Capitulo VI
O
mar fustigava o cais minúsculo num vai e vem pouco ritmado rebentando numa
indignação solitária. A espuma explodia num fogo-de-artifício triste por
debaixo de um céu ameaçadoramente negro. O coração de Vanda escurecia ao mesmo
ritmo daquele dia que teimava em alongar-se. A solidão pesava-lhe na alma e nos
seus dias que se arrastavam num marasmo quotidiano premeditado e triste. Não
via Vasco há mais de quinze dias, e apesar de tentar não pensar no assunto, a
verdade é que sentia falta dele todos os dias e um vazio de animação tinha-lhe
congelado o sorriso. Sabia que era melhor este afastamento do que uma promessa
inútil impossível de se realizar. Fora pretensiosa ao sentir-se desejada por um
homem como Vasco sempre que ele lhe dedicava um olhar doce. O seu coração
estremeceu quando ela fechou os olhos por uns segundos e deixou que o vento lhe
acariciasse as feições e o cheiro da maresia lhe trouxesse o rosto ligeiro de
Vasco à memória. Os seus olhos dourados que escondem sempre uma segunda intenção.
O seu meio sorriso malandro e fácil. O cabelo rebelde… Quando ela inspirou
fundo, abriu os olhos numa necessidade física de ver Vasco.
Vanda
virou as costas ao cais e seguiu um instinto primitivo que combatia ferozmente
com o seu bom senso. Uma voz gritava-lhe que estava na hora de começar a fazer
o jantar. Não era altura de fazer um desvio, ou não conseguiria jantar às sete
e meia. Estragaria todas as tarefas planeadas para o fim do dia e ficaria com
dores de cabeça quando tivesse de repensar os seus afazeres. Mas a vontade de
ver Vasco, que lhe crescia rebelde e sem nexo dentro de si engolia a vozinha
irritante que a mandava para casa com urgência.
A
porta verde de alumínio contradizia a tradição das casas do centro da vila. A
vivenda branca parecia-lhe agora maior. O nervosismo e adrenalina de estar a
agir por impulso instalaram-se na barriga, provocando-lhe um formigueiro suave.
Vanda procurou uma campainha, mas sem resultado. Sorriu espontaneamente. Claro
que ele não teria campainha em casa. Rodou a maçaneta e a porta não lhe
ofereceu qualquer resistência. Vanda entrou apreciando a simplicidade e
funcionalidade que a mobília reflectia da vivência daquela casa, mas não
conseguiu evitar um franzir do sobrolho face à desarrumação da sala. Brinquedos
espalhados no chão, duas garrafas de cerveja vazias descansavam sobre a mesa de
cerejeira já manchada…
-
Vasco! – Vanda chamou, mas sem resposta. Ouviu vozes e seguiu o som. Atravessou
a cozinha limpa, mas desarrumada e saiu pela porta traseira que dava acesso ao
jardim. Vasco rebolava na erva com os sobrinhos fazendo-os libertarem
gargalhadas nervosas de puro prazer. Vanda sentiu que o seu coração parara face
àquele cenário. Matias fugia em passos repenicados de Vasco que o agarrava pela
cintura e o fazia girar no ar até caírem os dois. Ela queria um jardim assim
cheio de vida contagiado por um tipo de felicidade que só conseguia imaginar
com Vasco naquele cenário.
-
Olá! – Os olhares perdidos em risos fáceis e conversas descontraídas
fixaram-na, e de repente aquela visita deixou de fazer sentido. Foi Vera que
fez as honras da casa perante o constrangimento visível de Vasco.
-
Olá Vanda! Que boa surpresa! Senta-te aqui. Queres uma cerveja? – Vanda
obedeceu e sentou-se na cadeira que Vera amavelmente indicava.
-
Não posso beber! A última vez que o fiz parece que deu mau resultado! – A
última vez que o fizera correspondia à última vez que tinha estado com Vasco.
Esta associação de ideias assustou-a. Talvez tivesse sido desagradável.
Vera
rui-se alto e ofereceu-lhe uma coca-cola.
-
Então e como vai o meu Matias na escola? – A conversa forçada tentava fazer
passar despercebida a retirada de Vasco do jardim. Os olhos de Vanda
seguiram-no enquanto dava uma resposta qualquer e apreciava o nó que se formava
no seu estômago perante aquela atitude. Nem a tinha cumprimentado para além de
um abanar ligeiro de cabeça.
-
O Matias é um menino maravilhoso que se for bem acompanhado terá todos os
sucessos que quiser. – Vanda devia concentrar-se no seu propósito naquela ilha.
Devia conquistar o filho e não pensar em mais nada, porque a vida não lhe reservaria
iguarias como o Vasco.
