domingo, 29 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XVIII

CAPÍTULO XVIII

    Por vezes a capacidade de apreciar uma verdadeira amizade é ocultada por outros factores e nunca se chega a usufruir dos seus tesouros. Muitas vezes a amizade é sobrevalorizada e perdida em teias de malícia que teimam em permanecer na penumbra. Mas raras vezes a amizade atinge o patamar de uma segunda família, e quando se tem a sorte de descobrir uma amizade transparente e liberta de oportunismos, atinge-se um novo clímax do ser. E era exactamente assim que Ana se sentia a poucos dias do grande dia. Deus tinha sido generoso, e agora naquele seu novo quarto em casa de George onde tinha passado os três últimos meses como empregada doméstica, agradecia intimamente o facto de ser merecedora de mais graças do que de privações. Voltaria a passar por todas as dificuldades que aquela terra lhe cobrou só para voltar a ter o privilégio daquelas amizades. Tina era uma amiga tagarela que de forma muito inteligente livrava Ana dos maus olhares e difamações. A cumplicidade que tinha com o marido era partilhada na amizade que nutriam por Ana. George era mais reservado, mas Ana sabia ler nas entrelinhas das suas acções. Via no seu olhar de soslaio a preocupação de saber que ela estava bem. Encontrava amizade no facto de ele sair do trabalho e voar para casa, deixando Ana sozinha o mínimo de tempo possível. Era amizade cada vez que ele tirava a pesada pana de roupa das mãos de Ana e transportava ele mesmo evitando que ela pegasse em pesos. Lia amizade nas vezes em que ele trabalhava o quintal para que Ana não se ocupasse do trabalho pesado. Era amizade todas as vezes que ele lhe segurava a cabeça para ela vomitar nos seus ataques de enjoos de grávida, limpando-lhe depois a cara com uma toalha molhada e deitando-a na cama com um chá fumegante à sua espera. Ana era reconhecida a esta gente que se abriu a ela numa bondade de acções que são tão raras quanto preciosas.
    Uma pontada alucinante na barriga fê-la curvar-se e o sufoco de um grito suspendeu-lhe os movimentos. A dor latejava-lhe dentro das entranhas e o corpo pedia uma libertação urgente. Durou apenas uns segundos e Ana levantou-se no intuito de chamar Tina. Tinha medo de estar sozinha se a dor voltasse. Ao entrar na sala, a dor atacou-a com maior violência, obrigando-a a baixar-se. Ana sentiu o chão duro e frio debaixo de si e a dor que vinha e ia com a mesma rapidez. Em cada intervalo Ana forçava-se a aproximar-se da porta, mas quando as águas rebentaram, Ana entrou em pânico e perdeu a noção do tempo e do espaço, libertando-se em uivos gritados e gemidos doridos. Ana não soube quanto tempo passou até George chegar de rompante respondendo com eficácia aos gritos. Pegou nela desajeitadamente e levou-a para a cama.
- Hold on just a little bit! (Aguenta só mais um pouco!) – George, quando sentiu que Ana relaxava um pouco da dor depositou-lhe um beijo suave da testa. – I’m gonna call the doctor and i´ll be right back. Hold on!... (Vou chamar o médico num instante e volto já.)
    George saiu a correr e os olhos de Ana abriram-se num horror por ficar novamente sozinha. Esse horror durou apenas uns minutos, pois Tina apareceu logo se seguida.
- Oh querida! Acalma-te! – Tina aproximou-se de Ana e apertou-lhe a mão tentando disfarçar a impotência que sentia naquele momento. – O George foi a correr chamar o médico… Está tão nervoso que parece que é ele que vai dar à luz. – Ana emitiu uma gargalhada nervosa e Tina deixou-se relaxar um pouco. – Chegou a hora do nosso bebé nascer minha querida. – Tina sentia a emoção aflorar-lhe os olhos lamechas.
- Vai ser uma menina! – Ambas acreditaram naquela profecia. Quando o médico chegou, tomou as rédeas da situação. George foi ferver água e apareceu com a bacia na ombreira da porta, mas foi impedido por Tina.
- Is better if you wait out here! (É melhor esperares aqui fora!)
- But she screaming so much! She needs me…( Mas ela está a gritar tanto! Ela precisa de mim…) – George sentia que a preocupação lhe estrangulava o bom senso num frenesim que lhe crescia e desabrochava numa necessidade física de estar junto de Ana. Foi John que o tranquilizou e o levou para forma daquele quarto. O parto durou duas horas. Duas horas partilhadas por um sofrimento de dor e ansiedade que George tentava acalmar em passadas largas fora da porta do quarto, retraindo todos os músculos a cada novo grito. Quando um choro fraco tomou conta do cenário sonoro George correu para o quarto e atropelou Tina quando esta o tentava impedir. Aproximou-se de Ana e sentiu o peito apertar-se quando a viu pálida com um olhar de felicidade frágil. O seu respirar era lento, mas quando ela lhe sorriu, George sentiu que estava no lugar certo. O médico depositou-lhe uma menina pequenina nos braços que George aceitou como se lhe estivesse destinada e começou a amar aquele ser desde daquele momento. Tina manteve-se a um canto daquele quarto adivinhando as emoções que começavam a nascer do caos.
- She’s perfect! Just like you! (Ela é perfeita! Exactamente como tu!) – George falava embalando o sono fatigado de Ana que mantinha a bebé encaixada na curvatura interior do seu cotovelo. – We gonna call her Jewel!- George levantou-se da cadeira estrategicamente colocada à cabeceira da cama e beijou a bebé e a mãe. Elas preenchiam-lhe agora o vazio que tinha sido a sua vida até então.
   
“ Queridos Pais, Maria e Glória,

Continuo bem desde a última vez que vos escrevi. Gostei muito de saber que a Maria tem tido muito trabalho a enfeitar as cabeças das senhoras dessa terra. Se existe neste mundo alguém capaz de tornar uma sopeira numa rainha é ela, por isso eu acho que essas senhoras são umas sortudas. Também fiquei muito feliz por saber que a Glória está melhor da constipação. Sinto muitas saudades vossas, principalmente neste momento em que vou partilhar uma boa-nova convosco. A minha bebé já nasceu. É o ser mais lindo que este mundo já recebeu. Tem os olhos verdes iguais aos meus, mas o sorriso é do Francisco. Sei que não gostam que fale dele, mas não consigo lhe guardar rancor. Principalmente agora que olho para a minha menina e vejo o sorriso maroto que termina numas covinhas e que herdou dele. Sem ele eu não teria o meu tesouro. Por falar em tesouro a menina chama-se Jewel, que significa jóia em inglês. Não torçam o nariz e digam à Maria para que em vez de refilar por causa do nome que comece a praticar, pois em breve vai ter de chamar pela sobrinha. Vou baptizar a menina aí. Não quero saber o que essa gente arrogante dirá… que mordam todos a língua, mas recuso-me a baptizar a minha filha sem ser na presença da família que a ama e que me ama. Vou no mês de Agosto. Ela terá nessa altura quatro meses. Bem sei que ela já devia ter sido baptizada, mas é como vos digo, o baptizado da minha filha será feito com toda a dignidade na igreja da freguesia da família e não às escondidas como se fosse uma criminosa.
Já me esquecia de vos dizer. Convidei a Tina e o marido para padrinhos. Primeiro pensei na Glória e no João, mas ele já são tios. E acho que é bom para a menina ter os padrinhos na terra dela. O George também irá para o baptizado.

Amo-vos muito e tenho a minha alma repleta de saudades.
Aguardo notícias vossas em breve.
Ana Ferreira”

     Ana escreveu a carta à pressa, e apesar de não ter ficado completamente satisfeita com o resultado, não se preocupou em reescrevê-la, uma vez que já sentia saudades da sua menina. Pegou-lhe ao colo e cantou baixinho:
Vai-te embora papão negro
De cima desse telhado
Deixa a menina dormir
Um soninho descansado.

