram percorridas repetidamente. A procura foi-se tornando mais agressiva e em movimentos rápidos Diana procurava um bilhete, um sinal de que Duarte não se tinha arrependido. O resultado nulo fê-la sentir um enjoo-o que a conduziu para o exterior da casa. O carro não se encontrava onde o tinham deixado. Na cabeça de Diana tornou-se claro que Duarte tinha-se arrependido e estava a dar espaço a Diana para se retirar. Mas que raio é que lhe havia passado pela mente. Já não são uns adolescentes que viajam ao sabor do momento. São adultos que assumiram responsabilidades e não podem agir sem medir as consequências. Duarte tinha um casamento marcado. Uma noiva que organizava uma vida a dois, um casal que sonhava um futuro no qual ela não estava incluída. Diana recolheu as suas coisas e saiu sem demoras. Não se arrependia daquela noite, dos gestos, das carícias. Ela sentiu as lágrimas rolarem-lhe pela face, mas a satisfação de uma memória tão doce já ninguém lhe podia tirar.
    Quando chegou a casa, Diana abriu a porta com cuidado para não fazer barulho e espantou-se com a visão de Bernardo sentado no sofá a conversar animadamente com Raquel. Diana correu na sua direcção e abraçou-o.

- O que é que estás a fazer no meu sofá? – A humilhação do abandono de Duarte foi superada pela alegria de ver Bernardo com bom aspecto, apesar de estar visivelmente mais magro.
- Vim ver se arranjava uma guia para me mostrar esta linda ilha! – Bernardo reparou no olhar triste que acompanhava o sorriso de Diana. – Que tal me levares às piscinas que tanto falas… Poça da Rainha. – Bernardo queria ter oportunidade de falar com Diana a sós. Tinha tanto para lhe contar, que se esperançava que isso fosse suficiente para animar Diana.
    Sentados naqueles degraus tão conhecidos, Diana entrelaçou o seu braço no de Bernardo e encostou a sua cabeça naquele ombro amigo.
- Isto é lindo, Diana! Nunca imaginei que pudesse haver um lugar no mundo que nos preenchesse ao mesmo tempo a vista e o coração. – Bernardo inspirou e preparou-se para pôr Diana a par das novidades. – Vendi tudo…
    Diana endireitou-se face àquela surpresa e refazendo-se do choque mostrou-se um pouco atrapalhada.
- Mas… como assim vendeste tudo? Vendeste o quê? Os teus carros? A tua casa? As tuas acções? – Diana tinha percebido bem a intenção daquelas palavras, mas sentia-se reticente em aceitá-las.
- Vendi tudo Diana! O grupo económico todo! Neste momento tenho uma pequena fortuna com muitos zeros à direita depositada na minha conta bancária.
- Bem Bernardo! Nem sei o que dizer! – Diana olhou-o cautelosamente e não pode evitar um sorriso ao ver um homem mais descontraído. Parecia que lhe tinham tirado um peso das costas, e não pode deixar de se congratular com esta atitude. – Bem acho que me estás a tentar dizer que estou despedida…
    Ambos riram alto como há muito tempo não o faziam juntos. Estavam leves e abertos ao mundo. De repente tudo eram oportunidades, novos caminhos e a leveza da liberdade de escolherem uma nova direcção sem pressões ou fortes desejos encheu-lhes o espírito numa paz partilhada pelo grasnar das gaivotas.
- Ainda gostava de abrir aqui um hotel! Mas só se o fizermos juntos Diana!
- Tenho pensado nisso ultimamente. Tenho imensas ideias… Gostava muito que se tratasse de um hotel de luxo mas sem aqueles requintes que tornam o acolhimento frio. Eu tenho o terreno ideal para o hotel. Eu dou o terreno, mas na condição de ser sócia… O que me dizes Bernardo!
- Vamos fazer loucuras!
- Agora, sócio, só me falta mostrar-te o projecto excelente que já tenho em papel para o nosso futuro negócio… - Diana sentia-se agradecida por ter tido a oportunidade de conhecer Bernardo. Uma pessoa maravilhosa que se encaixava na sua vida de uma forma perfeita. Quem lhe dera que Duarte tivesse a mesma capacidade de encaixe…

    O projecto foi do agrado instantâneo de Bernardo. Um grande terreno que tinha a cidade inteira aos seus pés com uma paisagem que se alongava pela marina estendendo-se no azul do mar e terminando na ilha majestosa que se impunha no horizonte.

- Temos aqui a paisagem mais bonita que já tive o privilégio de ver. Em nenhum outro lugar se pode assistir a um nascer do sol como aqui. O céu começa a tingir-se de laranja atrás daquela ilha triangular. Depois, o sol vai-se mostrando envergonhadamente, até ser um grande e próximo círculo flamejante que parece suster-se na base do Pico… É um espectáculo da natureza que nunca imaginei… - Bernardo tinha-se apaixonado por aquela ilha instantaneamente. – O hotel vai ser um sucesso… a melhor publicidade que lhe podemos fazer é torná-lo num lugar secreto… como se fosse um privilégio conhecê-lo e frequentá-lo… Um lugar em que quem ouça falar dele não seja através de uma agência de viagens que conduz todos os seus clientes para o mesmo sítio. Aqui o cliente vai sentir-se afortunado por não estar num lugar onde entram excursões todos os dias. E este sentimento de se sentirem especiais paga-se melhor do que propriamente a qualidade. Quero que seja um hotel apenas para privilegiados que tenham a sorte de ouvir falar nele. Claro que nós sabemos quem devem ser esses privilegiados… Assim que o hotel estiver terminado vou fazer uns telefonemas a alguns antigos clientes, principalmente alemães, holandeses e ingleses que vão saber apreciar o que lhe vamos oferecer aqui.

