Capitulo VII
As calças de licra justas e práticas
realçavam-lhe as curvas acentuadas pela t-shirt azul que deixava á mostra de
forma discreta um pouco da barriga morena. Vasco não se poupou àquela visão e
puxou-a para si de uma forma possessiva que agradou Vanda. O nervosismo que aquele
beijo matinal descontraído e vulgar lhe provocou, ainda estava em estado de
interrogação no seu espírito.
- Preparada para uma caminhada? – Vasco tinha-a
ainda presa nos seus braços e sentia-a tremer debaixo do seu abraço.
- Só espero que tenhas capacidade para
me acompanhares! – O sorriso que ela lhe dedicou encheu-lhe a alma de uma
certeza absoluta que o fez levantá-la e girá-la no ar como fazia com os
sobrinhos.
A carrinha de Vasco era sofisticada para
aquela humilde ilha. Vasco conduziu pela única estrada que os levava para fora
da povoação em direcção ao Monto Gordo. O silêncio leve e oportuno não se
tornou constrangedor e quando Vasco procurou a mão de Vanda e entrelaçou os
seus dedos longos e duros nos dela, ela cedeu e deixou que a sua mente
disfrutasse desta nova confiança. Confiança. Era a palavra que lhe pesava na
mente nesse exacto momento. Devia confiar. Devia aprender a confiar. O que é do
ser humano sem confiança? As relações humanas são baseadas em confiança. Desde
os actos mais simples ao culminar da entrega, o ser humana confia. O facto de
pegar no telefone e pedir a entrega de uma pizza ao domicílio é por si só um
acto de confiança. Uma ida ao médico, o avançar no semáforo verde, o atravessar
a passadeira… Todo o nosso quotidiano é baseado numa confiança cega em
desconhecidos. É tão fácil depositar confiança nos actos alheios de seres que
não conhecemos, que nem imaginamos a sua existência… Mas é naqueles que nos são
próximos que reside a traição. É daqueles que mais dependemos que surge a
desconfiança. É naqueles que amamos que está instalada a possibilidade de nos
magoar. E assim é mais fácil confiar na relação que nos liga ao estafeta da
empresa de pizzas do que na relação dos que detém os nosso afectos e emoções.
- Aqui estamos nós s’tora!
- Muito obrigada Sr. Engenheiro! – Vanda
riu alto quando Vasco arregalou os olhos de espanto.
- Andaste a recolher informação acerca
da minha pessoa? Devo sentir-me lisonjeado ou assustado? – Vanda agora ria mais
alto. Um riso estridente e libertador, sem preocupações nem irritações. –
Apresento-te o berço da nossa ilha!
Vanda deixou que o seu olhar se
deslumbrasse com aquela paisagem perdida no meio de um ilhéu habitado. Uma
enorme cratera abria-se no meio daquele monte, numa festividade de um verde
húmido latejante que pedia descaradamente para ser admirado. O fundo da caldeira
fazia-se cobrir por duas dezenas de pequenos cones que definiam entre si
misteriosas lagoas luzidias de pequenos segredos. Era impossível não ser-se
transportado para um paraíso cheio de encantamentos em que o sol reflectia uma
luz perfeita e as hortências azuis reflectiam o azul celeste dos céus numa capacidade
divina de definir geometricamente o verde brilhante da encosta que descia
trezentos metros até ao fundo da caldeira. Vanda deixou-se cair sobre o verde
macio desejando que a sua alma fosse capaz de captar todo o esplendor daquela
beleza. Como podia ter negado a existência de Deus durante anos a fio, se só
uma divindade como ele seria capaz de criar uma maravilha daquelas no meio do
quase nada. Só Deus teria a capacidade de partilhar uma paisagem gloriosa
daquelas sem a guardar egoisticamente só para si. E neste momento Vanda sentiu
o toque de Deus, como já não sentia há muitos anos.
- Gostaste? – Vasco sentou ao lado dela
e entrelaçou os seus dedos nos dela.
- É maravilhoso! Nem tenho palavras…
- Chamamos Caldeirão!
O silêncio impôs-se por mais um momento necessário
para absorver aquela dádiva.