    George entrou em casa naquele momento e dirigiu apenas um acenar de cabeça a Ana retirando-se de seguida para o seu quarto. Desde o nascimento da menina que ele andava estranho. Já se havia passado três semanas em que ele não se esforçava por estabelecer qualquer tipo contacto, e Ana começava a sentir saudades daqueles momentos em que as gargalhadas que surgiam em cada tentativa de entendimento eram o único ponto de comunicação bem-sucedida. O medo de estar a perder o que tinha com George afligia-a de forma pouco convencional e Ana concentrava-se na filha e no trabalho de casa para não se deixar arrastar por emoções que não percebia. A porta do quarto abriu-se e Ana sentiu que o seu coração disparava numa esperança que George lhe dirigisse uma palavra. Mas ele contornou-a, depositou um leve beijo na bebé e voltou a sair. Ana sentiu uma pontada de ciúme dirigida a alguém incerto que usufruiria do cheiro daquela colónia nova que ele havia comprado. Pela hora ele não deveria lanchar em casa e pela produção, também não devia jantar.
- Está alguém em casa? – Tina entrou como fazia sempre, sem bater!
- Olá Tina! – Ana tentava limpar as lágrimas de forma atrapalhada e esta atitude não escapou a Tina.
- O que se passa querida?
- São apenas saudades da minha família!
- Oh querida! Não fiques assim! Eu sei que não é a mesma coisa, mas tens-me a mim, ao John e ao George… e agora tens esta coisinha linda! – E tirando a bebé das mãos de Ana continuou com um falar apalermado – Quem é a menina mais linda da sua madrinha… quem é? Estás a rir-te sua marota… É muito marota esta nossa menina!
    Ana passou das lágrimas à gargalhada com uma facilidade que surpreendeu Tina.
- Pareces uma tonta a falar dessa maneira!
- Olha quem fala! Devias ver as figuras que fazes quando te babas para cima da menina! – As duas riam enquanto adoravam juntas aquele pequeno ser que já as conquistara. – Ah! Já me esquecia do que vinha aqui fazer.
- Não vinhas apenas matar saudades da minha filha, que já não vias há uns dez minutos?
- Não sejas parva Ana! – Tina sorriu-lhe. Realmente estava a afeiçoar-se àquela pequena e desejava muito fazer parte da vida dela. Vamos sair as três.
- E vamos onde?
- Depois vês! Agora vai vestir algum trapinho melhor do que esse e vamos embora! – Ana foi mudar-se de roupa. Tinha agora um guarda-fato cheio de roupa que Tina lhe tinha dado, porque engordara um pouco e já não conseguia meter-se dentro daqueles trapinhos como ela lhes chamava. Mas Ana ficava magistralmente linda naqueles fatos de saia casaco que lhe delineavam umas ancas perfeitamente encaixadas numa cintura fina, pouco própria de quem tinha dado à luz.
    John já as esperava dentro do carro que conduzia com um cuidado exagerado. O carro era do seu general e ele não queria correr o risco de estragar as suas relações superiores. Chegaram ao centro de Angra do Heroísmo e Ana sentiu um arrepio. Desde que acordara na casa de George nunca mais saíra da base militar, e agora voltar àquela calçada era voltar a sair da sua zona de conforto. Mas Ana sabia que não podia permanecer fechada ao mundo. Teria de enfrentar os olhares e comentários maldosos e as censuras em surdina. As duas entraram no jardim onde Ana foi encontrada caída e miserável, e Tina mirava a amiga numa preocupação disfarçada por um discurso tagarela e confuso. Quando saíram do jardim, Ana avistou os pórticos tão seus conhecidos e não resistiu a atravessá-los novamente. Tina seguiu-a questionando mas sem obter qualquer resposta. Ana percorreu a ala direita conhecedora do caminho e espreitou para dentro da sacristia.
- Jerónimo? – O olhar do sacristão turvou-se numa emoção que tocou a sensibilidade de Tina. O abraço continha em si uma curta mas intensa história de miséria e de bondade. Os actos mais nobres resultam normalmente da junção destes dois químicos: Bondade e Miséria. É fácil ser-se bom quando se tem muito para partilhar, mas o heróico é fazê-lo sem nenhum poder especial. Os dois choraram e trocaram palavras de consolo rápidas e certeiras, e Ana terminou aquela visita rápida com uma preocupação a mais no peito. Jerónimo sofria por estar enclausurado nas censuras e tiranias de um sacerdote pouco misericordioso.
    De volta à rua Tina não voltou a questionar a cena que assistira. Ela sabia toda a história de Ana e sabia exactamente quem era Jerónimo. Percebeu que o homem sofria em silêncio e que a sua deficiência na perna fez dele prisioneiro daquele trabalho.
    Entraram então na loja pretendida e Ana surpreendeu-se com um vestido encomendado em nome dela.
- Mas!... – Ana nem sabia o que dizer. Apesar de ter poupado todos os seus ordenados desde que servia em casa de George, não se sentia com vontade para gastar dinheiro num vestido lindo daqueles.
- Tens de experimentar para ver se as medidas estão certas. – Tina assumiu o comando da situação e Ana sentia-se embriagada sem poder de reacção. – Vai lá que eu seguro a menina. O vestido assentava-lhe melhor do que o esperado. No corpo esguio de Ana o vestido parecia tomar outra forma e o tecido preto caia numa elegância descarada deixando os ombros de Ana à mostra. Tina emitiu um gritinho de satisfação.
- Podes tirá-lo! – Ana obedeceu com o pensamento congelado pela sua imagem que vira reflectida no grande espelho. Ela estava transformada numa mulher. O corpo de menina alongou-se numas formas sóbrias e transformaram-na numa imagem que lhe agradava particularmente. Quando Ana saiu, o vestido foi cuidadosamente guardado numa caixa.
- Eu não vou levar esse vestido! É um vestido de noite e o meu guarda-fato não tem por hábito sair à noite! – Tina deixou escapar uma gargalhada divertida, pegou na caixa e saiu. Ana correu atrás dela com a bebé ao colo.
- Vais sair assim com a caixa? Olha que eu não volto para trás para pagar esse vestido! – Ana sentia que o seu coração se acelerava face à possibilidade de estarem a cometer um furto.
- Não sejas tonta querida! O vestido já está pago…
- Mas… Oh não devias Tina…
- Não fui eu que o paguei!
- Tu ou o John é a mesma coisa…
- Não foi nenhum de nós! – Tina parecia divertida com aquele jogo de gato e rato.
- Então quem foi?
- O George! – Tina sorriu de prazer quando viu o olhar esbugalhado de Ana. – Ele precisa de um par apresentável para o baile de hoje à noite.
    Ana sentiu um turbilhão de emoções, mas a surpresa tomou um lugar dianteiro. Como podia George, um homem distinto, que ocupava um alto cargo na base das Lajes apresentar-se num baile com a criada?
- Não posso! – Ana soltou as palavras numa aflição cómica.
- Porquê querida! Já tens alguma coisa marcada para esta noite?
- Porque… Ora porque não posso deixar a Jewel sozinha… Claro… - Ana quase sorria de satisfação por ter encontrado a desculpa ideal.
- Ora querida! Esse assunto já está tratado. A Jewel ficará comigo em casa, porque o John não pode ir ao baile… estará de serviço…
    Ana não podia dizer que não deixaria a filha com Tina, até porque poderia ofendê-la. E a verdade é que confiava em Tina para deixar a sua menina aos seus cuidados. Ela iria ao baile. Agora que pensava nisso, ela tinha saudades de se divertir. De ter um momento egoísta em que o foco principal é o que lhe dá prazer. Irá com George ao baile, independentemente de ele lhe dirigir palavra ou não. Haverá quem fale português com toda a certeza…

domingo, 22 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XVII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XVII



