domingo, 25 de março de 2012

CAPÍTULO XXIII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XXIII


    A voz de Luzia elevava-se trespassando as paredes numa exaltação improvável, enquanto Maria choramingava palavras soltas. Ana apressou-se a entrar em casa seguida por George, Tina e John.
- Mas o que é que se passa aqui? – Ana lamentou encontrar Luzia com os olhos azuis completamente opacos de fúria e Maria encostada num canto com as lágrimas gordas a lhe rolarem pela cara. A cozinha com o chão de terra batida parecia mais escura do que de costume. O braço erguido de Luzia denunciava bem a sua intenção e Ana num instinto protector colocou-se entre a mão e a irmã mais nova.
- Então? Vão dizer-me o que se passa ou não?
- Não sei o que fazer com essa rapariga! – Luzia soltou as palavras, agora sentindo mais a amargura do que a raiva inicial, e deixou-se cair num dos bancos de madeira. Tina aproximou-se dela e massajou-lhe amigavelmente os ombros, como se este acto atenuasse a tensão.
- Não és tu que tens de fazer alguma coisa de mim! Sou eu! Mas ela não percebe isso, Ana! – Agora que Mari via a mãe sentada com os ombros descaídos sentia-se mais incentivada a marcar a sua posição. – Estou farta de que ela seja esta mãe-galinha…
- Cuidado com as palavras Maria… - Ana queria voltar a restabelecer a ordem naquela discussão.
- É verdade… Ela quer obrigar-me a calçar essas albarcas horrorosas… - Os olhos de Ana e de Tina dirigiram-se automaticamente para as albarcas.
- Realmente não são nada bonitas! Mas porque é que não podes continuar com os teus sapatinhos de camurça? – Quando Tina percebeu que o tema da discussão era tão ridículo como o próprio par de albarcas quase sorriu de alívio.
- Porque a dona Luzia quer que eu vá trabalhar para a terra… Quer que eu pegue num ancinho e vá revolver a porcaria da terra e que fique com calos horrorosos como os que ela tem… - Maria sentia-se explodir de indignação e Ana percebeu exactamente o que se estava a passar.
- Oh! Mas isso é horrível! – Tina deixou escapar a sua opinião sem perceber bem o efeito da mesma
- Maria! Não fales com a mãe dessa forma… Tu sabias muito bem que este momento chegaria! É altura de te portares como adulta que és…
- Mas eu ainda sou muito nova para trabalhar na terra! – Maria começou novamente a choramingar tentando amolecer o coração da mãe como sempre fizera.
- Deixa-te disso, Maria! Tu és tão adulta para umas coisas… E só és criança exactamente quando te convém… Agora começa a falar com a mãe… - Ana queria que a irmã falasse com a mãe de mente aberta, que lhe contasse os seus projectos para o futuro, que lhe mostrasse o seu trabalho…
- Não tenho nada para dizer a essa senhora que me quer escravizar numa vida de trabalhos forçados.
- Maria Ferreira!... – Ana pronunciou o nome da irmã mais nova com uma acentuação que fazia adivinhar sarilhos se ela continuasse a armar-se em esperta. Então a sua actuação passou das lágrimas acusadoras a uma voz doce e inocente enquanto batia as suas longas pestanas tentando seduzir a mãe à sua causa.
- Oh mãezinha! Desculpa se te consumi! – Luzia amava as filhas acima de qualquer suspeita e o facto de quase ter batido na sua pequenota estava a pesar-lhe na consciência num aperto quase insuportável. Ela era incapaz de provocar qualquer tipo de sofrimento nas suas meninas e ali, pressionada pela atitude desafiadora de Maria quase perdeu a cabeça. Mas ela preocupava-se com o futuro das filhas, e a sua Maria tinha manias de princesa e não sabia do que viveria a filha quando a infância desse lugar ás obrigações. – Eu sei que está preocupada com o meu futuro. – Luzia subiu o olhar até ao da filha e reparou que o ar de desafio se tinha desvanecido.
- Claro que estou preocupada com o teu futuro! Nós somos uma família humilde que vive do trabalho da terra… Nunca vos faltou nada Maria. Eu e o teu pai sempre vos demos tudo o que podíamos… Quantas crianças, tu viste a irem para a escola todos os dias calçados? Quantas, Maria? Tu e as tuas irmãs nunca andaram descalças, nem no Verão nem no Inverno… Mas às vezes eu penso que errei… Dei-te a parecer que podias ter uma vida que não podes Maria! Tinhas a tua mala da escola muito bonita, feita em madeira, e os teus sapatinhos de camurça, e as tuas fitas de seda que apanhavam as tuas tranças perfeitas… e de onde é que tu pensas que vêm esses privilégios que eu e o teu pai te demos? Vem do nosso trabalho na terra… Tenho calos nas mão com muito orgulho, porque enquanto eu tinha as rachas das mãos entranhadas e as unhas encardidas de terra húmida, as minhas meninas frequentavam a escola com uma dignidade que era dada a poucos…
- Eu sei disso mãe! – Maria ajoelhou-se aos pés da mãe e afagou-lhe as mãos ásperas e escuras. – E eu tenho muito orgulho nas tuas mãos mãezinha. Eu já enho doze anos e sei que tenho de começar a trabalhar… Mas eu não quero o trabalho da terra.
- Mas… - Luzia soltou as mãos num desespero, que demonstrava a sua frustração na falta de entendimento da filha.
- Deixe-me falar tudo o que tenho aqui entalado! – Maria voltou a concentrar-se nas mãos da mãe, entalando-as entre as suas. Eu tenho dinheiro mãe.
- Mas como? Que conversa é essa?
- Deixe-a falar mãe! – Ana interrompeu a progenitora de forma a que Maria não perdesse a coragem.
- Como a mãe sabe eu vou fazendo alguns chapéus que me encomendam.
- Mas não podes viver disso!
- Porque não? Eu tenho já bastante dinheiro guardado! E é isto que eu quero fazer, mãe… Tem de perceber.
- Esta é uma terra pequena. Agora as pessoas acham-te piada, porque os teus chapéus são uma novidade e tu és novinha. As pessoas olham-te com doçura enquanto fores criança, mas quando te tornares adulta ninguém te achará graça.
- A mãe tem razão! – Agora Ana deixou cair o queixo de espanto perante aquelas palavras da irmã. – E é por isso que também estou a aprender costura. Eu quero fazer vestidos de noiva. Todos os anos há casamentos, e é preciso o vestido de noiva e roupa para a mãe da noiva e avós e tia e madrinha e vou ter montes de trabalho e a mãe vai orgulhar-se de mim sempre que houver um casamento nesta ilha.
