domingo, 24 de junho de 2012

Capitulo VI - Nas Asas do Corvo


Capitulo VI

O mar fustigava o cais minúsculo num vai e vem pouco ritmado rebentando numa indignação solitária. A espuma explodia num fogo-de-artifício triste por debaixo de um céu ameaçadoramente negro. O coração de Vanda escurecia ao mesmo ritmo daquele dia que teimava em alongar-se. A solidão pesava-lhe na alma e nos seus dias que se arrastavam num marasmo quotidiano premeditado e triste. Não via Vasco há mais de quinze dias, e apesar de tentar não pensar no assunto, a verdade é que sentia falta dele todos os dias e um vazio de animação tinha-lhe congelado o sorriso. Sabia que era melhor este afastamento do que uma promessa inútil impossível de se realizar. Fora pretensiosa ao sentir-se desejada por um homem como Vasco sempre que ele lhe dedicava um olhar doce. O seu coração estremeceu quando ela fechou os olhos por uns segundos e deixou que o vento lhe acariciasse as feições e o cheiro da maresia lhe trouxesse o rosto ligeiro de Vasco à memória. Os seus olhos dourados que escondem sempre uma segunda intenção. O seu meio sorriso malandro e fácil. O cabelo rebelde… Quando ela inspirou fundo, abriu os olhos numa necessidade física de ver Vasco.
Vanda virou as costas ao cais e seguiu um instinto primitivo que combatia ferozmente com o seu bom senso. Uma voz gritava-lhe que estava na hora de começar a fazer o jantar. Não era altura de fazer um desvio, ou não conseguiria jantar às sete e meia. Estragaria todas as tarefas planeadas para o fim do dia e ficaria com dores de cabeça quando tivesse de repensar os seus afazeres. Mas a vontade de ver Vasco, que lhe crescia rebelde e sem nexo dentro de si engolia a vozinha irritante que a mandava para casa com urgência.
A porta verde de alumínio contradizia a tradição das casas do centro da vila. A vivenda branca parecia-lhe agora maior. O nervosismo e adrenalina de estar a agir por impulso instalaram-se na barriga, provocando-lhe um formigueiro suave. Vanda procurou uma campainha, mas sem resultado. Sorriu espontaneamente. Claro que ele não teria campainha em casa. Rodou a maçaneta e a porta não lhe ofereceu qualquer resistência. Vanda entrou apreciando a simplicidade e funcionalidade que a mobília reflectia da vivência daquela casa, mas não conseguiu evitar um franzir do sobrolho face à desarrumação da sala. Brinquedos espalhados no chão, duas garrafas de cerveja vazias descansavam sobre a mesa de cerejeira já manchada…
- Vasco! – Vanda chamou, mas sem resposta. Ouviu vozes e seguiu o som. Atravessou a cozinha limpa, mas desarrumada e saiu pela porta traseira que dava acesso ao jardim. Vasco rebolava na erva com os sobrinhos fazendo-os libertarem gargalhadas nervosas de puro prazer. Vanda sentiu que o seu coração parara face àquele cenário. Matias fugia em passos repenicados de Vasco que o agarrava pela cintura e o fazia girar no ar até caírem os dois. Ela queria um jardim assim cheio de vida contagiado por um tipo de felicidade que só conseguia imaginar com Vasco naquele cenário.
- Olá! – Os olhares perdidos em risos fáceis e conversas descontraídas fixaram-na, e de repente aquela visita deixou de fazer sentido. Foi Vera que fez as honras da casa perante o constrangimento visível de Vasco.
- Olá Vanda! Que boa surpresa! Senta-te aqui. Queres uma cerveja? – Vanda obedeceu e sentou-se na cadeira que Vera amavelmente indicava.
- Não posso beber! A última vez que o fiz parece que deu mau resultado! – A última vez que o fizera correspondia à última vez que tinha estado com Vasco. Esta associação de ideias assustou-a. Talvez tivesse sido desagradável.
Vera rui-se alto e ofereceu-lhe uma coca-cola.
- Então e como vai o meu Matias na escola? – A conversa forçada tentava fazer passar despercebida a retirada de Vasco do jardim. Os olhos de Vanda seguiram-no enquanto dava uma resposta qualquer e apreciava o nó que se formava no seu estômago perante aquela atitude. Nem a tinha cumprimentado para além de um abanar ligeiro de cabeça.
