domingo, 25 de novembro de 2012

Capitulo XV - Nas Asas do Corvo


Capitulo XV

O relógio de parede com um rebordo prateado marcava três horas da tarde e Vanda sentia-se de alma vazia. A vida pregava-lhe partidas e brincava com ela de uma forma cruel. A chuva fustigava as janelas ao mesmo tempo que o remorso lhe fustigava a consciência. Era o último dia daquele ano. Um ano em que ela voltou a sentir-se. Voltou a ter consciência de emoções que ela pensou nunca mais ter capacidade de sentir. Voltou a sonhar, a suspirar, a ter esperança… voltou a amar… Não um amar desenfreado e frenético, mas um amar calmo e paciente que encontra na candura de um futuro previsível e corriqueiro o expoente máximo da ambição. Ela voltou a sentir-se feliz, de uma felicidade sábia que sabe chorar nos momentos tristes, porque a capacidade de chorar é executada quando a esperança de sorrir espreita desavergonhadamente. Quem não sente a felicidade perto, não chora… Não vale a pena…
O céu negro tornou-se permissivo a uns raios de sol que se exultavam num arco-íris presunçoso. Depois da tempestade vem sempre a bonança. Vanda sorriu. A verdade é que a noite de Natal foi calorosa e feliz. A empatia das conversas, o calor da partilha, o despertar de sentimentos fizeram parte daquela noite… E ela sentiu que pertencia ali… Não era a intrusa, mas sim parte daquele cenário. Sentiu que estava no sitio certo. Estava num trilho com várias saídas e as decisões dos seus próximos passos pertenciam-lhe apenas a ela. Não havia medicação para lhe toldar a mente. Não havia psiquiatras, nem psicólogos, nem nenhum tipo de vozes razoáveis a indicar-lhe o caminho. Ela tinha o total poder de decisão do que faria com o seu futuro. Naquela última semana tinha-se fechado em casa com as suas angústias, dúvidas desejos e incertezas. Ninguém a tinha importunado… nem mesmo Vasco. E apesar de sentir uma pontada de mágoa por este afastamento de Vasco, sabia que lhe fazia bem este espaço, porque só assim pode decidir sem tropeçar em emoções. Talvez abdicasse da verdade. Talvez não diria a ninguém que Matias é seu filho e manter-se-á sempre por perto, sempre pronta para caminhar ao lado dele na qualidade de amiga… de tia. Será isto suficiente? Matias é a sua única ligação de sangue, a sua única ligação de carne. Ela perdeu todas as suas ligações familiares. E se a relação dela e Vasco acabasse? Ela teria abdicado de Matias e ficaria sozinha, porque nessa altura já não teria dignidade para falar. Podia abrir já o jogo e lutar pelo seu menino. Ficar com ele… Educá-lo e amá-lo… E ele provavelmente odiá-la-ia quando ela o isolasse daquela família maravilhosa que ele tinha. Ficariam os dois sozinhos e faltaria a companhia e companheirismo dos irmãos, o carinho sábio dos avós e amor incondicional de uns pais normais. As dúvidas assombram a alma numa certeza angustiante de ignorância da resposta certa. E neste dilema, Vanda pegou no telefone e ligou para a única pessoa que a conhecia sem preconceitos da sua pessoas.
- Estou! – A voz de Daniel surgiu-lhe confusa e despertou um sorriso de reconhecimento em Vanda.
- Olá Daniel! – O silêncio parecia medir cada um dos lados da linha.
- Estás a ligar-me para me desejares um bom ano? - A ironia no comentário de Daniel libertou uma gargalhada em Vanda, e ela sentiu a proximidade da amizade.
- Tu conheces-me melhor do que isso Daniel.
Novo silêncio.
- Estás bem? - A preocupação era quase palpável na voz do jovem médico.
- Vou ficar! – Vanda recostou-se no sofá e questionou-se porque é que não tinha amigos.
- Já sei que recusaste um pedido de casamento muito original!
- Pois!
- Queres falar disso? – Daniel adoptou a sua personalidade de psiquiatra que não agradava a Vanda.
- Tu sabes bem porquê! – Vanda procurava quebrar a frieza típica da relação médico paciente.
- Ai Vanda! O que é que tu queres de mim? Se queres que te ajude tens de deixar-me fazê-lo…
- Eu não quero um psiquiatra…
- Então?
- Quero um amigo! Um amigo sincero…
Daniel inspirou enchendo os pulmões antes de falar.