    As pálpebras pareciam coladas e o pequeno raio de luz feria-lhe a visão. Ana sentia que fazia um esforço sobre-humano para abrir os olhos e quando finalmente conseguiu a imagem pouco nítida começou a focar-se para seu espanto. Dois pares de olhos estranhos miravam-na com uma cautela exagerada. Uma mulher loura de cabelo impecavelmente apanhado foi a primeira a esboçar um sorriso torneado de um vermelho vivo.
- Olá querida! – A sua voz doce ecoou na cabeça de Ana que voltou a fechar os olhos. – Não querida! Já dormiste demasiado. Faz um esforço para te manteres acordada. – Ana encaixou aquela informação. Quanto tempo teria estado adormecida? E quem era aquela gente. A urgência que uma resposta lhe provocava fizeram-na arriscar umas poucas palavras.
- Onde estou?
- Estás em segurança querida! – A mulher loura deu-lhe aquela resposta insatisfatória e fixou o outro par de olhos. Eram uns olhos pequenos e astutos de um azul profundo, invulgar naquelas gentes. – Nós encontramos-te na rua e trouxemos-te para aqui… Mas não te preocupes com nada. Vais ficar bem minha querida. – Ana permitiu-se a um novo fechar de olhos. A sua cabeça doía-lhe e o esforço para se manter atenta às palavras daquela mulher cansavam-na de um forma incomum.
- Tenho fome! – Ana permitiu-se exprimir a sua miséria, porque era exactamente assim que se sentia, esfomeada. Fez mais um esforço para levantar a sua mão e pousou-a um pouco a medo sobre o ventre inchado. Não evitou um sorriso quando sentiu a sua menina. Era como se lhe quisesse dizer que está bem.
   Ana comeu uma sopa de carne com um apetite que compadeceu ainda mais a mulher loura. E só levantou novamente o olhar quando terminou. Os olhos azuis estavam fixados nela e pertenciam a um homem alto com uma constituição atlética. Tinha uns ombros largos e o cabelo era claro e muito curto.
- Is she okay? – As palavras que saiam da boca daquele homem confundiam a mente de Ana.
- She was hungry, but now she looks better.
- O que é que vocês estão para aí a dizer? – Ana sentiu-se em alerta.
-Não te preocupes minha querida! – A senhora loura levantou-se e conduziu pelo braço o homem até à beira da cama. – Este é o George e é americano. Não fala nada de português… E estás na casa dele.
    Ana assimilou aquela apresentação sem saber como se dirigir àquele ser humano que não entendia. Resolveu a situação com um abano de cabeça.
- E eu sou a Cristina, mas todos me tratam por Tina. – A mulher loura tinha finalmente um nome, para conforto de Ana. – Hoje ainda estás muito abatida. Vais descansar e amanhã falamos melhor, está bem assim? – Ana voltou a acenar a cabeça numa afirmação e deixou-se adormecer profundamente.
    O dia seguinte começou muito cedo. Ana abriu os olhos com os primeiros raios da manhã e perscrutou o quarto que começava a clarear. O quarto tinha as paredes brancas e era amplo. Uma janela demasiado grande deixava a luz entrar de forma agradável. Ana agradeceu o facto de aquela janela não ter um cortinado que fechasse o quarto àquele espectáculo matinal. Os olhos de Ana confirmaram a cama larga e confortável que o seu corpo já havia testado. Uma cómoda de madeira e couro com umas imagens douradas maravilharam-na. No canto oposto do quarto, um espelho de corpo inteiro reflectia a imagem de um homem adormecido numa posição desconfortável. Ana assustou-se e desviou o olhar para a imagem real. George estava sentado num pequeno cadeirão de couro vermelho e pendia o corpo para o lado esquerdo apoiando a cabeça na cova interior do cotovelo. Ana compadeceu-se daquela figura e levantou-se com a sua almofada numa mão e uma manta na outra. Colocou a manta por cima daquele homem de traços rudes que se suavizavam num respirar profundo. Quanto tentou levantar a cabeça de George para lhe colocar a almofada, este abriu os olhos preguiçosamente e quando percebeu que Ana estava de pé deu um salto.
- You can´t be up! Please! Go back to bed! – A atrapalhação de George e a falta de entendimento de Ana fizeram-na rir. Ela riu tão alto que George se sentiu ainda mais confuso.
- Não entendo nada do que estás para aí a dizer! – Ana falava muito pausadamente como se fosse essa a solução para um entendimento entre os dois. George encolhia os ombros e percebendo que não conseguiriam ter uma conversa resolveu fazer-se entender de outra forma. Pegou-a ao colo e depositou-a na cama. Após um arregalar de olhos de espanto, Ana voltou a rir-se.
- Podias ter dito logo que querias que eu voltasse para a cama.
- George! – O homem que envergava uma farda militar apontava para o peito enquanto proferia o seu nome. Depois apontou para Ana e esperou uma reacção.
- Ana! – Ana sentiu um baque no peito face a este primeiro entendimento. E ambos sorriram quando George repetiu Ana em voz alta.
- Where is your husband? – George preguntava devagar enquanto apontava para o dedo anelar. Ana sentiu um medo de responder. Podia fingir que não percebia a pergunta, mas não teve coragem de começar a enganar quem lhe tinha feito bem e tentou explicar-se o melhor que pode.
- Não sou casada! – Ana abanava a cabeça em negação enquanto falava. – Vou ser mãe solteira! – George pegou-lhe na mão e Ana retraiu-se perante aquele gesto.
- I understand… - Ana não percebeu o significado daquelas últimas palavras, mas sentiu a compreensão de George e emocionou-se. – Please don’t cry! Everything will be resolved. – Como George começava a sentir-se desconfortável resolveu levantar-se e saiu do quarto.
    Ana voltou a encostar-se na cama. Não queria passar mais um dia na cama. Tinha uma vida para resolver, mas neste momento sentia-se segura ali no meio daquela gente desconhecida que lhe estendera a mão e cuidara dela. Que futuro lhe estava destinado? Que caminho seguiria a partir daquele ponto? A consciência do incerto é intimamente provocadora de um medo efervescente que à medida que cresce se transforma em coragem para novas soluções. E esta nova coragem ultrapassa a dor, apaga o comodismo e incentiva novas descobertas e oportunidades.