- Temos de falar Vanda! – Vasco sentiu
que o corpo dela se retraiu àquelas palavras, mas desta vez não deixaria a
conversa por meias palavras. O pânico assombrou-lhe os pensamentos e num
impulso destinado a calá-lo, Vanda beijou-o… De uma forma desajeitada e
apaixonada, depositando naquele gesto mais medo do passado do que esperança no
futuro. Vasco sentiu-se fraquejar perante aquele impulso, mas ele sabia
exactamente o que se estava a passar na cabeça de Vanda. Afastou-a com cautela
e olhou-a nos olhos.
- Esta é a tua carrinha de trabalho?
- É! – Vasco percebeu a tentativa de ser
Vanda a conduzir a conversa.
- Mas está irrepreensivelmente limpa! –
Vanda notara assim que se sentara no assento alto.
- Limpei-a ontem à noite, porque sabia
que te sentirias mais confortável assim…
Vanda sorriu-lhe e sentiu o toque de
Deus novamente. Chama-se amor a esta preocupação que surge nas pessoas de forma
natural sem transtornos ou obrigações.
- Limpaste a carrinha de propósito por
minha causa? Depois de me deixares em casa?
- Sim! – Agora parecia patético dizê-lo
em voz alta, mas no dia anterior parecia fazer sentido, quando Vasco chegou a
casa e se lembrou da lama que cobria a carrinha e do pó que se acumulava desesperadamente
dentro daquele veículo.
- Não quero falar sobre o meu passado,
porque eu sei que vou perder estas pequenas coisas que eu conquistei em ti!
Vasco deixou o corpo descair e apoiou-se
no cotovelo. Pegou na mão sedosa de Vanda e beijou-lhe a ponta dos dedos.
- Se não testares as tuas conquistas com
as tuas verdades obscuras, então é porque nem as chegaste a conquistar.
Vanda sorriu-lhe sem que o sorriso lhe
atingisse o olhar triste e profundo.
- Foste violada? – Aquela pergunta mortificava-o,
e uma voz interior rezava alto por uma resposta negativa.
- Sim!
Vasco sentiu o peso daquela certeza.
- Uma vez?
- Não! – Vanda despregou os seus olhos
de Vasco e fixou o Caldeirão.
- Conta-me Vanda!
- A culpa foi minha! – Pronto tinha-o
dito em voz alta. Nunca fora capaz de o pronunciar. Nem aos policiais que
tinham estado com ela naquela noite fatídica, nem ao seu advogado, nem ao seu
psiquiatra…
- Não estou a perceber Vanda!
- Os meus pais faleceram num acidente de
carro quando eu tinha catorze anos!
- Lamento muito Vanda! Não sabia! –
Vasco não sabia muitas coisas, mas mesmo assim sentia-se atraído por ela.
- Eles morreram numa acidente de carro
quando voltavam para França e me deixaram em Ourém com a minha avó, porque eu lhes
pedi numa acesa discussão… a última vez que vi os meus pais disse-lhes que
tinha vergonha deles… disse-lhes que não queria voltar para casa com eles… -
Vanda sentiu as lágrimas vencedoras dominarem os seus olhos. – A minha avó era
uma mulher quase analfabeta que vivia numa aldeia afastada do centro de Ourém.
Ocupava-se da vida do campo com uma alegria que me incomodava. As poucas vezes
que saía da aldeia era para ir ao banco ou para ir ao mercado. De vez em quando
também íamos a Fátima, ao santuário… Mas eu só fui das primeiras vezes… Depois
deixei de ter fé em Deus, e culpei-o por todos os meus pecados… É muito mais
fácil culpar a divindades do que termos a dignidade de assumir as nossas culpas…
E nos poucos momentos em que nos atrevemos a fazê-lo a dor é tão excruciante
que voltamos a colocar a culpa em ombros alheios…
- Não te podes culpar pelo acidente dos
teus pais Vanda!
- Esse é apenas um dos meus pecados… Eu
tenho outros… Outros…
- Do que é que estás a falar? – O olhar
de Vanda estreitou-se e depositado num ponto longínquo dali não acompanhou o
discurso.
- Eu manipulei uma senhora velhota para
ter a liberdade que queria. Com catorze anos achei que era a rainha daquele
lugarejo e ludibriei a minha avó para que ela não me impusesse regras
inoportunas. Coitada… Sempre pensando que me estava a dar a melhor educação. “ Só
quero que tenhas as oportunidades que não fui capaz de dar à tua mãe” e eu dizia-lhe
que ela estava a fazer um excelente trabalho. Comecei a querer sair à noite…
Com apenas catorze ou quinze anos… Queria sair à noite… Mas morava numa aldeia
longe de tudo… Então foi quando surgiu a ideia de pedir ao meu tio Elias.