- Sinto-me lisonjeado com o facto de me ligares no momento em que precisas de um amigo.
- Percebi com alguma amargura que nunca criei laços de amizade depois de França. – Vanda sentiu novamente a sua solidão, mas aceitou-a sem ressentimentos pela primeira vez.
- Tens em mim um amigo Vanda! Um amigo leal… - Lealdade! Eis uma das qualidade mais raras que podemos encontrar numa pessoa, e Vanda despertou esta qualidade em alguém. Afinal ela tinha capacidades. Foi capaz de despertar amor em Vasco e lealdade em Daniel. Sorriu com um orgulho presunçoso de si mesma.
- Obrigada Daniel! Voltas as Corvo?
- Já estás com saudades minhas? – Ambos riram alto como se partilhassem uma alegria privada.
- Tens esse efeito nas pessoas…
- Estou a orientar por aqui umas coisa, mas devo ir aí no inicio de Fevereiro.
- Só falta um mês! – Vanda sentiu-se aliviada. Podia ocupar-se facilmente durante um mês. Ela era perita em ocupar o tempo de forma a fazer crer que lhe faltava tempo para tudo e viver numa correria de modo a que o dia seguinte chegasse num ápice simulado.
- Podias fazer-me um pequeno favor Vanda!
- Ouvi dizer que é isso que os amigos fazem! – Vanda não se cansava de pronunciar aquela palavra… amigo.
- Queria que comprasses uma caixa de chocolates e um postal e que entregasses como sendo uma prenda minha à Catarina… - Daniel calou-se na expectativa de uma reacção  Se eram amigos podia contar-lhe que não passava um único dia que não pensasse em Catarina, naquela sorriso maroto, naqueles olhos demasiado seguros de si, naquela postura desafiadora sempre pronta a receber o mundo nos braços.
- Mas que bem… O senhor doutor enamorou-se… - Vanda soltou uma gargalhada. – E o que é que queres que coloque no postal?
- Sei lá Vanda! Escreve “ bom ano novo”…
- Credo homem! Queres que lhe coloque um carimbo da embaixada para ser mais formal? – Vanda riu alto.
- Que rica amiga me calhou na rifa… Então dá uma opinião melhor.
- Posso escrever : “ Desejo-te um novo ano repleto de felicidade e sonhos concretizados. A minha felicidade será retomada em Fevereiro. Com carinho Daniel”.
Daniel pensou naquelas palavras. Gostou da insinuação.
- Pode ser. Mas não ponhas “com carinho”… Termina apenas com “Daniel”.
- É claro que eu vou entregar os chocolates e o cartão em mãos. E vou fazer referência à tua visita à nossa humilde ilha em Fevereiro, para que ela assente bem as ideias. – Vanda sorria perante a felicidade quase adolescente do amigo.
- Falando de outra coisa Vanda! – Daniel tornou a sua voz mais clara. – Tenho estado com o Vasco… E com o Matias… Ele vai voltar aos tratamentos de quimioterapia. A Vera e o Marco estão arrasados, e o Vasco anda armado em forte, mas ele precisa de chorar. Precisa de apoio…
- Não sei se devo ser eu a dar-lhe esse apoio…
- Eu acho que deves ser tu… E falo-te como amigo e não como psiquiatra.
- Mas depois eu vou tirar-lhe o sobrinho… Vou abrir uma fenda profunda na família dele…
- Vanda! Agora vou falar-te como psiquiatra, e vou fazê-lo porque sou teu amigo. Tu não vais fazer isso, porque se quisesses fazê-lo realmente já o terias feito. Já tiveste inúmeras oportunidades de abrir a boca e dizeres que o Matias é teu filho, mas nunca o fizeste… E sabes porquê? – Daniel deu-lhe um minuto para ela assentar ideias e reflectir numa resposta. – Não o fizeste, porque no fundo do teu consciente tu sabes que não és mãe daquele menino. Tu sabes Vanda! – Daniel sentiu o vazio do silêncio. – Vou pedir-te uma outra coisa. Pesquisa sobre o síndrome de Hellp.
Vanda sentiu um aperto no peito perante aquelas palavras. Resistiu ao impulso de gritar e desligar o telefone. Fechou os olhos, inspirou e expirou devagar…
- Está bem…
A conversa continuou noite fora. Falaram da crise económica que o país atravessava e os ânimos por vezes exaltaram-se, outras vezes suavizaram-se. As piadas e ironias soltavam gargalhadas cúmplices e as preocupações sobre o futuro incerto de um país sobrecarregado de dívida fazia-os suspirarem resignação. As horas passaram-se sem que nenhum dos dois percebesse.