-
Eu também acho! – Vanda absorveu o olhar de amor que aquela mulher dedicava ao
filho mais novo e a sua consciência revolveu-se em remorso. – Eu engravidei do
meu Matias sem querer. Foi numa altura muito complicada…
Perante
o silêncio daquela mulher reservada, Vanda incentivou a continuar a sua
história.
-
Complicada porquê?
-
Eu casei muito nova com o Marco! Viver numa ilha destas em que conhecemos todos
os recantos e gentes faz com que deixemos de ser surpreendidos e temos certezas
muito cedo. Eu tive a certeza de que o Marco era o homem que me acompanharia
para o resto da vida e casei-me com apenas dezoito anos. Engravidei do meu Renato
logo no inicio do casamento e na ingenuidadeões de horários, as
responsabilidades de ser esposa e mãe, são demadiado pesadas para uma miuda que
devia estar a disfrutar o sol das tardes de Verão com os amigos e a trocar
segredinhos ligeiros. Tivemos de viver na casa dos pais do Marco e obedecer às
regras dos donos da casa. A minha sogra é uma joia de pessoa que tentava
ensinar-me a ser dona de casa e mãe e eu, na minha irreverência da juventude
interpretei isso como uma perseguição pessoal… Somos tão tontos quando somos
novos…- Vera fez uma pausa e um sorriso palerma floresceu-lhe nos lábios revelando
que ela estava perdida nas suas recordações. – Só conseguimos arrendar casa
quando o Renato tinha dois anos. O Marco trabalhava nas obras e eu prestava
umas horas no bar dos bombeiros, e quando nos mudámos para a nossa casa vivemos
momentos de euforia… Nem imaginas a felicidade que uma casinha com apenas um
quarto e a precisar de obras urgentes nos proporcionou. E foi neste entusiasmo
que engravidei do meu Carlos. Vivemos três anos a contar tostões a dormir
poucas horas e colocar panas no chão para aparar a água que pingava do tecto.
Com dois filhos e ordenados instáveis dependíamos muito da ajuda dos nossos
pais. Foi uma época muito complicada, em que as discussões surgiam frequentemente…
- Ver baixou o olhar e esqueceu-se que estava a desabafar o seu passado com uma
estranha, mas numa ilha pequena em que todos se conhecem, não pode abrir as
suas angústias mais intimas com ninguém. – Sabes, quando num casal, ambos andam
constantemente cansados, de bolsos vazios e sempre com trabalho e
responsabilidades por fazer e executar, parece sempre que o teu companheiro faz
menos do que tu… As cobranças insensatas começam como uma bola de neve… Assim
que atiras a primeira pedra, a probabilidade de haver uma chuva delas é
inevitável. E começa a confundir-se a saturação, o cansaço, as olheiras
permanentes, a vontade constante de fechar os olhos, a falta de carinhos com a
falta de amor… E as dúvidas mais disparatadas instalam-se… E foi num momento
destes que Matias foi concebido… - Ver deixou que as lágrimas teimosas a
vencessem.
-
Não chores Vera! – Vanda sentiu-se próxima daquela mulher e pela primeira vez
em muitos anos quis estender os seus braços proporcionar um pouco de conforto.
Retraiu-se… Não estava habituada… Por isso usou das palavras. – Com todas as
tuas dificuldades conseguiste construir uma família linda. Tens apenas 33 anos
e tens o que poucas pessoas levaram uma vida inteira a conquistar…
Vera
riu-se por entre as lágrimas…
-
Estou a ser parva, é o que me estás a dizer, não é?
-
Não! Estás a lembrar-te do que passaste para chegares aqui… E isso é muito
importante… É um processo que deve ser feito com frequência e que muitos se
esquecem de fazer. Recordar o que cada conquista nossa custou deve ser um acto
frequente, porque só assim damos valor ao que faz parte do nosso presente e nos
dá força para enfrentar novas dificuldades, sabendo que o melhor que podemos
alcançar não está isento de pagamento…
-
E eu recordo-me de tudo muitas vezes… Eu pensei em abandonar a minha família
muitas vezes… Já imaginaste se o tivesse feito?
-
Mas não o fizeste! Tinhas um caminho fácil e um difícil… É normal desejarmos o
fácil… O excruciante é optarmos pelo difícil e fazê-lo até ao fim. É bom que te
lembres que tiveste uma outra escolha que na altura era mais fácil. É bom que
te recordes das escolhas que fizeste o do resultado que tiveste dela. Estas
recordações servem para te orientar em escolhas futuras.
