sábado, 18 de fevereiro de 2012

CAPÍTULO XIX - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XIX

    A noite transpirava humidade e o céu fechou-se timidamente numa escuridão que se sobrepunha ao brilho baço de umas poucas estrelas. Jewel dormia profundamente nos braços quentes de Tina, enquanto esta a embalava e falava num sussurro para Ana.
- Estás linda! – Ana sentiu-se corar um pouco.
- Preferia entrar no baile acompanhada. Não me sinto bem entrar assim sozinha.
- Pois… Mas não te preocupes! Assim que chegares lá vais ter a companhia do George.
    Ana olhava a porta sem se decidir a sair.
- Nunca estive num baile deste! E se eu não o encontrar no meio daquela gente?
- Oh querida! Se não o encontrares, ele encontra-te a ti com toda a certeza.
    Ana despediu-se da filha e saiu abraçando e écharpe enrolada à volta dos ombros. O carro percorreu a curta distância numa silêncio cerimonioso que só era amaciado pelo olhar envergonhado do jovem militar que vigiava pelo retrovisor de forma mal disfarçada a acompanhante do General. O carro preto parou em frente à porta e Ana atrapalhou-se, recuperando a calma apenas quando o jovem militar deixou escapar uma risadinha, fazendo Ana libertar uma gargalhada e voltar a recuperar o equilíbrio necessário para esticar o pescoço, empinar o nariz e entrar por entre os arcos escuros de basalto. Já dentro do salão, olhou em redor e absorveu cada uma das mesas procurando a imagem tão desejada. Os nervos instalaram-se numa zona desconfortável do abdómen quando percebeu que George não lhe surgia na pupila. Os passos tornaram-se mais curtos e inseguros. Os ouvidos apuraram-se de tal forma que a sua própria respiração parecia amplificada. Só se sentiu tranquilizar quando os seus olhos se colaram aos de George, com uma intensidade que a incentivou a atravessar a sala.
- Boa noite Anne! – Ana sorriu face àquelas palavras mal pronunciadas.
- Olá George! – Ana entrelaçou o seu braço no braço duro do general. – Não me convidas para dançar?
    George subiu as sobrancelhas numa interrogação. Ana sorriu-lhe de forma encantadora e encaminhou-o para a pista. Pegou na mão direita de George e encaixou-a na sua cintura. Encostou-se num suspense sentido por ambos e rodopiaram em uníssono num encaixe perfeito.
    George fez rodar o seu par numa exibição machista de quem sabe que tem o par mais desejado pelos olhares alheios. Encoberto pelo perfume caro, George identificou o cheiro de leite e sentiu-se mais próximo de Ana. Admirava-a. Sim… Admirava a forma ingénua como ela enfrentava o mundo com o queixo empinado e a sabedoria dos sonhadores. Admirava a simplicidade com que ela sorria indiferente ao deslumbre dos seus traços. Admirava a voz suave que entoava carinhos em músicas de embalar. Admirava o olhar de ternura que ela dedicava à filha e que as unia num laço que ele começava a desejar penetrar…
- Posso roubar-lhe o par? – Um homem de cintura redonda e um ar sebento separou George de Ana. Esta esbugalhou os olhos ao reconhecer o professor Martins e o pânico começou a percorrer-lhe as entranhas. George não confiou logo o seu par àquele cavalheiro, pressentindo uma ansiedade estranha em Ana.
- Então agora dedicas-te aos militares! – O professor Martins agarrou Ana com uma força excessiva e afastou-a num redopio mal ensaiado. Aproximou a sua boca do ouvido de Ana arfando enquanto deixava escapar umas frases que o exercitavam numa excitação doentia. – És esperta… Os militares podem pagar melhor pelos teus serviços. Mas se vieres comigo hoje vou mostrar-te a pujança de um professor… Já sentiste o poder íntimo de um professor? – O professor Martins deixou descair um pouco a mão que apoiava na cintura de Ana e lambeu-lhe a orelha de forma lasciva. Ana não aguentou a humilhação e afastou-o com um empurrão que pareceu entusiasmar mais o professor. Sentindo-se incentivado agarrou-a novamente e puxou-a para si.