- O Matias é um menino maravilhoso que se for bem acompanhado terá todos os sucessos que quiser. – Vanda devia concentrar-se no seu propósito naquela ilha. Devia conquistar o filho e não pensar em mais nada, porque a vida não lhe reservaria iguarias como o Vasco.
- Eu também acho! – Vanda absorveu o olhar de amor que aquela mulher dedicava ao filho mais novo e a sua consciência revolveu-se em remorso. – Eu engravidei do meu Matias sem querer. Foi numa altura muito complicada…
Perante o silêncio daquela mulher reservada, Vanda incentivou a continuar a sua história.
- Complicada porquê?
- Eu casei muito nova com o Marco! Viver numa ilha destas em que conhecemos todos os recantos e gentes faz com que deixemos de ser surpreendidos e temos certezas muito cedo. Eu tive a certeza de que o Marco era o homem que me acompanharia para o resto da vida e casei-me com apenas dezoito anos. Engravidei do meu Renato logo no inicio do casamento e na ingenuidadeões de horários, as responsabilidades de ser esposa e mãe, são demadiado pesadas para uma miuda que devia estar a disfrutar o sol das tardes de Verão com os amigos e a trocar segredinhos ligeiros. Tivemos de viver na casa dos pais do Marco e obedecer às regras dos donos da casa. A minha sogra é uma joia de pessoa que tentava ensinar-me a ser dona de casa e mãe e eu, na minha irreverência da juventude interpretei isso como uma perseguição pessoal… Somos tão tontos quando somos novos…- Vera fez uma pausa e um sorriso palerma floresceu-lhe nos lábios revelando que ela estava perdida nas suas recordações. – Só conseguimos arrendar casa quando o Renato tinha dois anos. O Marco trabalhava nas obras e eu prestava umas horas no bar dos bombeiros, e quando nos mudámos para a nossa casa vivemos momentos de euforia… Nem imaginas a felicidade que uma casinha com apenas um quarto e a precisar de obras urgentes nos proporcionou. E foi neste entusiasmo que engravidei do meu Carlos. Vivemos três anos a contar tostões a dormir poucas horas e colocar panas no chão para aparar a água que pingava do tecto. Com dois filhos e ordenados instáveis dependíamos muito da ajuda dos nossos pais. Foi uma época muito complicada, em que as discussões surgiam frequentemente… - Ver baixou o olhar e esqueceu-se que estava a desabafar o seu passado com uma estranha, mas numa ilha pequena em que todos se conhecem, não pode abrir as suas angústias mais intimas com ninguém. – Sabes, quando num casal, ambos andam constantemente cansados, de bolsos vazios e sempre com trabalho e responsabilidades por fazer e executar, parece sempre que o teu companheiro faz menos do que tu… As cobranças insensatas começam como uma bola de neve… Assim que atiras a primeira pedra, a probabilidade de haver uma chuva delas é inevitável. E começa a confundir-se a saturação, o cansaço, as olheiras permanentes, a vontade constante de fechar os olhos, a falta de carinhos com a falta de amor… E as dúvidas mais disparatadas instalam-se… E foi num momento destes que Matias foi concebido… - Ver deixou que as lágrimas teimosas a vencessem.
- Não chores Vera! – Vanda sentiu-se próxima daquela mulher e pela primeira vez em muitos anos quis estender os seus braços proporcionar um pouco de conforto. Retraiu-se… Não estava habituada… Por isso usou das palavras. – Com todas as tuas dificuldades conseguiste construir uma família linda. Tens apenas 33 anos e tens o que poucas pessoas levaram uma vida inteira a conquistar…
Vera riu-se por entre as lágrimas…
- Estou a ser parva, é o que me estás a dizer, não é?
- Não! Estás a lembrar-te do que passaste para chegares aqui… E isso é muito importante… É um processo que deve ser feito com frequência e que muitos se esquecem de fazer. Recordar o que cada conquista nossa custou deve ser um acto frequente, porque só assim damos valor ao que faz parte do nosso presente e nos dá força para enfrentar novas dificuldades, sabendo que o melhor que podemos alcançar não está isento de pagamento…
- E eu recordo-me de tudo muitas vezes… Eu pensei em abandonar a minha família muitas vezes… Já imaginaste se o tivesse feito?