    Luzia abriu os seus braços experientes à filha mais nova e deixou-se levar um pouco pelos seus sonhos. Sabia que eram exactamente isso… Sonhos… E os sonhos não alimentam o corpo, mas alimentam a alma e alimentam o início de novas possibilidades. E por agora isso basta.
    O abraço entre as três mulheres emocionou Tina que se desfez em lágrimas juntando-se àquele abraço que não lhe pertencia. George focou a sua sensibilidade em Ana e mais do que apreciá-la, ele admirou-a com uma convicção que lhe aumentou o coração de tal maneira que parecia não lhe caber no peito. Ele desejava-a na sua vida. Não por caridade, não por um capricho, mas porque queria uma família real. Uma família que lhe transmitisse aquilo que ele sentia ali naquela cozinha antiga e rural, onde a cumplicidade e o cuidado familiar surgia sem esforço nem imposição.
    George acolheu Ana na sua casa, porque era incapaz ver qualquer mulher em tal estado de vulnerabilidade. Aquele cenário de ver uma mulher grávida caída no desespero de um banco de jardim rendida às partidas da vida e dependente de caridades alheias, transportaram-no para uma infância em que teve o privilégio e a angústia de viver com uma mãe que ele amava acima de qualquer outra coisa que lhe pudesse ocorrer. Emily era recordada por George como uma mãe carinhosa que lhe sorria com facilidade e o olhava com uma adoração que ainda lhe provocava conforto. Os gestos simples, os beijos frequentes, as festas no topo da cabeça, as palmadinhas carinhosas que ela lhe dava no rabo e o sorriso iluminado que acompanhavam estes gestos desapareciam na presença de outras pessoas. Quando George era criança a mãe fechava o rosto para todos os outros seres humanos. Era sempre séria e até um pouco triste. Caminhava na rua com o olhar sempre baixo, não cumprimentando ninguém, nem os próprios vizinhos que pareciam tão unidos entre si. As outras mulheres do bairro juntavam-se em todas as ocasiões especiais, mas George não se recorda de terem alguma vez convidado a mãe a juntar-se a elas. Os aniversários das outras crianças juntavam em grandes festas todos os habitantes do bairro, e George sentava-se na beira do passeio a ver os miúdos correrem de um lado para o outro emitindo gritinhos de felicidade sem que o convidassem para fazer parte daquele mundo agitado e animado que ele desejava tanto. Quando fez dez anos pediu à mãe para convidar as crianças da vizinhança para a sua festa de aniversário e ainda se lembra das lágrimas que se formaram instantaneamente no rosto pálido da mãe face àquele pedido. Percebeu imediatamente que a resposta seria negativa e apesar de lhe ter provocado uma tristeza pesada que o angustiava a uma brincadeira solitária naquele dia, fingiu não se importar. Com o passar dos anos, George assistiu ao definhar do corpo da mãe. De uma mulher alta e com um pouco de excesso de peso, passou a ser uma mulher de trinta e cinco anos frágil e demasiado magra. Os comprimidos diários pareciam já não aliviar-lhe as dores e o corpo murchava a um ritmo que o assustava. Aos catorze anos, George foi forçado a tomar as rédeas da casa face à incapacidade da mãe. Ele não percebia aquela doença e a mãe recusava-se a falar sobre esse assunto. No supermercado sentia que os olhares a vigiavam com desconfiança, mantendo-a sempre à distância. Um episódio em particular marcou-o. Na saída do supermercado do bairro, a mãe teve uma tontura e cambaleou, tropeçando na vizinha da casa ao lado. Tratava-se de mulher alta e apresentava-se irrepreensivelmente bem vestida com um penteado muito elaborado que parecia praticar equilibrismo no cimo do seu cocuruto. George ainda sentiu o estomago revolver-se quando revia na sua memória os olhos da vizinha no momento exacto em que a mãe tropeçou nela. A senhora distinta afastou-a com um empurrão suficientemente forte para aterrar o corpo frágil de Emily no chão. A voz histérica da mulher ainda lhe ecoava na cabeça. “Never touch me again. It should be not allowed to people like you walk in the street… You should not walk in the same place of decent people” (“Nunca mais me toques. Não deveria ser permitido que pessoas como tu andassem por aí… Não devias andar no meio das pessoas decentes”) e virando-se para George que ajudava a mãe a levantar-se, a ilustre senhora continuou. “Close your mother at home. She has the disease of shame, and good people do not have to see it every day. It seems she likes to show is sin…” (“ Tranca a tua mãe em casa. Ela tem a doença da vergonha e não temos de vê-la todos os dias. Até parece que ela gosta de mostrar o seu pecado…). George não reagiu naquela altura e arrependia-se todos os dias de não ter dado a devida resposta àquela mulher insolente. Era como se não tivesse defendido a mãe. Aquela mulher que sozinha o havia criado e protegido de um mundo que não estava preparado para a diferença. George nunca conheceu o pai que morreu antes do seu nascimento deixando apenas uma pensão miserável e uma doença que era mal entendida. Naquele dia, fora do supermercado do seu bairro, com dezenas de olhos depositados na sua aflição, George percebeu de que mal padecia a mãe. A certeza aterrou-lhe no peito com a ferocidade de uma realidade pesada demais para qualquer ser humano. A mãe tinha HIV… Esta doença mal entendida e associada a pessoas duvidosas consumiu Emily debaixo do olhar preocupado de George que ficou completamente órfão com dezasseis anos. Ainda se lembra do último suspiro da mãe em casa quando lhe disse pela última vez que tinha muito orgulho nele. Naquele fim de tarde de Outono o sol baixava deixando entrar uns raios alaranjados por entre as aberturas da persiana e o rosto da mãe pálido já não se contorcia de dores. Parecia quase serena quando o olhou nos olhos e sorriu pela última vez. “I love you George”…
    No funeral da mãe, George contou apenas com uma tia- avó que ele nem conhecia. A mulher receando levar George para junto dela aproveitou o facto de o marido ser um influente militar e encaminhou o sobrinho para uma escola militar. Sem saber, a senhora proporcionou um futuro àquele sobrinho e fez com que George soubesse entender melhor a palavra ajuda. Devemos estar atentos ao mundo que nos rodeia. É tão fácil estender uma mão. Não precisamos de actos demasiado grandiosos e elaboradamente difíceis para ajudar. A tia proporcionou-lhe sem qualquer tipo de dificuldade uma ajuda preciosa para o seu futuro, apenas porque não lhe virou as costas. Sem este acto demasiado fácil para a tia, a vida actual de George teria sido muito difícil. Este é o verdadeiro sentido da ajuda. Um acto que está ao nosso alcance pode proporcionar ao outro um rumo que lhe era impossível. George praticou um acto que lhe era fácil com Ana e tornou o rumo dela possível. E agora era Ana que lhe estava a proporcionar ajuda, direccionando-o para uma família que ele tanto desejava.