- Ana! – George estava novamente à porta do quarto onde Ana se encontrava. Entrou sem pedir licença. Ana sorriu com este pensamento. Mesmo que ele lhe pedisse licença para entrar ela não o entenderia. George ajudou-a a levantar-se e encaminhou-a para fora do quarto. Ana sentiu-se aliviada por deixar aquele quarto e sorriu quando encontrou Tina na cozinha ampla e moderna. Não pode deixar de compará-la à cozinha escura com o chão de terra batida dos seus pais. Ali tratava-se de um espaço amplo com uns mosaicos verdes no chão. O que mais admirou Ana foram os electrodomésticos. Nunca vira nada assim. Tina abria a porta daquilo que chamava friger e tirava de lá ovos que saíam frios e manteiga dura. Aquela cozinha tinha electricidade e Ana não conseguiu evitar um pensamento dedicado a Francisco. Sentaram-se à mesa e tomaram um pequeno-almoço que deliciou Ana.
- Fico muito feliz que te sintas melhor querida! – Tina falava enquanto penicava uma fatia de pão.
- Como é que vim aqui ter? – Ana ansiava esclarecer melhor aquilo que lhe parecia um lapso de memória.
- O George foi a Angra do Heroísmo com outros militares aqui da base. Já sabes como é… Quando se apanham de folga querem é boa vida e umas meninas fáceis… - Tina trocou um sorriso cúmplice com Ana ambas seguras de que George não as perceberia. – Então parece que eles encontraram-te caída no chão à beira de um banco de jardim.
- Ah! – Ana sentia-se tão humilhada que não conseguiu dizer mais nada, mas Tina não percebeu o embaraço de Ana e continuou o seu relato.
- Às tantas da madrugada sinto bater na porta da minha casa, que é aquela ali… A última deste lado, vês? – Tina apontava pela janela larga da cozinha e obrigava Ana a concentrar-se nas indicações. Só se deu por satisfeita quando Ana percebeu qual era a sua casa. – Pois bem! Apareceu-me à porta um pouco embriagado e foi o John, que é o meu marido, vais conhecê-lo hoje à noite porque vais jantar lá a casa, mas depois combinamos melhor… Continuando, apareceu-me lá em casa e nós pensámos que ele estava bêbado. O John acompanhou-o até aqui com a intenção de o deitar, quando deu contigo estendida ali no sofá… O que é que ele podia fazer? Correu para casa e fez-me vir aqui em camisa de dormir. – Tina soltou uma gargalhada como se aquela fosse uma aventura deliciosa que contava a amigos. – Os homens nunca sabem resolver nada sozinhos, sabes como é. Mandei o George levar-te para o quarto e tranquei-me lá contigo. Mudei-te de roupa e passei a noite a colocar-te panos de água fria na testa para te baixar a febre.
- Eu tive febre? – Ana sentia que aquela não era a sua história.
- Sim queria! Deliraste durante dois dias!
- Dois dias? – Seria possível que não se recordasse de nada durante todo aquele tempo.
- Dois dias! Estou a dizer-te! Ficámos muito preocupados por causa do bebé, mas o médico ontem de manhã assegurou-nos que o pior já havia passado.
    Tina levantou-se para começar a arrumar a mesa e Ana acompanhou-a. Estava habituada às tarefas domésticas e lavou a loiça num instante para grande satisfação de Tina. O facto de terem água canalizada ajudou bastante a tarefa. Depois de Ana colocar a cozinha num brinco, George despediu-se com um aceno e saiu.
- Vai trabalhar querida! – Tina sentou-se num confortável sofá na sala e fez sinal a Ana para que a acompanhasse. – Temos de ter uma conversa querida!
    Ana assentiu. Devia uma explicação àquela gente.
- O George disse-me que não és casada!
- Não sou! Engravidei de um namorado que não quis assumir a paternidade! – Ana preparava-se para as ofensas e esperou sem resultado pelo olhar recriminador.
- Há homens no mundo que não deviam existir, querida! Não percas mais tempo a pensar nele… Um homem que não tem a dignidade de assumir os seus actos então é um fraco que não serve para mais nada… Ele até te fez um favor, querida! Já viste o que seria o resto da tua vida ao lado de um fraco! – Tina deixou escapar uma nova gargalhada para espanto de Ana. Seria ela uma pessoa razoável da cabeça? Ela não parecia ralar-se nada com o facto de Ana ser uma rapariga solteira e grávida. E ainda tinha a ousadia de ir mais além. Ao contrário de todos aqueles que Ana conhecera, Tina não a recriminava a ela, mas sim a Francisco. Ana começava a gostar sinceramente daquela mulher de estatura baixa, um pouco redonda com um rosto agradável e um sorriso fácil.
- Não tens família, querida? – Tina aprofundava o assunto numa curiosidade mal disfarçada.
- Tenho a melhor família do mundo! – Ana sorriu ao lembrar-se dos seus. Descreveu os pais como pessoas bondosas que amavam mais as filhas do que a própria vida. Falou de Glória e do seu casamento bem-sucedido. Descreveu Maria como a marota da família e provocou risadas intimas entre as duas enquanto descrevia a sua irmã mais nova.
- Então como é que acabas aqui numa ilha estranha e assim tão desamparada?
- Cheguei à Terceira com pouco dinheiro, com a intenção de estudar para professora primária. Tentei inscrever-me no próximo exame de admissão… - Os olhos de Ana fixaram o chão e por um momento voltou a sentir-se humilhada. – Mas não fui aceite.
- Como assim não foste aceite? Chumbaste no exame?
- Não! – Ana sentia-se a diminuir perante cada insistência naquela história, mas devia ser honesta com Tina. – Não me deixaram inscrever no exame.
- Porquê?
- Por causa da minha condição! Confundiram-me com uma mulher de vida fácil e a solução que me apresentaram para que eu tivesse acesso ao exame era pouco decente…
    Tina levantou-se do sofá numa fúria que se reflectia na vermelhidão das bochechas.
- Não acredito! Que cretino! – Tina andava de um lado para o outro, como se estivesse enjaulada. De repente voltou a sentar-se ao lado de Ana e puxou-lhe o rosto na direcção do seu com alguma brusquidão. – Ouve bem o que te digo Ana! Nunca deixes que esse tipo de gente te faça sentir inferior. Tu és muito melhor do que esse jovenzito que te engravidou. É muito fácil cometer erros e não ter que sofrer as consequências, mas a dignidade fica do lado daqueles que se responsabilizam pelos seus erros. – E libertando um pouco mais o rosto de Ana, Tina estreitou mais o olhar como se quisesse que as suas palavras ficassem gravadas a ferro quente na sua mente. – E esse senhor do magistério que sugeriu que te prostituísses, é tão inferior a ti que nem te chega aos calcanhares. Nem sempre as pessoas têm a capacidade para verem o ridículo dos incapazes e enaltecem-nos com prejuízo para todos aqueles que são superiores… Nunca julgues ninguém sem conhecer a sua história. – Tina perdeu o sorriso dos olhos e falava com a emoção das duas na voz. – Aqui nesta casa estarás protegida desse tipo de gente. Eu, o meu marido e o George vamos ajudar-te, a ti ao teu filho.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Livro