- Sabes que horas são Vanda?
- Não! Já é muito tarde?
- Falta dez minutos para a meia-noite…
- Oh! Desculpa Daniel… Deves ter compromissos e estás aqui ao telefone comigo… Falamos depois então…
- Cala-te tagarela… Tens champanhe em casa?
- Tenho um espumante no frigorífico
- Então vai lá buscá-lo… Não te esqueças do copo.
Vanda obedeceu sem contestações inúteis, saltando do sofá cheia de pressa. Vanda emitia risadinhas de felicidade. Uma felicidade quase infantil.
- Já está!
- Eu também já tenho aqui o meu champanhe!
As vozes uniram-se na contagem decrescente. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um… “ Feliz Ano Novo”.

O primeiro dia do ano amanheceu num frio que parecia conservar a felicidade daquela época e num azul celestial conservador de sonhos. Vanda levantou-se preguiçosamente e depois das suas tarefas matinais dirigiu-se para a cozinha. Decidiu que não levaria uns simples chocolates a Catarina. Daniel merecia que ela fizesse mais do que isso por ele. Tirou farinha, manteiga, ovos, açúcar e começou a preparar a massa para uns cupcakes de chocolate. Quando a massa atingiu a textura pretendida ela preencheu várias pequenas formas redondas e levou-as ao forno. Começou o buttercream de baunilha  Quando terminou colocou o preparado num saco de pasteleiro e esperou que os cupcakes ficassem prontos. Assim que o forno apitou, Vanda espreitou e ficou satisfeita com o resultado. Colocou os vários cupcakes num tabuleiro e começou a decorá-los com o buttercream. Encaixou o tabuleiro estrategicamente dentro de uma caixa de papelão e colocou um laço grande e vermelho que não deixava dúvidas de se tratar de uma prenda. Pegou numa cartolina branca e cortou-a fazendo dela um cartão. Satisfeita tomou um banho rápido, vestiu umas calças de ganga e uma camisola de lã branca. Prendeu o cabelo com um elástico e saiu de casa. O ar frio da manhã acariciou-lhe o rosto provocando-lhe um arrepio e o caminho fez-se num passo continuo e seguro. As ruas mostravam-se vazias, como se fosse ela a única habitante daquele cantinho. Vanda gostou da sensação de caminhar dom a pela das mãos em contacto com o frio húmido  dona das ruas, do tempo, e da sua vontade.
- Está aí alguém? – Vanda entrou na Guest House Comodoro conhecedora do caminho. – Catarina! Estás aí? – A filha do dono da residencial surgiu no campo de visão de Vanda, com o cabelo que parecia estar num emaranhado de labaredas vermelhas, apenas aparentemente controlado por um elástico largo.
- Olá Vanda! – Catarina dirigiu-lhe um sorriso cansado que não disfarçava a noite mal dormida.
As duas encaminharam-se para o sofá convidativo a dois dedos de conversa.
- Estás com um ar de quem aproveitou bem a noite de passagem de ano! – Vanda piscou-lhe um olho cúmplice.
- Fizemos aqui um jantar e a festa durou até de manhã. Ainda nem me deitei… - As duas riram.
- Vim entregar-te uma encomenda. – Vanda esticou a caixa.
- Oh! Não era preciso… - Catarina recebeu a caixa com um olhar confuso.
- Não é uma prenda minha Catarina…
Os olhos da pequena Catarina incendiaram-se numa expectativa  e os lábios contraíram se numa tentativa frustrada de disfarçar a esperança que lhe espelhava o brilho da alma. Depois da tremura das mão acalmar ela abriu a caixa numa ânsia e sorriu quando viu os cupcakes perfeitos. Só depois pegou no cartão e devorou as palavras que ali estavam escritas retendo o nome de Daniel na mente e no sorriso palerma que lhe invadiu a boca carnuda.
- Ainda bem que gostaste!
- Adorei! Pensei que nunca mais fosse saber nada dele… Afinal de contas ele é médico no continente e eu sou uma simples insular…
- Sabes uma coisa Catarina? Eu aprendi que é na simplicidade que nos deslumbramos. Tudo o resto só serve para nos enganarmos.
- Achas que ele volta cá?
- Volta! – Vanda fez um pouco de suspense, apreciando um pouco a ansiedade de Catarina. – Ele vem daqui a um mês mais ou menos. – Catarina soltou finalmente uma gargalhada de felicidade, tirou um cupcake e encheu a boca, revirando os olhos de prazer. A conversa à volta de Daniel fluiu, provocando em Vanda um sensação agradável de lealdade ao amigo.