-
Posso contar-te o resto? Promete-me que estes desabafos não saem daqui…
-
Claro que podes contar! Afinal eu sou uma anti-social que não me dou com
ninguém… - Este comentário arrancou uma gargalhada em uníssono e incentivou a
continuação daquela conversa.
-
O Vasco sempre foi muito inteligente. – Ouvir aquele nome provocou um
estremecimento em Vanda que ela não soube significar. – Ele foi estudar para o
Faial e depois foi para o continente. Tirou o curso de Engenharia Civil e foi
dos melhores do seu curso…
-
O Vasco é licenciado em Engenharia? – A surpresa daquela revelação ainda lhe
estava a assentar no entendimento.
-
Sim… E assim que terminou o curso teve muitas propostas de emprego. Ele
trabalhou numa grande empresa e viajava muito entre Lisboa e Madrid… Mas O
Vasco é uma pessoa simples que que aprecia uma vida baseada num quotidiano
fácil e sem grandes pressões, por isso voltou para a terrinha e começou a
construir e reconstruir aqui no Corvo. Abriu a empresa com o Marco e foi a
partir daí que a nossa vida deu a volta que tanto precisávamos. O Vasco foi uma
bênção para as nossas vidas… Ele é uma boa pessoa…
-
Pois é!
-
Sabes como é que eu identifico uma boa pessoa, Vanda?
-
Como?
-
Uma boa pessoa é aquela que te ajuda sem que o sintas, sem passar para ti o
peso da gratidão… E o Vasco é assim…
Vanda
fechou os olhos por um momento. Estava na hora de jantar e não estava na sua
casa. O desconforto desta constatação instalava-lhe um pânico miudinho. Mas a
constatação de que Vasco era melhor do que ela pudera imaginar, ainda a
perturbava mais.
-
E ele é incansável com o Matias… - A voz de Vera fê-la regressar ao conteúdo
daquela conversa. – Na doença do menino é sempre o Vasco que mantém a clama e
que consegue agir com maior rapidez e eloquência.
-
Qual doença? – Vanda sentiu-se sobressaltada com esta última revelação.
-
Ai Vanda! Às vezes penso que a culpa é toda minha! Vivi uma gravidez
desajeitada com os nervos no comando das minhas decisões e as discussões na
ponta minha língua. Privei-me de uma alimentação saudável e do sono que o meu
corpo exigia… Trabalhei até me rebentarem as águas… Fui irresponsável e penso
que a culpa desta fragilidade do Matias é consequência desta minha
irresponsabilidade. – Vera chorava sem vergonha e expunha-se como sentia
necessidade de se expor há muito tempo. – O Matias teve leucemia há pouco
tempo…
Vera
perdeu a capacidade de continuar o desabafo e Vanda compreendeu-a. Finalmente
abriu-lhe os braços e acolheu-a.
Quando
Vera se acalmou e a chuva se impôs ao negrume do céu, ambas as mulheres
entraram na casa e sentiram o cheiro perfumado de maresia. Vera sorriu por
entre as lágrimas quando reconheceu o que jantariam naquela noite.
-
Não acredito que temos lapas! – Vera agarrou o pescoço do marido e
depositou-lhe um beijo sentido nos lábios.
-
Se eu soubesse que as lapas teriam esse efeito em ti já as teria trazido há
mais tempo. – Marco sorriu à mulher e limpou-lhe as lágrimas sem comentá-las.
-
Já comeste lapas? – Vasco dirigia-se a Vanda provocando-lhe um aperto na
garganta, o que lhe bloqueou a resposta assertiva, fazendo-a desenrascar-se com
um abanar de cabeça. Vasco agora estava demasiado perto e o coração de Vanda
descontrolava-se… - Não sabes o que perdes. Ajuda-me a pôr a mesa!
-
Mas eu…
-
Ias comer comida para pintos… Já sei! – Vasco estendeu-lhe uma toalha. – Agora
ajuda-me a pôr a mesa, porque tu hoje vais comer comida de gente.
A
agitação daquela casa depressa varreu tristezas. Os miúdos corriam
desajeitadamente atrás uns dos outros e Vanda percebeu como os irmão mais
velhos protegiam Matias sem o excluir das brincadeiras com uma sabedoria
sensata e inocente. Descobriu os olhos de Marco e Vera a brilharem de uma luz
quase divina sempre que pousavam nos filhos e deslumbrou-se com o sorriso
palerma de Vasco para os sobrinhos. Como podia ela destruir aquela harmonia? Os
cenários idílicos excluíam-na por natureza, como se ela numa pudesse fazer
parte de uma pintura de Miguel Ângelo… Ela perdia-se num quadro abstracto
vulgar e barato em que nenhuma realidade pode ser entendida ou admirada…
-
Toca a sentar! – Vasco batia com uma colher no fundo de uma tacho fazendo as
delícias dos três miúdos. Sentaram-se todos num reboliço irrequieto. As vozes
confundiam-se mas as conversas não se atrapalhavam. Vanda sorriu interiormente
por não se sentir com dores de cabeça no meio daquele reboliço.