Olá a todos!
O meu primeiro livro " Amor na ilha Azul" Já está à venda no formato Ebook http://www.worldartfriends.com/store/1421-amor-na-baia-azul.html e no formato livro físico http://www.worldartfriends.com/store/1420-maria-gaspar-amor-na-baia-azul.html.

Agradeço a todos o carinho e a disponibilidade para lerem e apreciarem aquilo que escrevo.

Muito obrigada

domingo, 8 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XVI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XVI




        O Pórtico elevava-se na sua frente em três arcadas imponentes com duas torres nas extremidades. A alvura do edifício tornava-o mais celestial. Ana entrou na Sé Catedral de Angra do Heroísmo numa busca inconsciente de conforto. Os seus olhos não admiraram da forma devida as capelas que se sucediam numa dança de arcos e colunas majestosos que se intercalavam de forma harmoniosa. Ana sentou-se num dos longos bancos e fixou o frontal de prata do altar do Santíssimo Sacramento e por uns segundos permitiu-se apreciar a beleza daquele relevo.
- Ajuda-me Deus! Ajuda-me a não falhar! Ajuda-me! – Ana sentia o calor das lágrimas percorrerem-lhe as faces.- Não deixes que a minha filha nasça no meio da miséria! Por favor, permite uma vida digna para a minha menina.
    Os segundos deram lugar a minutos, e os minutos transformaram-se em horas. Ana não tinha para onde ir e deixou-se ali ficar até que um homem de meia-idade coxo lhe interrompeu a decadência de emoções.
- Temos de fechar a Sé por hoje! – O seu olhar apresentava-se doce e tornava as suas feições feias um pouco mais amenas.
- Não tenho para onde ir! – Ana expôs a sua situação àquele estranho sem se poder dar ao luxo de ter qualquer tipo de recato ou pudor. O homem deixou transparecer a atrapalhação que aquela confidência lhe provocara.
- Eu não sou o padre! Se quiser confessar-se deverá fazê-lo amanhã pelas onze horas da manhã! 
    Ana pegou na sua mala e levantou-se sem vontade. O homem fixou o seu olhar na barriga proeminente e não lhe escapou o facto de aquela rapariga não ter aliança. Subiu o olhar e assimilou aqueles olhos redondos inchados e angustiados, assimilou uns lábios curvados de dor e leu-lhe as rugas de preocupação que se formavam na testa daquela linda mulher. O homem, não podia virar as costas a um filho de Deus. Era um mero sacristão e sabia que não podia contar com a ajuda do sacerdote, que julgaria aquele rapariga como uma devassa que se tinha desviado do caminho sagrado de forma irremediável. Talvez se a moça mostrasse ares de ter algumas posses ainda se vislumbrasse uma salvação possível, mas assim mendiga era de todo impossível salvar a sua alma. Mas o sacristão compadecia-se daquela alma perdida e havia uma vontade interior que o impulsionava a ajudá-la. Sentou-se ao lado dela e agarrou-lhe a mão, num gesto de compreensão.
- O meu nome é Jerónimo, mas todos me chamam de coxo! – Ana deixou escapar um sorriso atrapalhado pelas lágrimas e sentou-se novamente.
- Eu sou a Ana e todos me tratam por Ana! – Os dois trocaram um sorriso cúmplice.
- Espera aqui só um momento! – O homem foi trancar a porta central da Sé e voltou a sentar-se ao lado de Ana. - Conta-me a tua história.
    Ana olhou aquele homem de estatura baixa e uma magreza extrema. O cabelo mal cortado abundava num preto baço e os seus olhos escuros brilhavam enquanto lhe sorria afectuosamente.
- Eu nasci na ilha do Pico! Tenho lá toda a minha família! – Ana apressou-se na descrição da família, já que a saudade teimava em atrapalhar-lhe as palavras. – Apaixonei-me por um jovem médico e engravidei. Como já deve ter reparado hoje estou numa terra estranha, sem ninguém, sem sustento, solteira e grávida!
- Mas porque vieste para a Terceira se tinhas a tua família no Pico? – Aquela rapariga já conquistara a compaixão do sacristão que começava a interessar-se pela sua história.
- Porque me recusei a viver na clausura da vergonha! Eu amei e engravidei. Estou a gerar uma nova vida dentro de mim. Isto não tem de ser motivo de embaraço. Não tem de ser uma condenação de viver uma morte em vida. Eu recuso-me a baixar o olhar a comentários maldosos. Eu recuso-me a afastar-me das pessoas supostamente dignas. Eu não sou uma marginal. Tenho sonhos, tenho projectos, tenho sentimentos e não posso deixar esta Ana que gosta de viver de rir de aprender, numa clausura eterna. As pessoas não podem olhar-me com superioridade nem julgar-me só porque não segui o que esta sociedade hipócrita me impinge. Está tudo ao contrário Jerónimo. – O sacristão sorriu-lhe ao notar que ela o tratara pelo nome e não pela alcunha. – Eu sou acusada com olhares, com comentários maldosos, com propostas indecentes. Sou julgada, rotulada, subjugada a humilhações que me magoam muito. Essas atitudes magoam-me. Essas pessoas magoam-me. E eu nunca provoquei uma dor nessas pessoas que tão facilmente me magoam… Porque é que sou eu que estou a ser julgada em praça publica se não fui eu que magoei ninguém… Mas que raio de sensibilidade é esta que rege a dignidade das nossas gentes?
    O sacristão sensibilizou-se com aquele discurso tão sentido. E tomou a decisão de ajudar aquela menina às escondidas do pároco.
- Vamos fazer o seguinte! – Ana esperava numa expectativa de esperança o que aquele bom homem lhe tinha para dizer. – Vou deixar-te passar a noite na sacristia. Sei que não é lá muito confortável, mas sempre é melhor do que ficares na rua. Tens de acordar cedo, para que o sacerdote não te apanhe aqui. Amanhã acordas e tentas arranjar trabalho. Vamos gerindo um dia de cada vez…
    Ana rodeou o pescoço daquele pequeno homem que Deus lhe colocara no caminho. Jerónimo apreciou o gesto espontâneo. As pessoas não costumavam dirigir-se assim a ele. O seu aspecto físico costumava repugnar os outros, antes mesmo de ele ter oportunidade de mostrar a sua personalidade. Mas naquela noite Deu colocou-lhe uma amiga na sua vida. Uma amiga… Eis uma novidade para ele.
    Os dois conversaram noite fora. Ana contou-lhe todos os pormenores. Riram das pirraças da pequena Maria. Emocionaram-se com união de Glória e João. Trocaram risinhos sobre a intimidade de Ana e Francisco. Choraram a morte de Fátima. Repugnaram-se com a atitude do professor Martins e por fim adormeceram no desconforto daquele banco de madeira.
     Ana deixou a Sé quando o sol começou a despertar. Abriu os braços àquele novo dia e rodopiou provocando uma gargalhada em Jerónimo.
- Boa sorte Ana!
    O pão seco e o pouco leite que Jerónimo arranjara tinham reconfortado o estômago de Ana que não comia nada desde a manhã do dia anterior. Ana seguiu as ruas sem um rumo certo, mas decidida a arranjar trabalho. Não podia continuar a dormir nos bancos da Sé, não só porque ambicionava mais do que isso, mas também porque não queria colocar o Jerónimo numa situação delicada. Ana sorria ao lembrar-se das horas de conversa que tinham tido no dia anterior. Ele nem se apercebera de como tinha saudades de conversar. E agora tinha alguém que naquela terra estranha que lhe dava guarida e amizade. Ana entrou num pequeno estabelecimento, incentivada pela placa que anunciava precisarem de empregado.
- Bom dia! – Ana cumprimentou o senhor anafado com um bigode farfalhudo que se encontrava atras de um balcão alto. Rolos enormes de tecido forravam as paredes, formando um arco-íris de cores e texturas. – Li a placa que tem colocada no umbral da porta.