domingo, 18 de março de 2012

CAPÍTULO XXII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XXII

    Os músculos palpitavam a cada novo esforço. Os braços bem delineados erguiam-se armados de uma enxada que caía numa força potente fundindo-se com a terra desavergonhadamente. O suor molhava-lhe a camisa branca colando-a a um peito duro, e Ana não conseguia desviar os olhos daquele corpo perfeito. A terra era revolvida e sachada pelos homens preparando-se assim para receber as próximas sementeiras e transplantações. As mulheres estendiam sementes de melancia e abóbora de forma a secarem ao sol. George não se poupava aos trabalhos do campo, agradecendo no seu íntimo ter esta actividade para lhe aliviar a tensão que sentia desde a manhã do dia anterior. Ainda lhe doía o peito da dor que sentiu quando seguiu o olhar vidrado de Ana no adro da igreja e encontrou um homem alto e demasiado bem-parecido, para quem gosta do tipo. Soube imediatamente que era Francisco, e uma onda trémula de violência trespassou-lhe o corpo. Ana manteve-se hirta ao seu lado com a mão encaixada na curva do seu braço, mas a magia que se havia criado entre eles quebrou-se, e apesar do seu sorriso continuar aberto, o seu olhar fechou-se. Francisco não libertou Ana do seu olhar durante todo o acto religioso e George adivinhou-lhe uma sombra de arrependimento que o perseguia e que naquele momento se começava a dissipar em esperança.
- Oh Ana! Ana! – Tina equilibrava um conjunto de copos com limonada num tabuleiro. Ela ensinara Luzia a aproveitar os limões para fazer limonada, e agora todas as oportunidades eram usadas como desculpas para mais um copo.
- Fica aí Tina, que nós vamos aí refrescar-nos! – Ana sorria ao vê-la em dificuldades em cima daqueles sapatos de verniz com um salto de sete centímetro e uma fivela desconfortável.
    A limonada foi uma boa desculpa para um intervalo merecido. José olhava pelo canto do olho o futuro genro e sorria intimamente. O homem com uma elevada posição no meio dos militares que baixava a sua guarda snobe e pegava numa enxada com a dignidade dos humildes merecia todo o seu respeito.
- Hello George! – Ana tentava impressionar o noivo com o pouco inglês que começara a aprender com Tina.
- Hi! – Ana sentiu-se decepcionada com a reacção dele, mas não desistiu. Encostou-se no muro ao lado dele e tentou captar-lhe um olhar.
- How are you? (Como estás?)– Ana sorriu de alivio assim que terminou com sucesso a frase que lhe enrolava a língua. George arregalou os olhos na sua direcção e riu-se. Sentiu uma alegria infantil quando percebeu que Ana estava a fazer um esforço para comunicar na língua dele.
- Are you speaking english? Why? It’s because of me? (Estás a falar inglês? Porquê? É por minha causa?) – George precisava de ouvir um sim como resposta. Precisava de um sinal, que não estava a perdê-la, que não se estava a impingir, que não estava a tirar partido de uma fragilidade de Ana para seu próprio benefício.
- Tem calma homem! Que eu ainda não domino essa língua! – Ana sorriu-lhe iluminada por uma claridade de Agosto que lhe emoldurou o rosto e George não resistiu, pousando a palma da sua mão sobre aquele rosto suave. Sentiu Ana retrair-se e sem perceber se isso era um bom sinal ou não, George deslizou a mão até à base do seu cabelo e puxou-a para si. Ana não resistiu e não desviou o olhar. Todos os pensamentos esvaíram-se e restou apenas o desejo da antecipação. George beijou-a com suavidade e paciência e quando a sentiu render-se totalmente num gemido tremido, George aprofundou o beijo e encorajou-se quando os braço de Ana lhe rodearam o pescoço. Foi George que se afastou de uma forma um pouco brusca. A imagem de Francisco e do olhar que ambos trocaram na entrada daquela igreja não o abandonava e invadia-lhe a memória de uma forma libertina.
- Viste o George? – Ana sentia-se confusa com aquela atitude. Talvez tivesse feito alguma coisa mal.
- Não! Porquê Ana? – Glória despejou as sementes que tinha no avental dentro de uma pana.
- Sinto-me incapaz Glória! – Ana sentou-se na terra e soltou-se à fraqueza que a perseguia.
- Então Ana? Devias estar feliz! Vais casar-te daqui a quinze dias! – Glória sentou-se ao seu lado e recebeu-a nos seus braços embalando-a. – Fala comigo Ana.
- Eu… Eu nem sei o que pensar! Eu vou casar-me com um bom homem Glória!
- E isso não é bom?
- Ele gosta muito da Jewel!...
- Isso também me parece bom.
- Ele estendeu-me ambas as mãos quando todos me viraram as costas… E vai casar-se comigo!
- Tens de ser mais clara Ana! – Glória tentava acompanhar o raciocínio da irmã.
- Ontem vi o Francisco! Queria muito falar-lhe… Mostrar-lhe a nossa filha linda… Contar-lhe a forma como ela agarra o meu dedo sempre que lhe canto ao ouvido. Queria mostrar-lhe como ela tem o seu sorriso que termina numas covinhas…
- Já começo a perceber-te…
- Não… não percebes! Eu amei o Francisco… Amei-o muito! E agora não sou capaz de lhe guardar rancor… Amei-o tanto que me custa privá-lo das maravilhas de uma filha que ele ajudou a gerar…
- Ele abandoou-te quando mais precisavas! Virou-te as costas… Nunca te esqueças Ana… Eu odeio-o!
- Mas como posso odiar o único homem que me amou?
- Minha querida Ana, como te enganas! Amor não é só dizer lindas palavras que deslumbram o coração. Amor não é um acariciar mais profundo que faz o coração acelerar. Amor não é uma promessa eternamente por cumprir… Amor é um sentimento muito mais construído do que sentido. Amor é cuidar com preocupação. É dar todos os dias um pouco mais de nós com a felicidade do altruísmo. É ceder todos os dias um pouco mais do nosso espaço, sem nunca o reclamar de volta. Amor, Ana, é acordares todos os dias ao lado de um homem que te dá a segurança de uma eternidade de respeito, companheirismo e cumplicidade.
- Que tristeza Glória!...