- Mas não o fizeste! Tinhas um caminho fácil e um difícil… É normal desejarmos o fácil… O excruciante é optarmos pelo difícil e fazê-lo até ao fim. É bom que te lembres que tiveste uma outra escolha que na altura era mais fácil. É bom que te recordes das escolhas que fizeste o do resultado que tiveste dela. Estas recordações servem para te orientar em escolhas futuras.
- Posso contar-te o resto? Promete-me que estes desabafos não saem daqui…
- Claro que podes contar! Afinal eu sou uma anti-social que não me dou com ninguém… - Este comentário arrancou uma gargalhada em uníssono e incentivou a continuação daquela conversa.
- O Vasco sempre foi muito inteligente. – Ouvir aquele nome provocou um estremecimento em Vanda que ela não soube significar. – Ele foi estudar para o Faial e depois foi para o continente. Tirou o curso de Engenharia Civil e foi dos melhores do seu curso…
- O Vasco é licenciado em Engenharia? – A surpresa daquela revelação ainda lhe estava a assentar no entendimento.
- Sim… E assim que terminou o curso teve muitas propostas de emprego. Ele trabalhou numa grande empresa e viajava muito entre Lisboa e Madrid… Mas O Vasco é uma pessoa simples que que aprecia uma vida baseada num quotidiano fácil e sem grandes pressões, por isso voltou para a terrinha e começou a construir e reconstruir aqui no Corvo. Abriu a empresa com o Marco e foi a partir daí que a nossa vida deu a volta que tanto precisávamos. O Vasco foi uma bênção para as nossas vidas… Ele é uma boa pessoa…
- Pois é!
- Sabes como é que eu identifico uma boa pessoa, Vanda?
- Como?
- Uma boa pessoa é aquela que te ajuda sem que o sintas, sem passar para ti o peso da gratidão… E o Vasco é assim…
Vanda fechou os olhos por um momento. Estava na hora de jantar e não estava na sua casa. O desconforto desta constatação instalava-lhe um pânico miudinho. Mas a constatação de que Vasco era melhor do que ela pudera imaginar, ainda a perturbava mais.
- E ele é incansável com o Matias… - A voz de Vera fê-la regressar ao conteúdo daquela conversa. – Na doença do menino é sempre o Vasco que mantém a clama e que consegue agir com maior rapidez e eloquência.
- Qual doença? – Vanda sentiu-se sobressaltada com esta última revelação.
- Ai Vanda! Às vezes penso que a culpa é toda minha! Vivi uma gravidez desajeitada com os nervos no comando das minhas decisões e as discussões na ponta minha língua. Privei-me de uma alimentação saudável e do sono que o meu corpo exigia… Trabalhei até me rebentarem as águas… Fui irresponsável e penso que a culpa desta fragilidade do Matias é consequência desta minha irresponsabilidade. – Vera chorava sem vergonha e expunha-se como sentia necessidade de se expor há muito tempo. – O Matias teve leucemia há pouco tempo…
Vera perdeu a capacidade de continuar o desabafo e Vanda compreendeu-a. Finalmente abriu-lhe os braços e acolheu-a.
Quando Vera se acalmou e a chuva se impôs ao negrume do céu, ambas as mulheres entraram na casa e sentiram o cheiro perfumado de maresia. Vera sorriu por entre as lágrimas quando reconheceu o que jantariam naquela noite.
- Não acredito que temos lapas! – Vera agarrou o pescoço do marido e depositou-lhe um beijo sentido nos lábios.
- Se eu soubesse que as lapas teriam esse efeito em ti já as teria trazido há mais tempo. – Marco sorriu à mulher e limpou-lhe as lágrimas sem comentá-las.
- Já comeste lapas? – Vasco dirigia-se a Vanda provocando-lhe um aperto na garganta, o que lhe bloqueou a resposta assertiva, fazendo-a desenrascar-se com um abanar de cabeça. Vasco agora estava demasiado perto e o coração de Vanda descontrolava-se… - Não sabes o que perdes. Ajuda-me a pôr a mesa!
- Mas eu…
- Ias comer comida para pintos… Já sei! – Vasco estendeu-lhe uma toalha. – Agora ajuda-me a pôr a mesa, porque tu hoje vais comer comida de gente.