- Ah sim! Estou a precisar de um funcionário aqui para a loja. Tenho este estabelecimento há já alguns anos, e tenho estado sempre sozinho, mas agora a minha esposa está muito doente e quero passar mais tempo com ela.
- Percebo! – Ana sentia-se esperançosa. – Então acha que posso ficar aqui a trabalhar para si?
- Dá a volta ao balcão para que eu possa mostrar-te o resto da loja e do armazém! – O homem mostrava-se muito amável com um sorriso acolhedor que gelou assim que viu a barriga proeminente de Ana.
- Vai perdoar-me a pergunta, mas o seu marido não se importa que trabalhe? – Aqui estava a questão que preocupava toda a gente assim que viam a barriga de Ana.
- Não tenho marido, pelo que não tem com que se preocupar. – Ana sorriu ao homem tentando mostrar que esta afirmação era positiva, mas adivinhando o desfecho daquela história. O homem até então amável, tornou- se de repente muito atarefado, com muitas coisas para fazer e depois um pouco frio, até que a despachou com um candidato inventado com quem já se havia comprometido.
    Ana saiu um pouco mais desmotivada, mas sem perspectivas de desistência no seu horizonte. O sol foi seguindo o seu caminho num ritmo mais acelerado do que o de Ana que chegou ao final do dia exactamente como começara… Sem nada… Apenas muito mais cansada. Quando voltou para a Sé, Jerónimo não lhe perguntou nada, uma vez que adivinhara a resposta nas feições de Ana.
    Os dias passavam-se numa repetição cruel de esperança e desilusão com apenas duas pequenas refeições diárias que Jerónimo conseguia arranjar-lhe. O seu único consolo residia nas conversas que tinha com aquele novo amigo. Os desabafos, os planos para o futuro, os sonhos, as histórias, as memórias. Tudo era partilhado durante aquelas horas mágicas em que ambos se fechavam para o resto do mundo.
    Algumas semanas passaram-se na mesma monotonia triste e desincentivadora e a chuva tomou o lugar do sol. Ana correu para abrigar-se na Sé. Isto significava que já não podia continuar à procura de trabalho naquele dia. Aproveitaria para lavar-se na bacia minúscula que Jerónimo lhe arranjara, com a água fria a que já se acostumara e depois descansaria um pouco. A barriga pesava-lhe e a falta das forças resultava na sua perca de peso visível ao longo daquelas semanas. Ana rezava todos os dias, para que a sua vida presente não se manifestasse em falta de saúde na filha. Entrou na Sé e procurou Jerónimo com os olhos. Atravessou o corredor central sem reparar nos altares seguidos e espreitou para dentro da sacristia recuando num salto quando avistou o sacerdote. As feições zangadas fizeram com que Ana se encolhesse na sombra da porta encostada e escutasse a conversa.
- Não te bastava seres coxo, tinhas de ser também burro! – A voz grave parecia relampejar cada palavra.
- Mas ela precisa de ajuda! Não posso deixá-la desamparada!
- O povo comenta que todos os dias à tardinha entra uma rapariga na Sé que não sai! Encaram este facto como se se tratasse de um mistério, mas em breve não serão tão benevolentes nessa avaliação!
- Mas não podemos virar as costas aos necessitados. Misericórdia Senhor! – Jerónimo debatia-se contra aquela voz acusadora.
- Não quero mais essa vadia aqui dentro, percebeste? – A voz agora era um murmúrio ameaçador. – Já te tinha avisado e tu fizeste ouvidos moucos. Não quero essa mulher de má rês novamente na minha Sé… Se não for assim a igreja deixa de ter a bondade de albergar a tua mãezinha no convento onde ela beneficia do tratamento misericordioso das nossas irmãs.
- Não vou fazer isso! E não me ameace, porque o senhor padre tem mais a perder do que eu… Ai se eu começo a abrir a boca sobre o que sei… - Jerónimo foi interrompido por um estalo que ecoou por toda a Sé.
- Não me voltes a ameaçar coxo… Quando eu voltar amanhã espero ter a feliz notícia de que já não foi avistada a misteriosa mulher a entrar na Sé.
    Ana sentiu-se tremer e encolheu-se mais quando o sacerdote saiu de rompante passando mesmo ao seu lado sem dar pela sua presença. Assim que aquele personagem alto e intimidador que envergava uma túnica da mesma cor que a sua alma atravessou o pórtico da Sé, Ana esgueirou-se para dentro da sacristia. Sentiu uma dor aguda no peito quando viu Jerónimo sentado no chão com a cabeça apoiada num móvel escuro, que possuía gavetas trabalhas com puxadores em ouro. Ali estava um miserável a jorrar sangue pelo lábio encostado a um móvel que ostentava poder, e Ana sentiu mais admiração por aquele ser humano do que pelo imponente móvel em jacarandá.
- Estás bem Jerónimo? – Ana tirou do bolso da sua saia um lenço branco que a acompanhava sempre, uma vez que tinha sido bordado pela mãe, e limpou-lhe o canto do lábio.
- Nunca me senti melhor! – Jerónimo tentava sorrir de forma a não ser mais uma preocupação na vida de Ana. – Apenas caí! Eu sou assim mesmo desajeitado… E o facto de ser coxo não ajuda. – O riso que acompanhou esta afirmação foi tudo menos sincero. Ana não quis dizer-lhe que ouvira a conversa, pelo que se limitou a mentir.
- Tenho uma excelente notícia! – Ana sentou-se também no chão e encostou-se ao móvel.
- Ainda bem! Estamos ambos a precisar de boas notícias! Então do que se trata?
- Arranjei trabalho numa casa! Vou servir e fico lá permanentemente. Vou ter um quarto com uma cama confortável e os meus futuros patrões compadeceram-se da minha situação.
    Jerónimo levantou Ana num salto e pôs-se a dançar com ela.
- Fico tão feliz Ana! Tu mereces o mundo… E vais ter uma refeição decente, finalmente… - Ambos riam alto e comemoravam a falsa notícia.
    Ana pegou na sua mala e despediu-se de Jerónimo com a promessa de que o visitaria sempre que possível. O riso acompanhou-a sempre até que virou a primeira esquina e as lágrimas voltaram a impor-se ao riso. O mesmo desespero dos desalojados voltou a instalar-se e os seus olhos percorriam as ruas numa ansiedade miudinha. Procurou um beco escuro e encolheu-se na ombreira de uma porta descaída, adivinhando que ninguém morava naquela casa. O frio gelava-lhe as extremidades e os soluços deram lugar a um cansaço que resultou num fechar de olhos que só despertou no dia seguinte.
    Os dias passaram-se com Ana a percorrer as ruas da cidade sem rumo. De vez em quando aventurava-se a pedir trabalho a alguém, mas a resignação ocupara cada átomo do seu ser. Ana acabara de perceber que o mais fundo que uma pessoa pode descer na sua miséria é quando atinge a aceitação da mesma como inevitável. A resignação é o estado de espírito mais degradante que pode haver. É pior do que a fome, a tristeza, a humilhação. Quando se enfrenta o difícil com esperança, significa que ainda existe uma pouco mais para desiludir… Quando se atinge a resignação, então atingiu-se o fundo do poço.
    Ana perdeu a noção do tempo. Não se lembrava de há quanto tempo andava a deambular por aquelas ruas já tão conhecidas. As pessoas já a olhavam de lado e cochichavam mexericos indignos. Ana sentia uma dor permanente no estomago. Não sabia se era fome ou outra coisa qualquer. A visão começava a desfocar-se com alguma regularidade e as pernas cediam facilmente. Ana sentiu a aragem fria que avisava o fim de mais um dia e encostou-se num banco do jardim sem se preocupar com os transeuntes que a miravam. A noite caiu fria, mas Ana já não a sentiu. O seu corpo tombou no chão, sem que Ana o notasse… a sua mente apagara-se finalmente.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