    Os meses que se seguiram foram sinónimo de trabalhos e cansaços. As obras avançavam com determinação e bom gosto sempre sob a supervisão de Diana e Bernardo. Para além da construção havia milhentos assuntos a tratar. Os meses foram-se passando no meio desta agitação saudável que não deixava espaços para pensar em problemas ou tristezas. Bernardo sentia-se mais activo e a vontade de viver cada momento com intensidade palpitava-lhe nas veias. Desistiu de fazer os tratamentos. Tomava apenas alguma medicação para as dores. Não tinha desistido da vida… Apenas tinha aceitado a vida tal como ela se lhe apresentava e queria aproveitá-la ao máximo. Tinha um projecto seu que queria muito concretizar e esta força tinha-se oposto às previsões dos médicos que lhe haviam destinado no máximo um par de meses de vida se desistisse dos tratamentos. Já se tinham passado mais de seis meses e a vontade de viver competia de forma desigual com aquela doença que se havia instalado no seu corpo sem sequer pagar renda.
    Para Diana a agitação ocupava-lhe a mente que teimava em perder-se frequentemente na figura imaginária de Duarte. Sentia um vazio que só era ocupado com um quotidiano palpitante e com um tratamento pormenorizado de cada questão, de forma a sentir o pensamento ocupado. Mas o facto de a cabeça não pensar, não significa que o coração não sinta.
    Faltavam apenas trinta dias para a inauguração do hotel e era altura que começar a pensar no pessoal a contratar e de dar formação. Diana e Bernardo faziam questão de ter colaboradores bem formados que soubessem executar um trabalho eficiente, mas principalmente que primassem pela discrição e lealdade. Neste contexto, nenhum deles queria colocar um anúncio no jornal, uma vez que captaria demasiadas atenções. Manter um segredo num lugar pequeno é difícil, mas numa ilha pequena é impossível. Tinham conseguido que as especulações sobre as obras que se faziam dentro daqueles muros altos de basalto fossem tão diversificadas que ninguém tinha a certeza exacta da verdade. “ Vai ser um lar de luxo para velhos que vêm do Canadá”… “ É a casa de férias de um actor muito famoso de Hollywood, aquele que faz filmes românticos e é muito riquinho”… “ Vai ser uma piscina para nudistas, por isso é que está rodeado por aqueles muros que não deixa ver nada para dentro! Esta ilha está perdida! Desconjuro!”… As teorias de adivinhação eram tão variadas que faziam as delícias dos poucos que partilhavam o segredo animadamente na sala de Pedro.
- Ah gente do diabo que esconde coisas esquisitas dentro daqueles muros maléficos… - Raquel brincava com a situação enquanto distribuía várias taças de pipocas.
- Temos de começar o recrutamento! – Diana queria dicas de pessoas idóneas que pudessem contactar.
- Mas vais à tropa?!?! – Perguntou José Gaitinha inocentemente fazendo as delícias dos presentes.
- Oh homem de Deus! Eles querem pessoas para trabalhar! – Manuel que foi o único a revirar os olhos face àquela questão ignorante, explicava impacientemente.
- Ah! Desculpa a minha ignorância… Deus não me deu uma pança onde pudesse guardar um segundo cérebro! – Agora a gargalhada foi geral. Até Manuel não conseguiu evitar um sorriso.
- Oh Diana! Já pensaste em ir ao Colégio de Santo António? – Esta ideia de Guida despertou em Diana um súbito entendimento daquilo que devia e queria fazer. Ela já foi interna naquele colégio e sabe a discriminação que aquelas meninas sofrem.
    Às nove horas em ponto Diana estava no Colégio de Santo António. Foi recebida por uma assistente social que lhe explicou que já não eram as freiras que tomavam conta das meninas.
- Eu acho maravilhoso que esteja disponível para dar uma oportunidade às nossas meninas. – A Dr.ª Filipa, assistente social daquela casa de solidariedade, mostrava um sorriso superficial e olhava para o relógio com uma frequência que irritou Diana. – Poderá ajudar as meninas que estão prontas para começar a sua vida activa fora do colégio.
- Eu lembro-me da dificuldade e preocupação que se sentia nesta casa sempre que uma menina chegava aos dezoito anos e tinha de abandonar a casa.
- Ainda temos essa preocupação. Somos uma grande família e queremos sempre o melhor para as nossas meninas… - Filipa colocou uma expressão de mágoa tão deformada que se lia hipocrisia naquela face. – Mas as meninas passam tantas privações… Coitadinhas… Faço o que posso mas o dinheiro é tão pouco…
- Gostava muito de voltar a ver as instalações, se a Filipa não de importasse, claro!
- Dr.ª Filipa. – Corrigiu a assistente social com a prepotência dos pouco importantes.