- Queres armar-te em difícil agora? Agora é demasiado tarde, porque todos já sabem que tu és uma menina muito mal comportada… - As bochechas transpiravam uma vermelhidão expectante no beijo que o professor Martins tentava desesperadamente forçar. O homem sentiu o seu corpo tornar-se mais leve e só percebeu o que havia acontecido quando aterrou de costas em cima de uma mesa frágil que se despedaçou debaixo do peso excessivo daquele corpo mole.
- Let´s get out of here! (Vamos sair daqui!) – George pegou no braço de Ana a afastou-se arrastando-a atrás de si e libertando-a apenas quando o ar frio da noite lhe roçou a cara e lhe acalmou a corrente eléctrica de raiva que lhe percorria o sistema circulatório chegando a todos os extremos do seu corpo. – What the hell happened there? I felt I could kill that guy! If he touch you again, I… I… (Mas que raio se passou ali dentro? Eu senti-me capaz de matar aquele gajo! Se ele volta a tocar-te eu… Eu…)
- Tem calma George! – Ana sentia-se aflita ao ver George andar de um lado para o outro a praguejar coisas que ela não entendia. Sentia um medo imenso que ele começasse a sentir embaraço por tê-la levado ao baile. Talvez começasse a vê-la com os olhos das restantes pessoas. A visão de uma multidão pode ofuscar a visão de um visionário. É preciso ter uma capacidade superior para manter os valores inalterados, os pensamentos puros e a mentalidade aberta e despida das concepções que uma sociedade inteira toma como certas, por que as convicções de caracter são tão abrangentes que se fazem rendilhar de fragilidades absorvidas por certezas demasiado incertas.
    Finalmente George acalmou-se, pegou na mão de Ana e beijou-lhe a ponta dos dedos, entrelaçou a mão delicada na curva do seu braço e dirigiu-a de volta para dentro do baile. Já não podia percorrer o caminho de regresso no carinho que tinha desenvolvido por Ana.

    O receio de enfrentar a realidade depois de a magia se ter desvanecido, entorpecia a vontade de sair da cama e Ana acanhava-se, enroscando a filha já acordada nos braços e rendendo-se ao seu riso fácil. Ana sentou-se na cama e libertou um seio cheio alimentado a pequena Jewel que mamava preguiçosamente adormecendo e acordando sempre que sentia que o seio lhe fugia da boca caprichosa. George abriu a porta do quarto devagar para não perturbar o sono que não verificou. Sabia que devia ter voltado a fechar a porta, mas não conseguiu e encostou-se à ombreira com os braços cruzados apreciando o momento. A pequena Jewel encaixava-se perfeitamente no regaço de Ana e a cumplicidade daquele acto simples fê-lo desejar pertencer àquele quadro familiar. Ana subiu o olhar e atrapalhou-se quando viu George ali estacado a olhar para ela, com o seio descoberto. Ele sorriu-lhe afectuosamente e ela corou, tapando atabalhoadamente o seio nu. George entrou no quarto, pegou em Jewel e atirou uma roupa qualquer do armário para cima da cama, saindo de seguida com a bebé ao colo. Ana levou alguns segundos a recompor-se e depois de fixar a roupa que George tinha escolhido, deixou escapar uma gargalhada. Voltou a colocar a roupa no armário e tirou outra que lhe pareceu mais adequada. Ela tinha percebido que George queria que ela vestisse algo para sair e ela escolheu um vestido que lhe acentuava a cintura fina e que se abria num tecido fluido por sobre as ancas.
    A viagem até ao centro da cidade de Angra foi calma e silenciosa. Ana só voltou a sentir-se tensa quando George parou em frente ao magistério, onde ela havia sido recusada de uma forma arrebatadoramente humilhante. Ana estagnou em sinal de protesto e retesou todos os seus músculos contrariando a mão grande de George que a empurrava delicadamente. Quando finalmente George aplicou um pouco mais de força, entraram e depararam-se com a senhora já conhecida de Ana que lhe sorriu assim que a reconheceu.
