segunda-feira, 22 de junho de 2015

A aberração das más-línguas



A aberração das más-línguas





    A maledicência é uma arte antiga e de tal forma generalizada que se tornou vulgar. Todos sabem desenvolvê-la com técnicas sofisticadas e com a imaginação e desenvoltura que se exige a um espetáculo de artes. Com tantos artistas de exceção esta arte tornou-se corriqueira. No entanto cada vez mais apreciada sendo considerada uma arte gratuita e de rua fazendo parte do nosso folclore.
    Vou aqui reproduzir a grandeza desta arte numa demonstração simples.
    Numa aldeia pacata e desinteressante, descansava parte da população na única esplanada disponível tentando tornar um domingo à tarde solarengo e entediante num acontecimento de entretenimento. “A moça estrangeira que está na pousada a passar férias é muito bonita”. “ Pois é! É pena ser demasiado magra”. “Também reparaste nisso? É só pele e osso”. “ Dá para contar os ossinhos todos que ela tem no peito”. “ Até parece ter os braços demasiado compridos e desengonçados de tanta magreza”. A voz do cidadão que lançou o primeiro elogio nem queria acreditar do que diziam todas as outras vozes. Será que estavam a falar da mesma rapariga? Então ele tentou atenuar os comentários desfavoráveis sem ser desagradável. “ Mas têm de admitir que aquele cabelo louro e comprido lhe dá um ar angelical. Até parece que ela emana uma luz divina”. “ É verdade o cabelo fica-lhe razoavelmente bem. É pena estar demasiado estragado nas pontas”. “ Estava todo espigado”. “ Parecia palha seca colada naquela cabeça demasiado oval.” A voz positiva fez mais uma tentativa elevando um pouco o tom de voz para que o ouvissem. “Ah! Mas têm de admitir que ela tinha um sorriso lindo. Uns dentes perfeitos que brilhavam de tão brancos.” As vozes do resto da população quase não o ouviam de tão entusiasmadas que estavam com a conversa. “ Era um brilho quase demoníaco”. “Eu cá fiquei assustado quando ela sorriu para mim.” “ E tinha uma borbulha mesmo por cima do lábio…”. “Notava-se que toda a sua pele era macilenta.” “Era realmente uma pele estranha”. “ Como se estivessem furúnculos a surgir por debaixo dela”. A voz positiva emitia pareceres cada vez mais altos, mas com cada vez menos ouvintes “ Ela tinha um corpo escultural… Parecia uma daquelas modelos internacionais…” E a voz positiva foi sendo cada vez mais abafada até que já ninguém a ouvia. “ Nunca tinha visto uma coisa assim”. “Quando a viu, a minha menina até se arrepiou de medo”. “ O meu rapaz desatou num berreiro”. “Não acho bem que uma aberração dessas venha para aqui incomodar pessoas de bem”. “Tens razão. Mas o que havemos de fazer?” “Devemos escorraçá-la”. As vozes em uníssono concordaram em acabar com tamanha ameaça. “Vamos dar uma lição nessa aberração”. “Nunca mais assustará as nossas crianças”.
    Os archotes ergueram-se acima das cabeças pouco iluminadas e a perseguição começou. A aberração estava à porta da pousada onde se hospedara. Iniciou-se então uma chuva de pedras lançada pela multidão ainda distanciada da aberração. Mas a vontade de acabar com aquele medo que a aberração lhes causava deu-lhes coragem para se aproximarem e enxovalharem, agredirem e denegrirem a aberração. A aberração encolhia-se e defendia-se conforme podia sentindo-se humilhada e injustiçada. Por fim sem forças para lutar contra aquilo que não compreendia deixou-se cair inerte no chão. A população não sentiu felicidade com aquela vitória. Não sentiu satisfação por uma causa ganha. Não fazia parte do processo. Apenas foram embora.

    Uma última voz curiosa perguntou. “Sabem como se chamava a aberração?” Apesar de já quase todos a terem esquecido houve alguém que se lembrou. “ Ouvi ela dar um nome estrangeiro na pousada… Era Claudia Shiffer”.

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