    Diana sentiu a emoção alojar-se no meio das costelas quando entrou nos aposentos das meninas. As coisas estavam muito diferentes. Os antigos quartos escuros com várias camas estreitas cobertas por colchas gastas e díspares deram lugar a quartos bem decorados com colchas cor-de-rosa que condiziam com os cortinados. As meninas saiam para as aulas com telemóveis topo de gama, mochilas de marca e a antipatia da falta de cumprimento. Não pareciam meninas frágeis, mas adolescentes presunçosas. Diana já teve aquele ar demasiado duro e despreocupado que escondia a mágoa da rejeição. Um muro de protecção que impede qualquer contacto mais estreito, que as torna meninas superficiais com histórias de vida demasiado duras e personalidades demasiado fracas. Um sorriso tímido de uma menina magra, com uma trança grossa loura fez Diana experimentar novamente os seus dez anos, quando quem tinha aquele sorriso ficava com as tarefas mais pesadas. Diana simpatizou instantaneamente com aquela rapariga de estatura baixa e ombros estreitos. Se ela sorria assim é porque não tinha medo do trabalho, caso contrário mostraria um ar sisudo de forma a conseguir o medo das colegas e desincentivá-las a delegar-lhe as tarefas indesejadas.
- Olá! – Diana dirigiu o mesmo sorriso aberto àquela menina. – Eu sou a Diana!
- Olá! Eu sou a Marta! – Marta encarou Diana com um certo encantamento que Diana percebeu instantaneamente.
- Esta já foi a minha casa! – O brilho de esperança que trespassou o olhar de Marta foi exactamente como Diana o tinha previsto. Queria transmitir segurança àquela jovem. Sentiu uma vontade imensa de protegê-la de lhe garantir um futuro risonho. – Quantos anos tens Marta?
- Faço dezoito anos daqui a dois meses. – Os olhos rasaram-se de lágrimas. Uma idade que para a maior parte das jovens daquela casa é sinónimo do segundo abandono. É a idade limite para pertencer àquela família que conhecem. É a idade em que são lançadas para um mundo regido por quotidianos e regras afectivas que não conhecem.
- E o que é que tu queres fazer da tua vida? – Diana estava com o seu instinto protector accionado na potência máxima. – Queres estudar? Queres trabalhar?
- Eu não sou lá muito boa nos estudos. Estou a frequentar o décimo ano, mas vou chumbar. – Marta deixou finalmente as lágrimas libertarem-se. – Se já estiveste aqui sabes bem que se não continuar com os meus estudos, tenho de me ir embora… Confesso que estou com muito medo…
    Diana sentou-se na beira de um muro baixinho que dava acesso a uma varanda exterior e puxou Marta para que fizesse o mesmo.
- Não chores Marta! Um dia uma pessoa disse-me que nós temos menos oportunidades na vida do que as pessoas normais, por isso devemos estar mais atentas a essas oportunidades e quando elas aparecem devemos agarrá-las com ambas as mãos. – Diana rodeou os ombros da rapariga que teimavam em tremer e pousou-lhe um delicado beijo no cimo da cabeça. – Estás preparada para agarrar uma oportunidade Marta?
- Estou preparada para agarrar todas as oportunidades. – Marta sentiu um arrepio de confiança que lhe percorreu todo o corpo em pequenas doses de esperança. Diana tinha razão. Ia colocar o seu melhor sorriso e agarrar as oportunidades que lhe estavam destinadas e provar a todos que ela tem capacidades para ocupar o seu lugar no mundo.
- Sentes-te capaz para começar a trabalhar?
- O trabalho não me assusta! É a única coisa em que sou boa…
- Queres trabalhar num hotel de luxo?
- Até nas limpezas de casas de banho públicas… Assim que aparecer uma oportunidade vou agarrá-la. – Diana não pode deixar de sorrir. Estava um pouco de si mesma naquele comentário dotado de força de vontade.
- Não estás a perceber Marta… Eu tenho um hotel e gostava muito que trabalhasses para mim…
    Marta rodeou o pescoço de Diana e chorou de alegria, de gratidão, de alívio. Aquela mulher distinta estava a oferecer-lhe a tão escassa oportunidade e Marta não iria desiludi-la. Era a primeira pessoa que apostava nela e Marta sentia-se merecedora dessa aposta. Até este dia Marta era vista como uma menina frágil, e do tipo de personalidade fraca que todos se sentem incentivados a abusar. Nunca lhe foi detectada uma virtude que valesse a pena ou uma acção que indicasse distinção. Mas a lealdade que nunca foi detectada aos olhos avaliadores demasiado ocupados em actos grandioso foi absorvida por Diana, que tinha aprendido o dom de analisar as pessoas para além de um primeiro olhar. A capacidade de avaliar para além do superficialmente visível é uma virtude escassa nas sociedades modernas que se tornam detentoras que grandes sabedorias fúteis e pouco profundas.

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