- Como é que conheceste o Daniel? – A pergunta gelou os movimentos de Vanda que se torou rígida. Ela não devia mentir, nem envergonhar-se do seu passado, mas também não se sentia confortável para partilhar com toda gente.
- O Daniel ajudou-me numa fase muito difícil da minha vida… - Vanda suspirou. – Conheci-o num hospital psiquiátrico… Ele foi meu psiquiatra durante muito tempo.
- Ah! – Catarina interiorizou aquela revelação e de um forma sábia e grata pela sinceridade não insistiu naquele assunto.
- Tens net aqui? – perguntou Vanda.
- Sim!
- Importas-te de me deixar usar?
- Claro! – Catarina pegou num pequeno portátil que estava depositado na mesa de centro e ligou-o. – Pronto! Podes usar… Eu vou fazer um café bem forte para acompanhar esses bolos deliciosos…
Vanda seguiu Catarina com o olhar e quando a perdeu de vista sentiu o peso daquele passo que ia dar. Depois de fazer aquela pesquisa não podia voltar a trás… Mas ela nunca virou as costas aos problemas. Sabia que dentro de todos os seus erros era uma pessoa forte, capaz de aguentar o inimaginável. A pesquisa do Google estava em suspense à sua frente. Finalmente digitou “síndrome de hellp”. Abriu o primeiro resultado da pesquisa. “Síndrome HELLP é uma complicação obstétrica com risco de morte, sendo considerada por muitos uma variação da pré-eclâmpsia. Ambas as condições podem aparecer na gravidez ou as vezes após o parto.” Os seus olhos devoravam informação destacada e libertavam lágrimas na mesma medida que consumiam a consciência da doença. Finalmente leu a patologia e expressões como “gravidez ectópica”, “hipertensão gestacional”, “aborto espontâneo” ou “descolamento prematura da planceta” assentaram-lhe no estômago como se tivesse levado um murro. Limpou os olhos embaciados e continuou a pesquisa tentando perceber a doença. Entrou no facebook e encontrou um grupo “mulheres que passaram pelo sindrome de hellp”. Abriu um depoimento nu português brasileiro e deixou-se emocionar:

Andrea Dea

Minha história pessoal relacionada à Síndrome Hellp.
Vou contar mais detalhadamente como aconteceu:
Quando descobri que estava gestante, tinha acabado de perder minha mãe com cancer, em situação bastante difícil e eu ainda estava muito abalada...no demais, minha gestação foi completamente normal até o quinto mês que foi quando comecei a ter alterações na pressão arterial. Minha médica me receitou remédio pra controlar a pressão e estávamos sempre em contato. Fazia o acompanhamento médico corretamente e tinha feito exames de sangue e o ultra-som morfológico há uma semana e tudo estava normal.
A única coisa que eu e as outras pessoas estranhavam um pouco é que eu não tinha barriga tão visível apesar de já estar próxima de entrar no sexto mês, tinha engordado 5 quilos apenas, mas a médica dizia que estava ótimo assim, pois normalmente ganhamos mais peso a partir dos 6 meses.
No dia 31.08.2009, ( com 26/27 semanas de gestação) após trabalhar o dia todo normalmente e já estar deitada pra dormir, comecei a sentir um desconforto abdominal, algo parecido com o que sentimos quando comemos demais. Até então, estava tranqüila, sentia a bebê mexendo e comecei a andar pela casa, tomei algum medicamento para gases achando que este poderia ser o motivo do incômodo. Após algumas horas, ainda sem conseguir dormir, a dor começou a incomodar mais e também comecei a sentir dores nas costas. Nenhuma posição me era confortável, como era já madrugada, não querendo acordar o esposo, fiquei agüentando a dor, já chorando muito e pressentindo algo errado, porém não tinha a menor idéia do que estava acontecendo.
Por volta de 6 horas da manha avisei o esposo de que não estava bem, nesse momento já sentia um formigamento no meu lado direito, perna, braço e rosto...ele mediu a minha pressão e estava 17 por 10. Ligamos para a médica e quando tentei falar a minha voz saía enrolada, minha língua não me obedecia, minha mente estava sã, mas meu corpo não obedecia, ele pegou o telefone e já ouviu da médica que fôssemos o mais rápido possível para a maternidade mais próxima e ressaltou: “uma que tenha UTI neonatal”.