- O que é que é triste Ana?
- Nunca fui amada… Tenho uma filha… Vou casar-me e nunca fui amada.
    A buzina de um carro parado na estrada fez com que as irmãs silenciassem a conversa numa curiosidade simples. George saiu de dentro do carro e acenou-lhes. Ana levantou-se e limpou as lágrimas substituindo o choro pelo espanto. Correu ao encontro de George.
- Mas onde raio é que desencantaste isto? – George sorriu-lhe adivinhando a pergunta, mas sem possibilidades de resposta.

    O dia seguinte fez-se acompanhar das diligências próprias de preparação de um casamento. George tornara-se bastante próximo de José, apesar de não partilharem a mesma língua. Entendiam-se num silêncio calmo que os identificava, e quando George pegou em Ana e Jewel e as levou a passear no carro que afinal era emprestado por um antigo oficial das forças armadas que tinha optado por viver a sua velhice naquela ilha, José não se opôs. Pararam na casa da Tia Espirito Santo para apanharem Tina e John e foram conhecer a ilha. A viagem até à vila das lajes fez-se numa alegria contagiante. Tina incitava Ana a umas palavras em inglês provocando um riso generalizado.
- Agora vais dizer: eu vou casar-me com o George. I´m going to marry George… Vá, agora diz tu Ana.
- Aima gonga to mariete George! – A gargalhada instalou-se.
- Eu vou casar Ana. – A tentativa de George calou a gargalhada inicial. Ana olhou aquele homem com uma admiração e respeito que lhe martelava no peito. Ele estava também a fazer um esforço.
- Tina, how do i say, i’m a lucky man?
- Eu sou um homem de sorte!
- Eu sou um homem de sorte! – O sorriso que George dirigiu a Ana enquanto soletrava aquelas palavras era um acto de amor. Agora Ana percebia a diferença. A paixão sente-se instantaneamente, mas o amor cultiva-se até cativar o outro num ciclo perfeito de respeito, companheirismo, cumplicidade e desejo. - Pára aqui George! – Ana despertou daquela envolvência que George lhe provocava, quando avistou a casa do presidente da camara. A casa onde a mulher mais determinada que alguma vez conhecera sucumbira à morte em prol de um amor…
- Tina leva o John e o George a dar uma volta à vila que é muito bonita, que eu preciso de fazer uma visita pessoal.
- Can i go with you? – George não queria correr o risco de deixar Ana sozinha. Amedrontava-lhe a ideia de se ir encontrar com Francisco. Sabia bem o que tinha oferecido a Ana e o que ela tinha aceitado, mas era-lhe impossível não desejar mais.
- Ele quer ir contigo querida! – Tina mostrava pressa na decisão. Olhava à sua volta e sentia necessidade de conhecer melhor aquele sítio que parecia parado no tempo transmitindo o mistério de um lugar mágico regido por uma era longínqua.
- Então vamos George! – Ana estendeu-lhe a bebé que ele recebeu com satisfação. O caminho a pé fez-se sem pressas com os olhares perdidos nos braços de basalto que furavam calmamente o mar recebendo em troca um batimento violento que se esvaia numa espuma resignada.
    Ana vacilou quando se encontrou em frente à casa de Fátima, mas abriu o portão e fora daquela porta verde que lhe causou tantos receios estendeu o pulso e bateu. A porta rangeu quando um homem a abriu. Ana reconheceu o senhor Joaquim naquele rosto triste e envelhecido.
- Ana! Que surpresa! Entra. – A porta abriu-se completamente e Ana aceitou o convite.
- Obrigada! Quero apresentar-lhe o meu noivo, George!
- Ah! Muito prazer! – O senhor Joaquim fez um gesto para que se sentassem. – Já tinha ouvido dizer que ias casar. Fico muito feliz por ti Ana.
- Obrigada. E a D. Alice? – O silêncio que se seguiu demonstrou um constrangimento ao qual Ana se rendeu arrependendo-se da sua pergunta.
- Desde aqueles acontecimentos infelizes que ela encontrou consolo… - O senhor Joaquim fez uma pausa parecendo querer encontrar as palavras certas. – Consolo num tipo de quotidiano diferente.
- Não estou a perceber. Ela está bem?
- Sim! Eu vou levar-te até ela. – Ana e George seguiram o homem até um quarto situado no fundo do corredor. Quando a porta se abriu, Ana encontrou a mulher de traços rígidos que se lembrava, mas havia qualquer coisa diferente. Um brilho de loucura que lhe trespassava o olhar falsamente alegre.
- Ana! Minha querida! Mas que prazer ver-te novamente! Entra… Vem ver o vestido que estou a terminar para a Fátima. – Ana sentiu o choque das palavras e procurou uma resposta no olhar do senhor Joaquim, que se limitou a encolher os ombros.
- Um vestido para quem? – Ana queria confirmar o que tinha acabado de ouvir.
- Para a Fátima. Ela casa-se daqui a quinze dias e ainda tenho toda a bainha do vestido para fazer. Ai ela está tão ansiosa, nem imaginas…
- Eu vou casar-me também! – Ana tentava dar alguma realidade àquela conversa.
- Ai que bom querida! Sempre vais casar com o Francisco? – Ana sentiu que George estremecer face àquelas palavras. Ele já percebia a palavras casar e Francisco e não lhe agradou ouvir ambas na mesma frase.
- Não D. Alice. Eu não vou casar com o Francisco, pode ficar descansada. – Ana não queria causar mais transtorno na mente debilitada daquela mulher.
- Então vais casar com quem?
- Com este homem aqui. Ele chama-se George, mas não fala português.
- Ai, mas que homem lindo Ana! E vê-se nos olhos dele que ele gosta realmente de ti!
- Acha mesmo?
- Ele desenvolveu por ti aquele tipo de sentimento que transporta em si mesmo a garantia de uma felicidade plena sem contratempos ou desilusões. É um sentimento profundo que liga as pessoas pela eternidade. É exactamente como o sentimento que liga a minha Fátima ao seu Manel… E eu fico tão contente com o casamento deles. Agora tenho mesmo que terminar o vestido. Sabes como é importante para uma noiva o seu vestido.
- Claro, D. Alice! Entrego-lhe o convite do meu casamento. Gostava muito que fosse.
    De volta à sala, Ana deixou-se cair incrédula no sofá. A D. Alice autoritária que tantas vezes a intimidou, estava reduzida e uma senhora demente.