-
Tome esta professora! – Matias esticava uma lapa para Vanda que lhe sorriu.
-
Não posso comer esta, meu querido… Primeiro tem de ser cozinhada! – Vanda
sorriu-lhe e depois atrapalhou-se quando o rapaz encolheu os ombros sem
perceber aquele comentário e descolou a lapa da conha e a meteu na boca assim
mesmo crua… e viva. O grito de Vanda calou a mesa.
-
Tira isso da boca… Já… - Vanda abanava o rapaz e forçava-o a abrir a boca numa
aflição frenética. Foi Vasco quem primeiro reagiu e a afastou do sobrinho. –
Mas ele pôs uma lapa crua na boca… E.. e… eu acho que ela ainda se mexia e tudo…
-
Olha para mim Vanda! – Vasco encaixou o rosto de Vanda no interior da sua palma
da mão e fê-la fixar o olhar nele. – Nós comemos as lapas assim…
-
Cruas! E vivas… - a incredulidade de Vanda arrancaram gargalhadas à plateia em
geral fazendo-a sair daquele estado de pânico.
-
Experimenta uma e a professora vai ver como é bom!... – Matias voltou a
esticar-lhe uma lapa. Vanda olhou para aquele molúsculo agarrado à concha que
se movia pouco e não conseguiu evitar uma careta.
-
Vá lá professora! – Vasco sentou-a enquanto a incentivava a comer aquela
iguaria. Vanda olhou para os olhinhos expectantes de Matias e não conseguiu
desiludi-lo. Pegou na concha e com a ponta de uma faca descolou a lapa. Fechou
os olhos com força e abriu a boca atirando-a lá para dentro. – Agora tens de
mastigar… Não sejas preconceituosa e disfruta do sabor. – Todos a incentivavam a
trincar aquele petisco vivo e ela sentia-se uma assassina, mas começou por
fazê-lo. Primeiro devagar, mas depois daquele sabor temperado apenas pela água
do mar se alastrar pelo seu paladar, Vanda continuou com os olhos fechados, mas
agora de prazer. Nunca tinha provado nada parecido. A noite animou-se numa barrigada
de lapas e pão de milho.
Depois
do jantar e de Vanda ter arrumado a cozinha, Vasco fez questão de a levar a
casa. O silêncio impôs um caminho mais longo, em que O desconforto se tornou físico,
assim como a atracção.
-
Chegamos! – Vanda concentrou-se em procurar as chaves dentro da mala tentando
não olhar para aqueles olhos cor de caramelo. Quando finalmente encontrou a
chaves e levantou o olhar a proximidade evidenciou o desejo e Vasco
aproximou-se. E abriu a boca para dizer qualquer coisa que Vanda calou com os
seus lábios. A surpresa deu lugar à vontade e o toque dos dedos longos e suaves
de Vanda no seu pescoço fizeram-no ceder e deixar-se levar naquele beijo. O
afastamento foi lento e a realidade impôs-se novamente. Vasco não a largou e
com as testas encostadas e os braços a garantirem a proximidade, Vasco teve de
esclarecer o que o atormentava.
-
Tu pensaste que eu ia violar-te! – Vanda deu um salto para trás e os seus olhos
arregalaram-se de surpresa.
-
Eu… Eu estava bêbeda… E depois foi uma noite longa… e a bebida… e estava tonta…
Só devo ter dito disparates… Não ligues. – Vanda virou-lhe as costas e enfiou a
chave na porta fazendo intenção de terminar as despedidas por ali. Vasco
agarrou-lhe suavemente o braço e fê-la voltar-se para si.
-
Tu disseste-me que tinhas sido violada! – Para além da surpresa, os olhos de
Vanda revelavam agora terror, e Vasco lembrou-se do que estava a fugir, mas a
sua fuga terminava ali naquele momento.
-
Falamos disto noutra altura! – Vanda mostrava-se apressada na despedida.
-
Amanhã é feriado! Venho buscar-te às dez horas da manhã… Vou mostrar-te o
Corvo. Até amanhã! – Vasco virou costas e foi-se embora. Não sabia o que
deveria dizer mais, nem como abordar aquela situação. Ela queria ficar novamente
sozinha, e faltava-lhe coragem para lhe provocar mais dor do que aquela que lhe
vira nos seus olhos quando abordara aquele tema.
O
telefone tocou, mas Vanda não foi capaz de atender…