E assim fomos, quando cheguei passei por um primeiro atendimento, onde com o aparelho ouviram os batimentos cardíacos da bebê e estavam normais. Já fiquei mais tranqüila.
Eu tinha os exames recentes de uma semana antes e os levei, nem tinha ainda passado na consulta para minha médica ver, pois estava marcada a consulta para dali a alguns dias.
O obstetra de plantão solicitou uma ultra-sonografia, no momento do exame comecei a perceber que havia algo errado. O médico fez muitas perguntas, chamou outro e mais outro e ficavam olhando para o monitor com ar preocupado. Mas só disseram que o médico que estava me atendendo iria falar comigo depois, colheram sangue para mais exames e fiquei na emergência, recebendo um soro com medicação para as dores, que logo foram aliviando com o remédio. Por estar ali tudo muito tranqüilo aparentemente, até achei que após a medicação eu iria pra casa, ficar de repouso, algo assim. Quando acabou o soro chamei o enfermeiro e ainda disse que já podia tirar, ele falou pra esperar que o médico viesse falar comigo... ai de novo fui ficando preocupada.
De repente veio o médico, que tenho que dizer, foi totalmente rude e sem nenhum trato ao me dizer com estas palavras: “ O feto está em sofrimento, não recebe mais alimento, esta perdendo peso, temos que tira-lo, se não fizermos alguma coisa, o quadro o levará ao óbito, você vai ficar internada.” Foi bem assim e ele virou as costas e saiu andando...
Eu só consegui olhar pro meu esposo e perdi totalmente a noção do que estava fazendo, depois ele me contou que eu chorava e gritava que não podia perder minha filha, que ela não podia nascer ainda, só tinha 5 meses e pouco, que não ia aguentar, que eu não ia deixar eles tirarem ela e assim foi...e o medico voltou correndo e já foi mandando me colocarem numa sala reservada e me acalmarem para me levar para o quarto, aí ele se deu conta do que tinha feito e ficou tentando consertar.

Enfim, após a internação, fizeram outros exames (tudo no mesmo dia), iniciaram a coleta de urina por 24 horas para controle, os exames todos alterados eram colhidos a curtos espaços de tempo, o exame pra ouvir os batimentos da bebê era feito também varias vezes, o celular do esposo tocava e ele disfarçava e ia pra fora do quarto, depois que tudo passou é que soube que ele falava com a minha médica, ele sabia de tudo mas ainda não era a hora de eu saber.
Confesso que achava que tomaria aquelas injeções que ajudam no desenvolvimento do pulmão dos bebês e ficaria ali internada com todos os cuidados, ate passar o tempo certo da gestação, ainda não tinha noção da gravidade.
O que eu não sabia é que o médico do hospital já tinha enviado por fax os meus exames para a minha médica obstetra, que juntamente com os sintomas apresentados, identificou imediatamente a Síndrome Hellp, solicitando ao medico que me internasse com urgência para o parto, mas ela não queria me preocupar então contou tudo ao meu esposo e disse que ela mesma queria conversar comigo e me explicar todo o problema. A cirurgia foi marcada para as 20:00hs e eram já 17:00 e eu ainda tranqüila, achando que estava tudo sob controle, foi então que a médica chegou e me explicou tudo, toda a gravidade da situação, a queda das plaquetas, meus rins com problemas, pulmão...tudo ruim...que se não interrompesse a gestação nós duas morreríamos e o pior, mesmo assim, a bebê tinha poucas chances de sobreviver, e nisso ela foi muito clara: “ Você é jovem, poderá ter outros filhos.” Já me preparando para o pior.
Eu já tinha passado por complicações com anestesia em outras duas cirurgias, portanto havia ainda essa preocupação a mais, se as plaquetas ficassem abaixo de 50 mil, teria de ser anestesia geral, o que prejudicaria ainda mais a bebê. As minhas estavam em 63mil, o anestesista conversava comigo e dizia, vamos ficar atentos, queremos você acordada, porque tem que nos avisar se demorar tempo demais pra sentir as pernas após a cirurgia.
No meu quarto no hospital começaram a chegar os parentes e amigos...solidários com a situação...e decidiram fazer uma oração, me lembro de todos no quarto ao redor da cama e na oração foi feito o pedido que Deus colocasse a Sua mão à frente das mãos dos médicos e cuidasse de mim e da Fernanda...e assim fui para a cirurgia.