- Não fique assim Ana! A Alice encontrou um consolo neste mundo que ela criou. – O senhor Joaquim Percebia a mulher. Por vezes invejava a forma como ela tinha encontrado tranquilidade naquela realidade distorcida que ela criara. Mas o corpo de uma mente que cria uma realidade utópica e renega tudo o resto, só sobrevive se por perto houver um mente consciente que cuide dela. E era esse o papel do senhor Joaquim.
- Mas daqui a quinze dias ela espera ter um casamento que não vai acontecer.
- Nesse momento logo vejo o que faço. Por agora ela está a fazer o vestido.
- E como é que ela tira as medidas? Como é que ela justifica o facto de Fátima nunca fazer provas?
- A tua irmã Glória vem cá todos os sábados e é ela que faz as provas. Alice convenceu-se que a Fátima esta a estudar no Faial e só vem para o casamento…
    Ana saiu daquela casa com algo mais do que saudade de Fátima. Depois do choque a situação, Ana teve a sensação de que Fátima estava a olhar pela mãe. Tinha arranjado uma forma de lhe suavizar a dor provocada pela sua morte intencional.
    Ana e George juntaram-se a Tina e John e sem palavras desnecessárias apreciaram aquele ponto exacto em que o mar e a terra se confundem demarcando a fronteira pouco exacta entre um azul imenso que esconde mistérios e vidas e a base de uma montanha que se prolonga num alcance magistral, tentando uma ligação presunçosa entre mar e céu.

sábado, 10 de março de 2012

CAPÍTULO XXI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XXI

    O Barco erguia-se no mar numa imponência arrogante e deslizava sobre aquelas águas calmas de Agosto que o acolhiam na simpatia saltitante de alguns golfinhos. Ana animou-se quando passou ao lado da ilha de S. Jorge que trespassava o mar como uma espada longa, verde e húmida. As fajãs convidavam envergonhadas a um disfrute descarado de tranquilidade e as encostas intimidavam os aventureiros a atreverem-se. Ana sentiu a emoção da antecipação da sua chegada. Sentia tantas saudades dos pais e das irmãs, do cheiro da terra lavrada, de um mergulho no pesqueiro da madeira…
    Quando a ilha do Pico se libertou do longínquo horizonte e se mostrou na sua imensidão, Ana sentiu um aperto no peito. O triângulo era imperfeito visto naquele ângulo, mas igualmente deslumbrante. Os braços de basalto abraçavam o verde húmido de uma terra fértil que subia numa união culminante num único ponto, o cimo da montanha.
- Esta é a nossa terra Jewel! – Ana depositou um leve beijo na cabeça da bebé que forçava o equilíbrio da cabeça de forma e observar com uns olhinhos arregalados. George transpirava de forma heróica o calor de Agosto, mas não se arrependia de ter vestido a sua farda. Sentia um nervosismo infantil e uma vontade adolescente de impressionar os pais de Ana, para além de um instinto de homem adulto de impor respeito, protegendo assim Ana de comentários maldosos que a possam magoar de alguma forma. Ele vai adoptar o seu ar militar pouco afável, intimidando desta forma as mentes fracas a atrevimentos de língua. 
    O barco contorna a extremidade da ilha e Ana tem o vislumbre da Vila da Lajes que parece adormecida na base daquela montanha. O porto transporta a animação típica da chegada de um grande navio. Os braços elevam-se e os nomes gritados misturam-se. Ana deposita Jewel no colo de George e debruça-se numa procura quase desesperada de caras familiares. A primeira que consegue avistar é Maria que pula como uma macaca de forma a ser avistada por qualquer pessoa. Ana chora… Chora uma emoção que transborda amor… Um amor incondicional e inviolável. Um amor leal que permanece intacto mesmo nas dificuldades, na distância, nas angústias. Um amor que deveria condicionar todos os outros sentimentos, pois só assim deixaria de haver atitudes medíocres e sentimentos inferiores. A humanidade ficaria munida de uma força de razão iluminada e impenetrável a dúvidas pouco claras.
    Ana correu por entre as pessoas alheia aos olhares admirados e aos sussurros crescentes e sedentos de aumentar aquele novo mexerico. Mas George seguiu-a com Jewel ao colo absorvendo cada olhar de soslaio, cada sorriso maldoso, cada movimento de lábios que continham uma calúnia. O abraço que recebeu Ana não deixou de penetrar a sensibilidade de George, que encontrou uma família unida num emaranhado de braços, lágrimas e palavras baralhadas. Como era possível que os outros olhos daquele cais não conseguissem ver aquilo que ele via? Como é que a vontade de depreciar o belo é mais forte do que a vontade de o admirar? Quem tem a capacidade de se abrir ao belo, facilmente ultrapassa esse patamar e chega ao maravilhoso, mas quem não tem essa capacidade, nunca passa do medíocre.
- Este é o George, o meu noivo! – Ana ainda sentia que aquela palavra não lhe pertencia. – Estes são os meus pais, José e Luzia. – George esticou a mão para um aperto de mão formal, que intimidou Luzia. José devolveu o aperto de mão com o mesmo vigor. – Esta é a minha irmã Glória e o marido João… - George sorriu e apertou as mãos, apreciando o sorriso fácil de Glória. – E esta é a pequenota da família, a Maria! – George estendeu a mão, mas Maria indignou-se e deu-lhe uma palmada na mão. George nem teve tempo para se admirar, uma vez que os braços de Maria já lhe haviam rodeado a cintura.
- Tu és muito bonito! – Maria estava encantada com aquele militar alto e vigoroso, que sobressaia naquele cais de gentes iguais. – Não tens nenhum irmão? É que daqui a nada já vou ter idade para ter um pretendente. – Maria sorria-lhe e George gostou dela imediatamente.
- Tina! John! Estamos aqui! – Ana abanava o braço elevado num aceno. Os amigos tinham ido buscar a bagagem. Arrastaram as malas e um baú com a ajuda de uns rapazitos cujos olhos luziram quando receberam umas moedas de reis como pagamento. Os cumprimentos foram longos e Tina tomou o braço de Luzia como se fossem amigas de longa data e começaram com as combinações do casamento.
- Vamos! O João leva este carro de bois com a bagagem! – José apressava as conversas, porque ainda tinham um longo caminho pela frente. – A Glória vai na carruagem com o marido, a Tina e o Jona.
- Jonh, pai! – Ana partilhava a gargalhada geral provocada pelo nome mal pronunciado.
- Ou isso… - José não queria dar parte fraca, mas não sabia bem como ia conseguir chamar pela neta e pelo futuro genro. – Tu, o Dejorge, a jaiele e a Maria, vêm comigo e com a Luzia.