CAPÍTULO XV - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XV



        Os dias corriam debaixo de um desespero próprio de quem procura ansiosamente sem conseguir alcançar. Ana procurava um trabalho que lhe garantisse o seu sustento e da filha que crescia dentro de si. O dinheiro estava contado e dava para mais três semanas de renda, pelo que se tornava imperativo que Ana conseguisse arranjar uma solução breve. Ela percebera de uma forma perversamente cruel que o espírito de julgar demasiado depressa as pessoas é comum a toda a humanidade, não é um exclusivo dos meios pequenos. As mentes abertas à descoberta do maravilhoso que cada ser pode conter é que são raras. Ela não é apenas uma rapariga grávida sem marido. Ela é Ana Ferreira, uma menina-mulher que sabe o que é trabalhar para garantir o sustento de uma família. É um ser que ama e que gosta de ser amado. É uma pessoa que tem calos nas mãos de trabalhar a terra, que gosta do cheiro do milho acabado de cozer, que tem sonhos grandiosos e sonhos idiotas. É alguém que sabe perdoar incondicionalmente… Quantos se podem gabar do mesmo? Ela poderia voltar para o refúgio da família, mas isso seria fracassar. Estava na altura de escrever a primeira carta, mas as linhas permaneciam vazias e os olhos teimavam em turvar-se dificultando-lhe a visão. Já passaram duas semanas desde a sua chegada e ela não podia baixar os braços.
- Boa tarde! – Ana dirigia-se á sua senhoria de quem o nome não se conseguia lembrar. – Tem um minuto para falarmos?
    A mulher de formas avultadas pousou o pano molhado que estava utilizar para lavar as mesas onde os inquilinos tomavam o pequeno-almoço, e concentrou o seu olhar nas faces de Ana temendo que a rapariga se tivesse metido em sarilhos.
- A senhora tem muito trabalho aqui, talvez precisasse de uma empregada… - Ana sentia-se desajeitada a falar sozinha tendo apenas um hum de vez em quando como resposta. – Eu podia trabalhar para si.
    A mulher puxou uma cadeira e sentou-se deixando que as suas carnes transbordassem pela beira do banco. Abanou a cabeça e finalmente falou.
- Estás a ficar sem dinheiro?
- Sim!
- Ainda tens dinheiro para mais uma semana?
- Sim! – Ana começava a sentir uma pontada de esperança. Ela parecia interessada na situação de Ana.
- Não tens mais ninguém a quem recorrer nesta ilha?
- Não.
- Então fazemos assim… Tu pagas-me já mais uma semana e começas a trabalhar para mim na próxima semana. Tenho de fazer contas para ver o que te vou pagar… Pode ser assim?
    Ana sentiu uma explosão de alegria e rodeou o pescoço farto daquela senhora a quem nunca lhe vira um sorriso. Ela teria um tecto para ela e para a filha e quando chegasse o próximo ano já não estaria grávida e inscrever-se-ia à mesma no exame sem ter de prestar favores duvidosos a um homem repugnante, incapaz de conseguir carinho de alguém de outra forma para além da chantagem.
    Ana acordou no dia seguinte disposta a passear pelas ruas e disfrutar os poucos dias que tinha antes de começar a trabalhar. Desceu as escadas da pensão e dirigiu um bom dia caloroso à sua nova patroa, recebendo desta um acenar de cabeça pouco convincente. O frio fazia-se sentir na vermelhidão da ponta do nariz. Os bafos das pessoas exibiam-se em vapores e Ana rodeava a barriga num acto impensado de protecção. A manhã foi passada a vaguear de um lado para o outro. Aquela será a sua terra nos próximos tempos pelo que queria familiarizar-se o melhor possível com o seu novo futuro. Ana andou sem que a longa distância se traduzisse em cansaço e subiu o Monte Brasil que a deslumbrara desde o primeiro dia. Tratava-se de um cone abatido de um antigo vulcão já extinto, onde Ana se permitiu a uma vista de cortar a respiração. Duas baías rendiam-se ao formato daquele monte e acolhiam um mar azul brilhante e calmo que acariciava a terra com uma estima subalterna. Os ilhéus exibiam-se solitariamente desprezando novas companhias e a cidade estendia-se rendida aos encantos de um dia limpo e frio que permitia uma visão longínqua da sua ilha muito ao fundo, mostrando-se numa humilde sombra duvidosa. A saudade invadiu-lhe inconvenientemente o peito a apoderou-se da sua garganta que se libertava em soluços contínuos, que se faziam acompanhar de lágrimas gordas que rolavam no desespero da solidão. Ela estava sozinha e dependia apenas de si mesma. E esta ideia era aterradora. A vida é convenientemente fácil quando se tem o mundo aos nossos pés, mas pode ser incrivelmente cruel para todos aqueles que lutam ininterruptamente por um pequeno lugar nesse mesmo mundo.
    O caminho de volta mostrou-se demasiado longo e o peso do cansaço apoderou-se das suas pernas. Ana apressou-se no regresso à pensão e assim que avistou a porta delineada por uma pedra desajeitada de basalto que contratava com as paredes alvas, Ana sorriu. Subiu as escadas em passadas pesadas e lentas e quando virou a maçaneta da sua porta verificou que esta não abria. Sentiu uma frustração por ter de adiar o seu descanso, quando o desejo pela sua cama crescia no mesmo ritmos que as suas pálpebras teimavam em descair. Ana olhou à sua volta procurando uma solução milagrosa que lhe abrisse aquela porta teimosa. Nesta busca visual, encontrou a sua mala deposta ao lado da porta do quarto e depois de um momento de estranheza sentiu um receio aflitivo apoderar-se de todos o seu ser. Ana pegou na mala pesada e desceu as escadas esquecendo o cansaço. Pousou a mala em frente ao pesado balcão gasto pelo tempo onde histórias várias estavam entranhadas nos riscos abundantes e impróprios.
- O meu quarto está trancado e a minha mala estava no corredor… - Ana fitava a sua senhoria com uns olhos verdes esbugalhados que ansiavam um esclarecimento rápido e a sua mente rezava a Deus para que ela lhe dissesse que tinha sido um erro.
- Sim! – Foi a única resposta que aquela mulher lhe deu.
- Como assim, sim? – Ana sentia as bochechas incharem de indignação a as suas veias da fronte começavam a latejar. – Vai mudar-me de quarto, é isso?
- Não! – Aquela serenidade das respostas revolvia uma inquietação crescente no rancor de Ana.
- Eu tenho mais uma semana paga para além desta…
- Não me parece!
    Ana perdeu a pouca paciência que lhe restava e descarregou naquela mulher todos os seus rancores e receios reprimidos. Agarrou o colarinho daquela senhora deformada pela abundância de gorduras e gritou-lhe bem perto das suas faces redondas e coradas.
- Sua maldita! Vadia! Não são pessoas como eu que sujam o mundo… São pessoas como tu que tornam todo o tipo de convivência humana impossível. Eu amei, e foi este o meu pecado… Mas tu roubaste uma mulher sozinha e grávida e abandonaste-a a uma sorte negra… Vai para o diabo que te carregue sua gorda virgem… O pecado que eu cometi é por ti muito desejado, mas o pecado que tu cometas é por mim repugnado…
    Ana pegou na sua mala e saiu rumo à rua e à incerteza com a dignidade de uma aristocrata. Assim que soube que a pensão já não estaria nas suas costas, Ana deixou que a sua miséria surgisse numa plenitude de um desespero gritante e profundo. Porque poucos conhecem a verdadeira profundeza que o desespero pode ter. Aquele desespero que apaga todas a hipóteses, que encolhe todas as escolhas, que elimina todas as esperanças. Aquele desespero que só se faz acompanhar por uma medo de tudo, porque a única coisa que verdadeiramente nos pertence é o nada. Um desespero atroz que tira tudo o que de básico e intuitivamente se possui até o ar que se respira se torna difícil de adquirir. Um desespero que se faz acompanhar pela miséria da rejeição de um tecto, de uma moeda, de um prato de comida, de um carinho. O desespero e a miséria quando se fundem tornam a divindade e a potencialidade de um ser humano, numa curta e previsível mortal existência. E as ideias de uma morte lenta e gloriosa começa a ser o único conforto de uma vida triste, e a mesquinhice de assistir ao mal dos outros torna-se o único motivo para sorrir… A miséria não tem uma receita eficaz, e quando um ser humano mergulha nos limites desta miséria e deste desespero o resto do mundo deixa de ter planos para esse individuo e esse individuo deixa de ter esperanças nesse mundo.