A agitação daquela casa depressa varreu tristezas. Os miúdos corriam desajeitadamente atrás uns dos outros e Vanda percebeu como os irmão mais velhos protegiam Matias sem o excluir das brincadeiras com uma sabedoria sensata e inocente. Descobriu os olhos de Marco e Vera a brilharem de uma luz quase divina sempre que pousavam nos filhos e deslumbrou-se com o sorriso palerma de Vasco para os sobrinhos. Como podia ela destruir aquela harmonia? Os cenários idílicos excluíam-na por natureza, como se ela numa pudesse fazer parte de uma pintura de Miguel Ângelo… Ela perdia-se num quadro abstracto vulgar e barato em que nenhuma realidade pode ser entendida ou admirada…
- Toca a sentar! – Vasco batia com uma colher no fundo de uma tacho fazendo as delícias dos três miúdos. Sentaram-se todos num reboliço irrequieto. As vozes confundiam-se mas as conversas não se atrapalhavam. Vanda sorriu interiormente por não se sentir com dores de cabeça no meio daquele reboliço.
- Tome esta professora! – Matias esticava uma lapa para Vanda que lhe sorriu.
- Não posso comer esta, meu querido… Primeiro tem de ser cozinhada! – Vanda sorriu-lhe e depois atrapalhou-se quando o rapaz encolheu os ombros sem perceber aquele comentário e descolou a lapa da conha e a meteu na boca assim mesmo crua… e viva. O grito de Vanda calou a mesa.
- Tira isso da boca… Já… - Vanda abanava o rapaz e forçava-o a abrir a boca numa aflição frenética. Foi Vasco quem primeiro reagiu e a afastou do sobrinho. – Mas ele pôs uma lapa crua na boca… E.. e… eu acho que ela ainda se mexia e tudo…
- Olha para mim Vanda! – Vasco encaixou o rosto de Vanda no interior da sua palma da mão e fê-la fixar o olhar nele. – Nós comemos as lapas assim…
- Cruas! E vivas… - a incredulidade de Vanda arrancaram gargalhadas à plateia em geral fazendo-a sair daquele estado de pânico.
- Experimenta uma e a professora vai ver como é bom!... – Matias voltou a esticar-lhe uma lapa. Vanda olhou para aquele molúsculo agarrado à concha que se movia pouco e não conseguiu evitar uma careta.
- Vá lá professora! – Vasco sentou-a enquanto a incentivava a comer aquela iguaria. Vanda olhou para os olhinhos expectantes de Matias e não conseguiu desiludi-lo. Pegou na concha e com a ponta de uma faca descolou a lapa. Fechou os olhos com força e abriu a boca atirando-a lá para dentro. – Agora tens de mastigar… Não sejas preconceituosa e disfruta do sabor. – Todos a incentivavam a trincar aquele petisco vivo e ela sentia-se uma assassina, mas começou por fazê-lo. Primeiro devagar, mas depois daquele sabor temperado apenas pela água do mar se alastrar pelo seu paladar, Vanda continuou com os olhos fechados, mas agora de prazer. Nunca tinha provado nada parecido. A noite animou-se numa barrigada de lapas e pão de milho.
Depois do jantar e de Vanda ter arrumado a cozinha, Vasco fez questão de a levar a casa. O silêncio impôs um caminho mais longo, em que O desconforto se tornou físico, assim como a atracção.
- Chegamos! – Vanda concentrou-se em procurar as chaves dentro da mala tentando não olhar para aqueles olhos cor de caramelo. Quando finalmente encontrou a chaves e levantou o olhar a proximidade evidenciou o desejo e Vasco aproximou-se. E abriu a boca para dizer qualquer coisa que Vanda calou com os seus lábios. A surpresa deu lugar à vontade e o toque dos dedos longos e suaves de Vanda no seu pescoço fizeram-no ceder e deixar-se levar naquele beijo. O afastamento foi lento e a realidade impôs-se novamente. Vasco não a largou e com as testas encostadas e os braços a garantirem a proximidade, Vasco teve de esclarecer o que o atormentava.
- Tu pensaste que eu ia violar-te! – Vanda deu um salto para trás e os seus olhos arregalaram-se de surpresa.