    Tina ria-se à gargalhada por tudo e por nada. Sentia-se deliciada com aquele meio de transporte tão caricato, e quando reparou que o boi ia andando e deixando um rasto de bosta desavergonhadamente, sentiu que ia explodir de tanto rir.
    No carro de bois que segui na dianteira, a conversa era de saudade.
- Oh filha! O teu noivo é um homem muito bonito! E vê-se que é carinhoso com a menina. – Luzia admirava o olhar de ternura que George dedicava á neta enquanto ela dormia. – Mas tenho um aperto no peito…
- Não ouças o que ela diz Ana! Eu já lhe disse que esses apertos são da roupa que lhe está a ficar apertada, mas ela não me acredita… - Maria ainda não tinha largado o braço da irmã. Assim que Ana saltou para o carro de bois, Maria saltou logo de seguida, tomando o lugar a seu lado e entrelaçando o braço no dela, numa atitude possessiva. George percebeu com alguma satisfação a personalidade forte de Maria que jogava com ele a um braço de ferro invisível.
- Eu também tenho um aperto no peito mão! – Ana sabia que ali podia ser sincera. Depois de tudo o que tinham passado juntos, não havia lugar a fingimentos ou falsas forças. Ela podia fraquejar, ter dúvidas.
- Olha-me esta também… eu alargo-te as blusas que isso é de teres o peito inchado de amamentares. – Maria não queria correr o risco de perder aquela festa de casamento. Para além de casar a irmã, de certeza que vai haver daqueles bolos muito bonitos que ela vê nas fotografias dos casamentos dos primos americanos. Os americanos fazem sempre doces para um batalhão, e o George é americano, logo a perspectiva de uma doce casamento é muito sedutora.
- Não é isso! Eu sei que é uma boa solução para mim… não podia desejar melhor futuro para mim e para a minha filha…
- Então o que é que te está a angustiar? – Luzia tentava perceber aquele olhar baço que a filha exibia.
- É demasiado bom para mim! Mas sinto que estou a arrastar o George para um problema que não é dele e não lhe estou a dar nada em troca. Eu estou a beneficiar desta situação e o George está a ser penalizado… Não consigo explicar bem… Mas o que é que ele pode encontrar de bom nesta história?
- Parece-me que ele já encontrou… Tu é que ainda não estás a conseguir ver Ana… Mas um dia verás e as coisas vão ficar mais fáceis. – José pronunciou aquelas palavras sem desviar os olhos do caminho.
- Mas tu não o amas? – Luzia começava a sentir-se inquieta.
- Eu… Eu gosto muito dele. Sinto um carinho muito grande… Uma gratidão enorme… O que sinto por ele é na verdade um respeito imenso pela pessoa que ele é.
    Luzia sorriu-lhe e trocou um olhar cúmplice com o marido. Aquilo bastava-lhe. Acreditava mais no respeito do que na paixão. Numa relação em que existe respeito, a paixão tardia é recebida com mais sabedoria e o proveito que daí advém é incomensurável.
    A Tina e o John foram encaminhados para a casa da Tia espirito Santo, uma vez que não havia espaço suficiente na casa dos Ferreira. A hora tardia fez com que todos abdicassem da ceia para se deitarem e descansarem. Luzia fez questão que a bebé ficasse no seu quarto naquela noite, desculpando-se com a fadiga de Ana, mas todos lhe adivinharam a intensão.
 - Tinha tantas saudades deste quarto, desta cama… De ti, pirralha! – Ana fazia cócegas a Maria por debaixo da colcha.
- Eu também senti muito a tua falta! – Maria enroscou-se na irmã. Ela estava diferente. Já não tinha aquele ar inocente que a caracterizava. Estava mais mulher… e vestia-se muito melhor, graças a Deus.
- Tenho medo Maria!
- Do quê?
- De ir viver para a América. A Tina fala-me daquela terra e eu não percebo nada do que ela diz. Parece que existe tanta gente que as pessoas cruzam-se na rua, mas não se conhecem todos.
- Não sejas tonta! Vais para um meio onde as pessoas usam batom e laca todos os dias… Quem me dera!
- Preferia continuar na Terceira, mas o George tem de voltar e eu…
- Pensa em como vai ser bom para a bebé crescer num lugar onde ela pode escolher um futuro. Ela vai crescer sem ter de acordar com as galinhas para ir ordenhar as vacas antes de ir para a escola. Vai estudar em cadernos de papel, em vez das pedras de xisto que nós temos. E quando terminar a escola, não terminam as opções dela, e ela pode escolher ser médica ou advogada como nos romances que os tios nos enviam… E pode tornar-se uma mulher independente e usar calças… E pode fumar e beber vinho com amigos…
- Que idade é que tu tens? – As duas começaram a rir enquanto se aconchegavam nos braços uma da outra, e continuaram a cochichar até adormecerem.
    A azáfama própria de um domingo de manhã fez Ana acordar sorrindo. Tinha saudades daquele preparo domingueiro e vestiu-se apressadamente desta vez sem a ajuda de Maria, provocando uma certa mágoa nesta. Luzia reuniu todos na cozinha e inspeccionou um a um. Após ter dado o seu aval abriu a porta e pediu que a seguissem.
- Esperem! Não vamos comer qualquer coisa primeiro? – Tina sentia-se esfomeada. Tinha adormecido na noite anterior de cansaço sem sequer ter comido e sentia-se com um buraco no estômago.
- Minha querida, não pode comer nada antes da missa! – Luzia explicava-lhe pacientemente, aquilo que qualquer cristão deveria saber de forma intuitiva. – Só podes comungar em jejum… - E voltando-se para o portão. – Agora vamos embora.
    Ana e Maria trocaram umas risadinhas, enquanto Tina bufava. A canada parecia mais inclinada do que Ana se lembrava, ou seria o efeito dos sapatos de salto alto que lhe provocariam aquela sensação. Tina segurava-se no braço do marido caminhando sem vacilar com a segurança de que ele não a deixaria cair. Ana queria entrelaçar o seu braço no de George. Sentia esta necessidade com um força quase física. Ele nunca mais a beijara, e ela lamentava este facto. Recordava aquela tarde e aquele beijo com uma precisão repetida insistentemente e desejava repetir, mas não podia exigir mais a George do que aquilo que ele já lhe oferecia. Ele começava a encaixar-se na sua vida com a mesma naturalidade com que a chuva se funde com a terra, mas Ana queria mais. Ela sonha com um casamento cúmplice, com uma química que lhe escalde as faces e lhe provoque arritmia no batimento do seu coração. George está a absorver-lhe as preocupações e constrangimentos que uma mãe solteira acarreta, mas ela quer mais do que partilhar as suas dificuldades. Quer envolver-se sentimentalmente. Quer estender-lhe a mão num mau momento e beijá-lo nos momentos de felicidade. Quer acarinhá-lo… Quer amá-lo… e quer ser correspondida. Não sente que seja demasiado pretensioso, este seu desejo. Ela não é menos mulher, só porque uma sociedade fechada assim o afirma. Ela tem mãos, pernas, cabeça, bons momentos e maus momentos, e nenhum destes factores a define individualmente.