Tratava-se do irmão do meu pai, e apesar de ele não ter muita afinidade com a
minha avó, eu sabia que a convenceria a deixar-me sair com ele. Afinal de
contas ele era já um homem e meu tio. E assim, saindo com o meu tio de trinta e
cinco anos dava um aspecto respeitador às minhas saídas. Saía todos os sábados.
O tio Elias ia buscar-me a casa e íamos até à discoteca. Ele dava-me liberdade
para poder estar com os meus amigos e só voltávamo-nos a encontrar na hora da
saída. Ansiava os sábados à noite como um alcoólico anseia um copo de vinho.
Sentia uma liberdade libertina e quase maléfica que culminava nuns copos de
vodka e nuns cigarros que me sabiam mal. Era uma miúda mal comportada que
suscitava a inveja das minhas colegas certinhas que não podiam sair à noite e o
gozo dos rapazes mais velhos que se gabavam de andar a beijar-me à socapa. No
espaço de umas poucas semanas senti necessidade de vestir algo mais pronunciado
que me deixasse mais pele á vista. Então levava um top e uma saia curta dentro
da minha mala, e trocava-me no carro a caminho da discoteca sem vergonha do meu
tio que ia ali ao meu lado. Ele nunca me ralhava, nem dava conselhos. Apenas se
limitava a perguntar-me se tinha gostado da noite. Uma certa noite de sábado,
voltávamos da discoteca e o meu tio perguntou-me se tinha namorado. Eu, armada
em tola respondi-lhe que ia tenho. A verdade é que eu cedia aos beijos
calorosos com muita facilidade, mas quando as mãos se tornavam marotas eu
afastava-me. Acho que no fundo eu era como qualquer outra miúda adolescente que
sonhava com um amor de cortar a respiração… Mas continuando, ele depois de me
perguntar se tinha namorado desviou o carro da rota habitual, mas eu não fiz
caso. A vodka girava-me harmoniosamente na cabeça e quando ele parou o carro no
meio do nada e me mandou sair do carro porque me queria mostrar uma coisa, eu
não questionei e fiz o que ele me mandava. Conduziu-me até um palheiro e quando
entrámos, os meus olhos levaram tempo até se habituarem à escuridão. Quando a
minha mente questionou pela primeira vez aquela atitude estranha, já o bafo
putrefacto dele estava em cima de mim, ofegante. O baque do meu corpo no chão
provocou-se dores nas costas. Ele arrancou-me as cuecas sem nunca pronunciar
uma única palavra e investiu sobre mim. Eu debati-me com todas as minhas
forças, mas ele era demasiado grande… Tão grande que me senti sufocar…
Vanda interrompeu aquela memória e
chorou compulsivamente. Vasco abraçou-a e sentiu uma onda de ódio percorrer-lhe
a espinha.
- Não tens de contar mais nada hoje.
- Eu quero contar! Se é para me odiares,
que pelo menos saibas de tudo até ao fim… Quando ele terminou, levantou-me em
força, conduziu-me para a rua e sobre a luz de um luar fraco inspeccionou o meu
corpo, certificando-se que não tinha nódoas negras. Enfiou-me no carro e
acendeu um cigarro… E disse-me a verdade… As palavras dele ainda habitam as
minhas memórias e sonhos. “ Não vale a pena contares isto a ninguém, porque só
vais fazer figura de parva. Tu ofereces-te descaradamente todos os sábados à
noite, abanando-te desastradamente para quem quiser ver e beijando quem te
passa pela frente da vista. Ninguém vai acreditar em ti… Para além de que matarás
a tua avó de desgosto, tal como fizeste com os teus pais.” E foi assim que
perdi a minha virgindade e a minha dignidade… A partir daquele momento deixei
de sair à noite e fugia do meu tio, mas sempre que ele sabia que eu estaria sozinha
em casa, ele aparecia do nada e repetia aquele acto animalesco. Ainda sinto o
cheiro a transpiração e a respiração ofegante que libertava um bafo que me
sufocava… Os abusos nascem dos excessos de confiança…
- Quanto tempo é que isso durou?
- Três anos!
Vasco sentiu o peso daquele sofrimento.
- E como é que acabou?
- Eu matei-o!