- Eu… Eu estava bêbeda… E depois foi uma noite longa… e a bebida… e estava tonta… Só devo ter dito disparates… Não ligues. – Vanda virou-lhe as costas e enfiou a chave na porta fazendo intenção de terminar as despedidas por ali. Vasco agarrou-lhe suavemente o braço e fê-la voltar-se para si.
- Tu disseste-me que tinhas sido violada! – Para além da surpresa, os olhos de Vanda revelavam agora terror, e Vasco lembrou-se do que estava a fugir, mas a sua fuga terminava ali naquele momento.
- Falamos disto noutra altura! – Vanda mostrava-se apressada na despedida.
- Amanhã é feriado! Venho buscar-te às dez horas da manhã… Vou mostrar-te o Corvo. Até amanhã! – Vasco virou costas e foi-se embora. Não sabia o que deveria dizer mais, nem como abordar aquela situação. Ela queria ficar novamente sozinha, e faltava-lhe coragem para lhe provocar mais dor do que aquela que lhe vira nos seus olhos quando abordara aquele tema.
O telefone tocou, mas Vanda não foi capaz de atender…

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Capitulo V - Nas Asas do Corvo


Capitulo V

    A cabeça pesava-lhe toneladas e a garganta seca implorava urgência num copo de água. Vanda levantou-se a custo e quando olhou para o espelho sentiu-se confusa com o que viu. Pelos vistos nem conseguira mudar de roupa na noite anterior. Ela não devia beber nenhum álcool. Ela sabia disso. Mas a noite agradável e a companhia animada quase exigiam aquela infracção. Vanda estremeceu face a esta palavra. Infracção. Ela tinha-se permitido a uma infracção. O arrependimento sobrepôs-se ao sorriso vitorioso que aquela constatação lhe provocava. Vestiu a custo uma camisola larga e uns calções, e aventurou-se rumo à cozinha. Foi o cheiro do café que a fez adivinhar que alguém estava na sua casa. A imagem de Vasco com as mesmas calças da noite anterior e a camisa aberta e amarrotada fizeram-na temer o pior.
- Bom dia Vanda! – Vasco despejou o café numa chávena grande. – Senta-te e bebe este café. Vai fazer-te bem!
    Vanda obedeceu. Sentia um constrangimento no ar que não sabia explicar.
- Dormiste cá? – Vanda fez a pergunta num fio de voz, receando a resposta.
- Sim! – Vasco respondeu com uma monossílaba absorvendo a reacção de Vanda. Um brilho de terror trespassou-lhe o olhar, enquanto todos os seus músculos se retesaram. – Não te lembras de nada?
    Vanda abanou a cabeça.
- A última memória que tenho é de cantar “strangenrs in the nigth” e… - a memória quase nítida de estar a rodopiar desajeitadamente com as sabrinas na mão provocaram-lhe uma náusea. – Nem me lembro de ter entrado em casa…
    O silêncio que se seguiu foi álcool na ferida de ansiedade que Vanda sentia crescendo dentro de si. O pânico começou a aflorar-lhe os olhos numas lágrimas tímidas.
- Não chores Vanda! Não foi assim tão mau! – Vasco sorriu-lhe de uma forma matreira, mas quando viu o rosto de Vanda perder a cor resolveu esclarecer a situação imediatamente. – Não aconteceu nada Vanda! Não te preocupes.
    Vanda levantou-se da mesa com o alívio a cair de forma pesada no seu peito provocando-lhe um riso histérico que se alternava de forma assustadora com uma choro compulsivo.
- Estás a rir de alegria por não ter acontecido nada ou a chorar de tristeza? – Vasco não sabia lidar com aqueles momentos típicos de Vanda sem recorrer ao humor. Pelo menos ajudava…
- Desculpa Vasco! Eu preciso de ficar um pouco sozinha! – Vanda recompôs-se um pouco, mas sentia um emaranhado de sentimentos que não conseguia catalogar. Queria paz para se acalmar e repensar as suas atitudes desleixadas.
- Está bem Vanda! – Vasco sentiu-se aliviado por ser ela a pedir para ele sair. Queria colocar as ideias em ordem. Ainda não sabia o que fazer com a revelação da última noite. A sua mente sussurrava-lhe para se afastar. Ela era uma mulher interessante, mas que exige demasiado. E o que ele procura são relações simples, descomplicadas que começam da mesma forma que acabam, sem problemas ou envolvimentos demasiado intensos. Não pode negar que gosta de uma boa conquista, mas não se pode dar a esse luxo com Vanda. Ela acarreta em si uma história que lhe exigiria mais do que ele está disposto a dar. “Esta mulher vai dar-te problemas.” Sussurrava-lhe o bom senso, mas havia uma vontade interior que o impulsionava para ela. O melhor era realmente afastar-se um pouco.