    O adro da igreja continuava com a cal branco dos muros gasto e o basalto que os definia liso. Sobre a relva seca o rebanho do padre Inácio trocava impressões e mexericos apressados absorvendo o máximo de informação antes da missa. Luzia subiu as escadas de basalto de braço dado com José e com um sorriso aberto a Glória que já os esperava no adro. Foi demasiado notório o corte repentino nas conversas corriqueiras e os olhares trespassaram uma acusação fria e caíram sem piedade sobre Ana que alcançou Glória com um abraço onde aproveitou para esconder o rosto por uns segundos, apenas o suficiente para se recompor.
- Oh George! Deixa que fico com a menina durante a missa. – Glória pegou na sobrinha derretida e piscou um olho cúmplice a George, enquanto lhe empinava o queixo para o lado de Ana mostrando-lhe naquele gesto onde era o seu lugar. George aproximou-se de Ana e pegou-lhe na mão. O seu corpo reagiu imediatamente ao toque e George encaixou aquela mão perfeita na curvatura do seu cotovelo. Sorriu-lhe e inclinou-se sussurrando-lhe ao ouvido.
- Don’t worry! I’m right her by your side, and i’ll never leave you… - George terminou aquele murmúrio com um suave beijo na face de Ana. Esta fechou os olhos e deixou que aquele arrepio de prazer lhe percorresse a espinha sem pressa.
- George!
- Hum!...
- Eu podia amar-te! – Os olhos de Ana penetraram o olhar de George forçando um entendimento que tardava. E quando o momento se perdeu e Ana desviou o seu olhar, encontrou outros olhos que ela pensava já ter esquecido… Francisco.

domingo, 4 de março de 2012

CAPÍTULO XX - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XX

    O sol aquecia agradavelmente as costas curvadas sobre os canteiros de culturas que eram mimados pelas mão experientes de Ana. O cheiro matinal da terra húmida entranhava-se nas suas narinas que se dilatavam numa ânsia saudosa. Ana cantarolava uma felicidade despreocupada e agradecia intimamente a sua nova vida. Tinha uma família que provara amá-la acima de qualquer constrangimento. Os seus amigos eram leais e não se confundiam com as amizades corriqueiras de ocasião. A lealdade é a melhor das virtudes em qualquer relação. É um acto de entrega pleno e puro, sem requintes de engano ou perversões de abuso. É o garante de beneficiar do melhor de todos os outros sentimentos positivos. É uma tranquilidade para quem é seu merecedor e um privilégio para quem a dedica.
- Ana! Onde é que te meteste mulher? – A voz de Tina soou estridente no interior da casa. Ana largou o ancinho e entrou pela porta traseira sacudindo a terra das mãos.
- Estou na cozinha!
- Ah sua labrega! – Tina contornou a mesa abriu um armário e tirou um frasco de vidro que continha bolachas de manteiga. – Não tens nada para me mostrar?
    Ana ergueu uma sobrancelha duvidosa, como se procurasse uma resposta lógica àquela pergunta.
- Oh! Anda lá! Não faças mais suspense…
- Juro-te que não sei do que estás a falar Tina! – Ana já tinha colocado uma chaleira ao lume e esperava que ela apitasse. Desde o seu primeiro dia naquela casa que se apaixonara pela chaleira que apita quando a água ferve, como se gemesse uma agonia escaldante.
- Ora! Do anel…
    Ana mostrou-se surpresa. Já nem se lembrava do anel.
- Ah! Já sabes que o George me ofereceu um anel?
- Não te faças de tonta e mostra-me o anel. – Ana obedeceu de imediato àquela ordem sem perceber bem o motivo para tanto entusiasmo. Entrou no seu quarto com um excesso de cuidado para não acordar Jewel que descansava de uma noite mal dormida. Pegou na pequena caixa e levou-a até à cozinha contrariada. Não lhe apetecia partilhar aquele anel com Tina. Mas no momento seguinte arrependeu-se deste sentimento egoísta com uma pessoa que se abriu a ela sem escrúpulos ou condições.
- Aqui o tens, mexeriqueira! – Ana atirou-lhe a caixa e dirigiu-se à chaleira que chiava, preparando o chá que acompanhariam as bolachas de manteiga, enquanto Tina emitia exclamações excitada.
    George entrou na cozinha conduzido pelas risadinhas agudas de Tina. Roubou-lhe a bolacha intacta que ela tinha na mão e comeu-a com vontade.
- What’s up? ( O que se passa?) – Tina piscou o olho a Ana de forma incompreensível e retirou-se com um sorriso malandro. George bebeu o chá, levantou-se, contornou a mesa e colocou-se atrás de Ana que lavava a louça com uma mão apoiada na bancada alva. A proximidade provocou-lhe um arrepio e o coração começou a pulsar-lhe nos ouvidos. Não evitou o impulso de pegar numa mecha de cabelo de Ana e enrolá-lo no dedo.
- I´m in love with you! ( Eu estou apaixonado por ti!) – As palavras sussurradas juntou ao pescoço de Ana fizeram com que os seus músculos se retesassem e num impulso de afastar o que quer que fosse que ele lhe provocava nos nervos, Ana afastou-se passando por baixo do seu braço.
- Não tens que lavar nada! Já está tudo lavado, não vês? – Ana pegou num esfregão e começou a esfregar a mesa no lado oposto. George atravessou a cozinha, sentido um certo prazer machista naquele constrangimento que provocava em Ana e voltou a colocar-se atrás dela.
- I want to protect yourself from people like professor Martins… That´s why I want to marry you. (Quero proteger-te de pessoas como o professor Martins… é por isso que vamos casar.) – George enterrou o seu rosto no cabelo de Ana e inalou o cheiro do champô de camomila que já se tornara familiar. – You are so beautiful… ( És tão bonita…)
    Ana virou-se com intenção de voltar a afastar-se, mas os rostos ficaram demasiado perto e os pensamentos entorpeceram-se. George rodeou-lhe a cintura e encostou-a mais a si. Os olhos não se despregaram e as palavras deixaram de fazer sentido. Os lábios encostaram-se timidamente e voltaram a afastar-se apenas o suficiente para George ver a reacção no rosto de Ana e esboçar um sorriso ao ver um brilho de paixão acender-se. Ainda era pequeno, mas George sabia ser paciente, só precisava de um incentivo e acabara de o ter.