CAPÍTULO XIV - Na Base da Montanha


CAPÍTULO XIV


    As entranhas revolviam-se de uma forma que lhe parecia impossível e expulsavam compulsivamente tudo o que se encontrava alojado no estômago de Ana. O mar fustigava aquela embarcação que era agora demasiado pequena e o sal entranhava-se na sua pele como a água se entranha na terra. As horas daquela viagem pareceram-lhe dias e quando finalmente teve a ilha pretendida no seu horizonte, Ana não teve forças para sorrir.
    Apesar do seu estado débil, Ana pegou na sua mala e saiu do barco. A primeira sensação que teve foi de imensidão. Aquele porto nada tinha de parecido com os portos da sua ilha. A azáfama era muito mais ligeira e as cabeças misturavam-se sem que lhe fosse possível personalizar cada individuo. A cidade erguia-se logo por cima do porto, como se o fosse abafar, e as escadas ingremes que Ana fixava naquele momento pareciam-lhe intermináveis. A subida foi-lhe quase tão penosa como a viajem de barco e o seu desejo de chegar depressa à pensão onde ficaria instalada aumentava a cada degrau.
No cimo das escadas, que agora não lhe pareciam tão penosas, Ana permitiu-se um deslumbre. As ruas palpitavam trocas comercias, trocas de palavras, trocas de vivências e ninguém parecia reparar demasiado tempo em ninguém. Era o lugar ideal para ela que queria passar despercebida. No meio de tantas casas e de tanta vida, as pessoas não deviam ter tempo para olhar duas vezes para a sua condição e comentar a falta da aliança no dedo. Ana só via tanta gente junta nas festas do Sr. Espírito Santo. Mas ali era um dia normal que reunia todas aquelas pessoas em tarefas quotidianas. O cheiro a mar voltou a entranhar-se nas narinas e revolveram-lhe o estômago apressando-a no seu objectivo de encontrar uma cama. Ana tirou um papelinho do bolso com o nome e morada da pensão e pediu indicações a uma senhora de cabelo branco apanhado de forma desajeitada por uns ganchos demasiado grandes. O sorriso que acompanhou as indicações deixou à vista uma falta significativa de dentes.
- Se subires esta canada e virares à direita no cimo dás logo com a pensão.
- Obrigada! – Ana fez um esforço para retribuir o sorriso caloroso que recebia da senhora.
- Vai ser uma menina!
    Esta afirmação deixou Ana um pouco perplexa. Ainda não pensara no seu bebé com um sexo definido e agora tinha naquele olhar cansado rodeado por rugas de sabedoria a certeza de que aquela mulher tinha acertado. Ela teria uma menina. Uma menina que seria só sua…
    A pensão era simples mas asseada. As paredes do quarto deixavam transparecer humidade nos cantos e disfarçavam mal as paredes de pedra mal caiadas. A cama estreita, uma cómoda e uma cadeira com pernas disformes contabilizavam a totalidade do seu conteúdo.
- Tem de pagar a semana sempre adiantado. – A dona da pensão era uma mulher com um corpo abundante que parecia transbordar por debaixo da saia demasiado rodada. O peito pesado movia-se debaixo de uma camisa contrabalançando o rebolar das ancas.
- Claro! Aqui tem o dinheiro para a primeira semana! – Ana esticou o dinheiro àquela mulher constantemente ofegante que o contava cuidadosamente como se tivesse dificuldades na soma.
- Quando é que o seu marido vem? – A mulher não conseguiu conter a sua curiosidade.
- Não tenho marido! Vou ficar aqui sozinha. Vou inscrever-me no exame para entrar no magistério… Vou ser professora. – Ana profetizou aquele futuro que ela buscava com uma ansiedade desmedida, mais para se convencer a si mesma do que à dona da pensão, recebendo da mulher um encolher de ombros desmotivador. Assim que a porta do quarto se fechou e Ana se sentiu finalmente sozinha deixou-se cair na cama e adormeceu até ao dia seguinte.
    O dia amanheceu cedo numa nova esperança. Ana encheu uma bacia de água fervida e equilibrou-a até à intimidade do seu quarto. Depois de se lavar, vestiu um vestido azul-escuro com uma gola muito bem engomada em renda e prendeu o cabelo num coque sem que deixasse escapar algum cabelo mais rebelde. Ana mirou-se naquele espelho tosco que tinha por cima da cabeceira e aprovou o seu visual discreto e um pouco conservador. Parecia uma professora e essa ideia fê-la sorrir.
    Ana desceu as escadas da pensão a saltitar e dirigiu-se à pequena cozinha para beber um pouco de leite e comer um pão com queijo. Depois de saciada saiu da pensão dirigindo um sorriso afectuoso á dona da pensão e recebendo em troca um revirar de olhos. Quando Ana encontrou o ar frio da manhã fechou os olhos e deixou que os raios de sol lhe aquecessem o espirito naquela manhã fria de inverno. O papel com a morada do magistério estava guardado na palma da sua mão como se se tratasse de um tesouro. Ana começou a andar sem rumo apenas observando o que no dia anterior não tinha sido devidamente apreciado. Assustou-se com a buzina de um carro preto que quase a atropelara. Ali ela teria de se deslocar sempre em cima dos passeios, uma vez que os carros eram abundantes. As casas encostadas umas às outras delineavam as ruas em calçada. Não se via ruelas em terra batida e tudo parecia muito asseado. As pequenas varandas eram ornamentadas com flores variadas em vasos cuidados para o efeito. Ana anda até chegar à Praça velha. Os seus olhos deslumbraram-se com a grandeza daquela obra. A calçada da praça era ornamentada em granito banco e basalto preto, formando desenhos que Ana tinha medo de pisar. À volta da praça espalhavam-se altos postes com um vidro em cima como se fossem lanternas. Ana aproximou-se e inspeccionou aquelas altas lamparinas lembrando-se da explicação que Francisco lhe dera sobre a electricidade. Ana sentiu um aperto no peito ao lembrar-se daquela noite e fechou os olhos visualizando as feições de Francisco bailando a chamarrita com ela naquele baile de uma freguesia simples. O sentimento continuava a palpitar-lhe nas veias e percorria-lhe o corpo descaradamente provocando-lhe agonias várias. A imagem do jovem médico invadia-lhe a mente e enchia-lhe o peito de sensações. Os olhos rasaram-se com uma água saudosista e fixaram o Monte Brasil que impunha o seu verde naquela paisagem citadina. Ana forçou-se a ultrapassar a saudade súbita que lhe invadira a alma e concentrou-se no seu futuro. Apertou o papel na palma da mão e seguiu rumo ao magistério. O edifício apresentou-se à sua frente numa sequência previsível das casas que se multiplicavam alvas com contornos de basalto. Ana entrou a medo e deparou-se com um corredor escuro com o chão de soalho. Ao fundo uma secretária escura de carvalho preencheu os receios de Ana que avançou vagarosamente fixando. Não se encontrava ninguém para a receber.
- Está aí alguém? – Perguntou Ana num tom de voz baixo como se tivesse receio de acordar alguém. Incentivada pela falta de resposta Ana avançou um pouco mais e espreitou por uma porta entreaberta onde descobriu uma senhora de cabelo branco curto que se equilibrava sobre um banco vacilante estivando-se numa tentativa de alcançar uma pasta de arquivo na última prateleira. Ana prevendo que aquela acção seria mal sucedida aproximou-se mesmo a tempo de seguras a senhora antes de esta cair.
- Oh! – A senhora rondava os cinquenta anos de idade e tinha uns olhos pequenos e astutos que se perdiam numas faces redondas e fogueadas. – Muito obrigada minha querida! – A mulher alisou a saia cinzenta com as palmas da mão e recolheu a pasta pretendida do chão com um ar triunfante. – Então! O que a traz por cá? – A mulher observava agora Ana com um olhar avalista que se demorou na barriga proeminente.
- Quero inscrever-me para fazer o próximo exame de acesso ao curso de professora. – Ana sentia as pernas a tremerem-lhe, mas a voz saiu límpida e clara, não deixando dúvidas do assunto que a fizera enfrentar um mar revolto de inverno.
- Claro querida! Vou encaminhá-la para o gabinete do professor Martins. – A mulher entrelaçou o seu braço no braço de Ana conduzindo-a pelo corredor em direcção a uma escada que subiram sem pressas. De frente à porta pretendida a mulher entrou sozinha, deixando Ana à espera. Quando a porta se voltou a abrir a mulher piscou um olho cúmplice a Ana. – Podes entrar minha querida!
    O gabinete era mais pequeno do que Ana imaginara e encontrava-se apinhado de pastas, livros e resmas de folhas. Uma secretária pesada e escura alongava-se em frente a uma janela alta que deixava entrar a luz descaradamente. Um homem debruçado sobre a secretária observava Ana por cima de uns óculos redondos que lhe assentavam na ponta do nariz. Como o homem não lhe dirigira palavra Ana avançou na sua direcção e apresentou-se de forma cordial.
- Bom dia! Eu sou a Ana Ferreira! – Ana esticou a mão no intuito de cumprimentar, mas como o homem não mexeu um único músculo, Ana baixou a sua mão, esticou um pouco mais o queixo e sentou-se sem pedir licença numa atitude desafiadora. – Quero inscrever-me no exame de admissão ao curso de professora.
- O próximo exame é só em Maio! – A resposta seca acompanhada por aquele olhar que não piscava deixou Ana desprotegida por uns segundos.
- Muito bem! Eu vim da ilha do Pico de propósito para isto! Gostava de ter mais alguma informação!
- O seu marido ficou no Pico ou veio consigo? – A pergunta mordaz foi feita com um desviar de olhos para o dedo anelar de Ana.
- Não tenho marido?
- Então está simplesmente gorda? – Ana sentiu-se estremecer perante aquele comentário infeliz.
- Eu não tenho problemas de peso graças a Deus! Estou grávida! Este é um facto fácil de se constatar mesmo para mentes mais atrasadas. – Ana não conseguiu evitar a ironia que resultou num primeiro movimento de músculos daquele homem que se levantou, contornou a secretária e depositou-se ao lado de Ana.
- Estás grávida e sem marido?
-Sim!
    O homem que começava a ter de lidar com a calvície disfarçando-a com um puxar de cabelo do lado oposto que o tornava ridículo, aproximou-se mais de Ana.
- És uma mulher fácil e bonita! Isso pode ser um ponto a teu favor!
    Ana sentiu-se humilhada naquele comentário, mas a sua garganta apertou-se impedindo uma resposta afiada de sair. Tinha de se conter. Enfrentaria aquela humilhação e outras tantas desde que conseguisse atingir o seu objectivo. É fácil humilhar aqueles que supostamente estão numa posição frágil. É fácil e cobarde. E quem se esconde neste tipo de atitude é porque sofre de maiores fragilidades escondidas e dissimuladas por atitudes superiores e cruéis.
- O próximo exame é em Janeiro, mas não temos tempo suficiente para te avaliar convenientemente até lá, não concordas?- Ana permanecia rígida e muda face ao roçar das pontas dos dedos amarelas do tabaco pela sua face. – Mas se te portares bem até Maio então poderás fazer o teu exame! – O olhar lascivo aproximou-se de Ana que lhe sentiu um bafo pestilento que ofegava sobre a cova do seu pescoço. Ana não aguentou mais e levantou-se libertando um punho fechado sobre a virilha do professor Martins que rugiu de dor. Ana não fez um movimento de arrependimento, nem esticou uma mão para ajudar aquele homem que rebolava de dor. Simplesmente saiu. Quando passou pela secretária despediu-se convenientemente.
- Talvez seja melhor levar gelo ao professor Martins! – Ana leu um olhar risonho de aprovação na cara redonda daquela mulher que lhe dirigiu um suave sorriso.