Assim que Vasco saiu, Vanda correu para a casa de banho. Olhou-se longamente ao espelho. Mirou o seu rosto tão conhecido. A ruga que se instalava no meio das suas sobrancelhas sempre que a preocupação lhe ocupava o peito estava ali reflectida naquele espelho. Os lábios tremiam de ansiedade. As linhas do rosto estavam demasiado suaves, e os olhos… Ai os olhos… Vanda não os reconhecia. Os olhos exibiam um brilho orgulhosamente culpado, quase como se a estivessem a desafiar de forma deliberada. Vanda fechou-os com força e quando os voltou a abrir sabia exactamente o que eles lhe diziam. Ela estava a abrir uma frecha… Uma pequena frecha, pela qual Vasco começava a entrar.
O telefone tocou.
- Sim!
- Olá Vanda!
- Olá Daniel!
O momento de silêncio impôs-se na mesma plenitude de sempre, como se a conversa só fosse autorizada depois desta demonstração de respeito pelo momento que se seguiria.
- Estava com saudades de falar contigo Vanda.
- Pois… - Vanda sentia-se ainda perdida e a sua desatenção chegou a Daniel.
- Estás triste Vanda?
- Sim!
- Porquê?
- Tenho saudades de quando tudo era simples!
- Fala-me desse tempo… - Daniel esperou e Vanda falou.
- Eu tenho duas vidas… A vida de antes e a vida depois…
- Disseste-me que tens saudades. Tens saudades de qual das vidas?
- Da vida de antes. Eu nasci em França, sabias?
- Não! Pensei que fosses de Ourém.
- Os meus pais eram de Ourém e emigraram para França assim que casaram. Eu nasci em França.
- Falas Francês?
Vanda riu-se, sentindo-se próxima desse tempo em que tudo era simples… demasiado simples… De uma simplicidade tão pura que a sua mente não sabia aproveitar, porque a ambição humana de querer sempre um pouco mais, de nunca ter o suficiente, de se sentir sempre vazia deturpa as maravilhas dos momentos simples.
- Sim! Eu falo francês.
- Continua a tua história! Nasceste em França e depois?
- A minha mãe era porteira no 94, em Paris e o meu pai trabalhava na construção de estradas. Ele passava dias e por vezes semanas fora de casa por causa do trabalho. Até aos quatro anos de idade conhecia apenas o prédio onde a minha mãe trabalhava. Morávamos num pequeno apartamento destinado à porteira do prédio. Era um prédio de luxo, com uma entrada toda em mármore e um candelabro que eu imaginava que seria roubado de um palácio de princesas. Os habitantes eram todos muito distintos, mas tratavam a minha mãe com muito carinho e tinham sempre uma graça para mim. Lembro-me bem da Madame Dufoix que tinha duas filhas gémeas mais velhas do que eu três anos. Elas eram altas e esguias de cabelo castanho que usavam sempre elegantemente apanhado. Cresci nos corredores daquele prédio acompanhando a minha mãe nas limpezas que ela fazia em cada apartamento para ganhar mais uns trocos. Os meus pais trabalharam mais do que a vida lhes exigia, mas a mentalidade aforradora fazia-os trabalhar cada vez mais. Só saía daquele prédio para vir a Portugal. Agosto era o mês mais aguardado do ano. A minha avó materna viva numa pequena freguesia de Ourém e esperava-nos sempre com muita saudade. A viagem era sempre feita de carro e chegávamos a casa da minha avó sempre derreados. – Vanda sorriu intimamente quando recordou o sorriso fácil da avó e a sua sopa de feijão que ela pedinchava com gritinhos agudos face à dificuldade utópica que a avó simulava. – Ourém era o nosso pequeno paraíso. E assim fui crescendo. Entre o prédio da zona 94 de Paris, a escola portuguesa e um recanto de Ourém. Quando o meu corpo começou a mudar e as borbulhas a ameaçarem-me, trouxeram uma insatisfação irrequieta própria da pré-adolescência. O facto de ser filha da porteira começou a pesar-me na vergonha de uma condição inferior, sem sequer imaginar que por detrás daquela mulher de mãos ásperas e ancas roliças que me obrigava a chamar-lhe mãe estava