As 23:00 do dia 01.09.2005 nascia Fernanda, com 700 grs e detalhe: a Fernanda ainda chorou ao nascer, dois chorinhos...rsrs...minha médica fez o parto e me lembro dela sorrindo surpresa por ouvir o choro...”Mas olha só!! Ela até chorou!!” disse a médica...e não consegui ver a minha bebê porque logo a levaram para receber todos os cuidados necessários.
Fiquei ali enquanto o cirurgião terminava a parte dele, o anestesista veio conversar comigo e mais uma vez me disse: “ Se em até 3 horas você não voltar a sentir as pernas peça pra chamarem o médico plantonista na UTI”. Bem, além de me preocupar com a minha filha, ainda tinha que me preocupar com isto também. Fiquei na UTI e pela cortina que separa um leito do outro eu conseguia ver o relógio ali onde ficavam os enfermeiros e ia contando as horas. Graças a Deus após duas horas comecei a sentir umas das pernas e algum tempo depois também senti a outra normalmente.
Pela manha recebi a noticia de que minhas plaquetas já estavam a subir, e em alguns dias eu já sairia da UTI. Também recebi a visita de uma enfermeira da UTI neonatal, que também se chamava Fernanda. Ela trazia a foto da minha filha para que eu a conhecesse, impressa numa folha A4 (com muito zoom) ela parecia grande, comprida, apenas magrinha...não tinha noção do real tamanho dela.
A enfermeira começou me dizendo que as estatísticas dizem que as meninas sobrevivem mais que os meninos, e brincava, somos fortes já desde o nascimento!!!
E depois completou: “ Você sabe o que quer dizer o nome Fernanda?” eu respondi que sim e ela disse: “ Então você sabe que quer dizer FORTE, LUTADORA, OUSADA.”
E ouvi dela tudo que eu mais precisava ouvir naquele momento:

“ Vocês vão agora começar uma luta, no mínimo durante 3 meses, diariamente você virá a este hospital terá momentos de dor, de sofrimento, terá também alegrias, pequenas vitórias que serão comemoradas como se você tivesse ganhado na loteria....não sabemos o que vai acontecer, mas sabemos que você terá que ser forte por você e por ela, ela precisa de você, não chore perto dela, só passe coisas boas, tenha Fé e nunca perca a Esperança.”
E foi assim...eu saí da UTI após alguns dias e pude vê-la na UTI neonatal, passei mal quando a vi...ela não tinha ainda o furinho do nariz aberto, uma penugem branca cobria seu corpinho tão pequenino, tão magrinho....tantos fios, tubos, aparelhos...pensei “meu Deus será que ela vai viver?” me colocaram sentada até que eu melhorasse...após alguns dias tive alta sem a minha bebê nos braços, ter que deixa-la lá foi muito difícil...fui pra casa e chorei tudo que podia, no dia seguinte as 7 da manha estava já no hospital e saía de lá as 10 da noite....e assim foi por 82 dias....
Ela passou por muitas coisas, muitos processos, muitas lágrimas choramos, mas muito mais eram as vitórias que Deus nos dava...um médico vinha e nos dizia “houve sangramento cerebral, vamos aguardar os próximos exames”...ficávamos arrasados...após 3 ou 4 dias refaziam o exame e mesmo medico dizia: “ o sangramento foi absorvido, não aparece nada no exame”...e comemorávamos muito felizes...e isto se repetia em muitas outras ocasiões e eu me lembrava da enfermeira me dizendo que eu iria comemorar pequenas vitórias como se tivesse ganhado na loteria...e era exatamente assim...se ela ganhava 50 gramas era uma festa, mas no outro dia ela tinha perdido 100 grs....e a luta era mesmo diária e não havia tempo pra descansar ou pensar em mim...só nela...em cada passo, um dia de cada vez...paradas respiratórias, sangramento cerebral, pedras nos rins, retinopatia da prematuridade, canal arterial aberto (e até isso Deus permitiu que houvesse fechamento espontâneo sem precisar de cirurgia), tranfusões de sangue, etc....
Ela teve acompanhamento de várias especialidades médicas até os 3 anos de idade, e eu ouvia os médicos falarem: “sua filha é um milagre”.
Ela fez 6 anos em setembro, não tem nenhuma seqüela..e é meu tesouro mais precioso...não tenho palavras para agradecer a Deus por ter me dado esse presente, FERNANDA.
Às mulheres que passaram pela Sindrome Hellp e infelizmente suas histórias não tiveram um final feliz como o meu, desejo de todo o meu coração que Deus cumpra o desejo de vossos corações, e permita que um dia vocês possam vir a abraçar um filho.

Andréa”