- Olá minha querida! – Cumprimentou a simpática senhora que se tinha tornado uma admiradora de Ana depois da joelhada que ela havia aplicado ao professor Martins.
- We want to talk with Professor Martins!
- Sure! You can follow me! – Ana ficou admirada com a resposta solícita em inglês que aquela senhora prontamente deu. A senhora conduziu-os ao gabinete do professor Martins e permitiu a entrada do casal sem o formalismo do aviso da chegada daqueles dois. Não queria correr o risco de o professor não os querer receber.
    George abriu a porta de rompante e sentiu uma satisfação íntima quando viu os olhos pequenos e astutos do professor se arregalarem de admiração e medo. George dirigiu-se à figura ridícula daquele homem com uma barriga proeminente e regalou-se quando viu a sua presa levantar-se e recuar alguns passos. Tinha-o preso pelo medo…
- Can you see that women? (Estás a ver aquela mulher?) – George sibilava algo incompreensível aos ouvidos de Ana que se encolhia junto à porta sem saber bem o que fazer.
- Não percebo o que estás a dizer! – O professor tropeçou na estante que cobria a parede traseira. George deu mais um passo na sua direcção e aproximou-se tanto que o professor lhe pode sentir a brisa da respiração.
- I know you speak English! So tell me, can you see that women? (Eu sei que falas inglês! Então diz-me, estás a ver aquela mulher?
- Sim, sim… Yes… Sim – Ana sentiu uma pena ridicularizadora daquele personagem que se desfazia em medos e receios e sentiu que tinha de reprimir uma gargalhada maldosa.
- You’ll never touch her again… You’ll never look into her eyes again…And now you’re going to apologize… (Nunca mais voltas a tocá-la… Não te atrevas a voltar olhar-lhe nos olhos… E agora vais pedir-lhe desculpa…) - O professor Martins olhou aquela rameira com medo que o seu enjoo fosse notado.
- Desculpa!
- You’ll get some news soon! ( Terás noticias minhas em breve). – George voltou costas e o professor Martins deixou descair os ombros tensos e suspirou de alívio.
    Ana não tinha percebido nada do que George havia dito naquela sala, mas sabia que a tinha defendido. Uma mulher sente da mesma forma sábia tanto a agressão, como a protecção. Uma mulher ferida é uma chama num barril de combustível. E assim que se dá a combustão explode e fere quem está à sua volta com a gravidade dependente da proximidade, sendo que os mais feridos são os mais próximos. Mas uma mulher protegida é o melhor investimento de uma vida, porque a gratidão de uma mulher é eterna e a afeição que resulta dessa gratidão é a garantia de uma lealdade e cumplicidade que acompanham e iluminam uma vida preenchendo-a sem dificuldade e facilitando o dia-a-dia do outro sem grandes exigências.
    Ana deslumbrava-se com os olhinhos arregalados de Jewel, captando tudo o que se movimentava no parque. George caminhava a seu lado numa proximidade confortável. E ria-se sem causa aparente só porque a bebé o fazia. Sentaram-se num banco. Num banco vermelho. Num banco vulgar. E foi naquele lugar vulgar que George tirou uma pequena caixa e entregou-a a Ana, contendo nela muito mais do que um simples anel.
- Oh! Não era preciso ofereceres-me nada George! – Mas os olhos se Ana denunciavam o contrário das suas palavras. Ana abriu a caixa com um cuidado extremo e soltou uma risadinha quando viu o seu conteúdo. – É tão lindo… Muito obrigada George! – E depositou-lhe um leve beijo na face não percebendo o fechar de olhos de George que recebia aquele gesto com a ânsia de o prolongar por uma vida inteira. – Mal sabes tu que nesta terra isto é um anel de noivado! Mas vou aceitá-lo à mesma… Afinal é uma prenda tua! E eu gosto muito de ti, George! Só tenho pena que não consiga dizê-lo de forma que tu me entendas.