- One day you will be completely mine! (Um dia serás apenas minha!) – E pegando no anel que descansava em cima da mesa, George colocou-o no dedo anelar de Ana beijando-o seguidamente.
    Finalmente, os olhos de Ana arregalaram-se de compreensão. Ela saiu daquele estado de dormência e afastou-se.
- Não entendo nada do que estás para aí a dizer! Vou buscar a Jewel e… Ou ela agora está a dormir… mas alguém tem de lavar a roupa que está no cesto. – Ana afastou-se numa atrapalhação de gestos e palavras apreciadas pelo corpo de George que se encostara à bancada a rir desavergonhadamente.
    Ela estava noiva! Agora podia perceber isso. Existem compreensões que ultrapassam as palavras e ela possuía agora essa compreensão. Um homem que ela mal conhecia e que não compreendia, era capaz de a proteger e defender melhor do que o homem que ela amara e a quem se entregara. A vida tem desenvolvimentos misteriosos e convoca-nos a sentimentos confusos e grandiosos quando tudo parece perdido. Ela sentia-se amparada por um estranho. Por um lindo estranho…
    A vida tem estratagemas que se emaranham de tal forma que envolvem a mente dos que sofrem numa maresia de desentendimento, mas quando o emaranhado se desemaranha, tudo parece lógico e natural. E de repente o caos dá lugar ao maravilhoso… Como saberíamos que o maravilhoso é maravilhoso se nunca tivermos visto o caos?
    Ana sentia uma necessidade de rir alto, de exibir a sua felicidade repentina e correu com esta intenção para a casa de Tina. Em frente à porta da amiga, conteve-se ao ímpeto de abrir a porta de rompante e bateu suavemente, esperando o convite para entrar.
- Tina! Estou noiva! – Ana atirou-se aos braços da amiga rindo e chorando ao mesmo tempo.
- Bem! Era essa a revelação que eu esperava à pouco em tua casa! – Tina sentiu-se confusa com aquele estado de histeria da amiga e conduziu-a até ao seu sofá. – Bem agora que estás mais calma, explica-te…
- Eu estou noiva!... – Ana não conseguia dizer mais nada. Esta era a ideia que lhe preenchia a mente como uma esponja que absorve água.
- Sim! Isso, eu já sabia! Por isso é que fui a casa do George para ver o anel… - Tina tentava perceber. – Mas o que mudou desde a minha ida á tua casa para agora?
- Como é que sabias que eu estava noiva?
- Ora! Porque o George contou ao John e ele contou-me a mim… Não estou a perceber o que se passa contigo…
- E soubeste quando?
- Ai Ana! Soube ontem… Não foi ontem que o George te deu o anel e tu aceitaste?
    Ana começou a rir desalmadamente para desespero de Tina, que forçava o seu instinto a encontrar alguma atitude apropriada.
- Eu só soube agora! – Ana leu um brilho de dúvida no olhar de Tina. – E não sei bem o que pensar disso… Acho que preciso de falar em voz alta… Eu estou noiva! – Ana levantou-se e gritou e ficou à espera do efeito que o eco da sua voz provocava nela.
- Mas ele ofereceu-te um anel de noivado… Ontem… - Tina tentava perceber onde se tinha dado o equívoco.
- Sim! E eu aceitei, pensando que era apenas um presente para me compensar da humilhação que o Professor Martins me fez passar no baile. – Tina arregalou os olhos face ao entendimento. Ana aceitou o anel, mas não o pedido que lhe estava intrínseco. – E agora que percebo o que realmente aceitei, sinto-me muito feliz, mas ao mesmo tempo…
- Tens dúvidas, não é querida? – As duas amigas sentaram-se na beira do sofá e encararam-se. A mão de Ana foi encaixada pelas mãos de Tina e a conversa iniciou-se cautelosa.
- Eu sei que és amiga do George, mas eu não tenho mais ninguém com quem falar.
- Eu sou muito amiga do George, mas também sou tua amiga! Diz-me o que te consome.
- Eu sinto-me feliz… Sabes Tina, eu sinto-me defendida. Sinto-me segura e até mesmo muito honrada por merecer este gesto tão nobre de um homem com o George… Vaidosa e reconhecida!... É exactamente assim que me sinto, vaidosa e reconhecida… Sinto um alívio perante a perspectiva de poder caminhar de cabeça erguida novamente. Imagina só o que seria voltar à minha ilha pelo braço de um homem como o George… Ai como aquela gente se iria retroceder para conseguir um cumprimento meu. Tirar este peso que me foi imposto por seres alheios a mim, seria bom… Seria muito bom… Mas é uma forma fácil e cobarde de acabar com o meu problema… Mas principalmente seria injusto para George…
- O George sabe muito bem o que está a fazer!
- Será que sabe?
- Ele está a fazer isto exactamente para te proteger Ana! É evidente que tem sentimentos por ti, mas isto em concreto ele está a fazer para proteger a mulher por quem ele se apaixonou!... E ele sabe quais são os riscos, e assume-os…
- Queria tanto falar com ele. Sentar-me a tomar um chá e apenas falar, trocar palavras, ideias, sentimentos… Como é que um casamento pode resultar se não existe qualquer tipo de comunicação?
- Diz-me Ana, o George é um bom homem?
- É o melhor dos homens, Tina! Ele é cavalheiro e atencioso. Sempre pronto a ajudar-me. E quando ele entra pela porta dentro a casa enche-se de vida. E é trapalhão… Eu sei que ele transmite aquele ar militar muito seguro, mas devias vê-lo no abrigo do lar… é muito trapalhão, tropeça sempre nas quinas das mesas… Nunca levanta a mesa sem partir um copo… - Ana sorria. – E com a Jewel… Ele é tão meigo com a menina, que me dá a sensação que ela fará gato-sapato dele quando for crescida… - As duas mulheres riam agora descontraidamente.
- E não foi preciso comunicação, como tu lhe chamas para conheceres tudo isso do George… - Tina acariciou as costas da mão da amiga e depois fixou-lhe o olhar esperando uma resposta sem palavras. – Agora diz-me Ana, de quanta comunicação precisaste para te deixares enganar pelo Francisco?
    Ana recebeu o sentido daquelas palavras com o mesmo impacto de uma bofetada. Que estranha forma de enfrentar a realidade. As palavras são o meio mais eficaz de criar ilusões. É nos actos que reside a verdade de cada pessoa.