uma mulher que daria a sua vida por mim. – Vanda sentiu que a garganta se apertava face à lembrança dos olhos cor de mel da mãe que se faziam cobrir por um cabelo abundante e rebelde que teimava em escapar ao lenço velho e gasto. – Ela era uma mulher extraordinária… Mas nós humanos só sabemos avaliar a verdadeira imensidão de outro ser, quando já não podemos usufruir dele… E eu só agora tenho capacidade para perceber a importância que aquela mulher quase analfabeta e de modos brejeiros tinha na minha vida pacata. Era nesta simplicidade que ela me protegia dos perigos da vida e eu não era capaz de perceber a magnificência dos seus conselhos e carinhos. Quando tinha apenas catorze anos fomos de férias para Ourém, como fazíamos sempre. Numa discussão acesa acusei os meus pais de me privarem das coisas boas da vida. Morava em Paris e nunca tinha ido à Disney, como se este facto fosse decisivo para uma vida melhor. Morava no mesmo prédio das raparigas que me vestiam em segunda mão. Eles não percebiam a vergonha de vestir roupa usada pelas raparigas do andar de cima. Não percebiam a importância de ter dinheiro no bolso para pagar uma bebida aos amigos, que eram todos endinheirados. Não percebiam a vergonha de ser filha da porteira quando todos os outros da zona 94 de Paris eram filhos de advogados, médicos e embaixadores. Não percebiam a vergonha de eles exibirem orgulhosamente a sua nacionalidade portuguesa, num lugar onde o trabalho que mais ninguém queria era assegurado por esta gente submissa e trabalhadora. Discutimos em voz alta, até que esta nos faltou e os olhos se incharam na impotência de poderem chorar mais. Eu disse-lhes que tinha vergonha deles… - Vanda sentiu as primeiras lágrimas aflorarem os olhos. Percorreram-lhe as faces e salgaram-lhe os lábios. – Foi nessa noite que ficou decidido que eu ficaria em Portugal com a minha avó. Os meus pais queriam que eu fosse feliz e nessa noite cederam ao meu pedido de não voltar para Paris, onde a vergonha nas minhas origens perseguir-me-iam. Abriram mão de mim por amor e eu nunca tive oportunidade de agradecer. Eles morreram num acidente de carro na viagem de volta dois dias depois da nossa discussão, sem terem ouvido dos meus lábios o quanto eu os amava… Sem saberem que tinha orgulho no trabalho deles… Sem se sentirem apreciados pelo ser que eles haviam criado…
- Lamento muito Vanda! – Daniel sentiu uma necessidade impotente de estar perto dela de lhe afagar a dor com a palma da sua mão.
- Sabes o que é pior do que cometer um erro?
- Não…
- É insistir nele… E foi o que eu fiz. Em vez de recordar os meus pais com carinho, no lugar de corresponder em morte ao que eles esperavam de mim, recusei-me a pensar neles. Nos poucos momentos que o fiz chorei horas a fio até que o cansaço me embalasse. A consciência é uma defesa contra actos hediondos, mas quando atacada é uma pena demasiado pesada. E a minha consciência penalizava-me magoava-me, torturava-me sempre que me atrevia a ter saudades dos meus pais. E a minha mente seguiu o caminho mais fácil. Aproveitei-me de uma avó velhota e desactualizada dos novos tempos para enganá-la na dimensão da liberdade que me deveria dar. Aproveitei-me da dor de perda dela, convencendo-a de que não me podia contradizer sob pena do meu sofrimento aumentar… E assim afastei todos aqueles que me protegiam e desafiei os perigos que viria a sofrer mais tarde…
O silêncio impôs-se. Vanda tinha falado em voz alta os tormentos que lhe haviam torturado em sussurros nestes anos todos. Havia mais tormentos, mas hoje não queria pensar neles. Hoje queria chorar a saudade dos pais, queria fechar os olhos e pensar neles com o carinho que não lhes tinha dedicado em vida. Queria chorar os desgostos que talhara no rosto velho e recortado da avó. Queria chorar… Apenas chorar.