sábado, 17 de dezembro de 2011

obrigada

Peço desculpa publicar esta mensagem no meio do livro. Sei que esperavam um novo capitulo. Mas tenho de partilhar esta boa nova com quem gosta de ler o que eu escrevo. A corpos editora vai publicar o meu primeiro romance. Estou muito feliz e queria partilhar esta felicidade convosco. O meu muito obrigada a todos aqueles que se deleitam com as minhas histórias.

domingo, 11 de dezembro de 2011

CAPÍTULO XIII - Na Base da Montanha




   
    A barriga proeminente própria dos cinco meses de gestação partilhou a harmonia de uma ceia natalícia onde reinou a fé, a amizade, o amor, mas principalmente a lealdade. Porque o que une as relações humanas é a lealdade. Uma relação profissional desleal acaba. Uma amizade que engana termina. Um amor que mente magoa. A lealdade é o alicerce de qualquer tipo de relação. Não existe confiança onde a lealdade é inexistente, e não existe relação sem confiança. Aquela humilde família vítima de acusações e maledicências era abençoada com este nobre sentimento e protegiam-se uns aos outros sem oportunismos escondidos. Aqueles pais acarinhavam as suas três meninas sem esperarem falsos orgulhos que pudessem abanar e desfilar perante olhares alheios. Eles amavam desmedidamente sem cobranças ou desilusões. Simplesmente amavam… Amam…
    A mesa sustentava uma ceia rara naquela casa. As papas de aveia deram lugar a um guisado de carne acompanhado com batata assada. O arroz doce ainda fumegava e derretia-se dentro das bocas deixando o rasto do sabor da canela. As filhós davam o retoque final naquele banquete. Ao contrário do tradicional nenhum deles foi à missa do galo. O assunto nem foi comentado naquela família. Todos perceberam que cometeriam aquele pecado em conjunto para protegerem Ana de qualquer tipo de humilhação. Até Luzia parecia aceitar esta falha com uma certa normalidade. Para compensarem rezaram em conjunto à imagem do Menino Jesus que tinham num Altar que fazia lembrar uma pirâmide onde se destacava a alvura das toalhas de linho que cobriam cada degrau e os napperons delineados de hábeis rendas. A imagem do Menino Jesus marcava a passagem de duas gerações, mas continuava a aquecer os corações daqueles que a adoravam. O corpo deitado com os bracinhos inclinados para um céu distante, os pés cruzados e uns olhos brilhantes que pareciam compreender a partilhar a mesma esperança daquela família. O altar enchia-se de laranjas e tangerinas que significavam as oferendas que Lhe faziam e neste cenário não podia falta a quadra que partilhava do mesmo aroma e numa só voz cantarolavam.
- Ó meu Menino Jesus,
   A sua capela cheira
   Cheira a cravos, cheira a rosas
   Cheira a flor de laranjeira!

- Que Deus abençoe a minha irmã Ana e o bebé! – Maria foi a primeira a verbalizar em voz alta o seu pedido. Todos interiorizaram aquelas palavras inocentes e rezaram para que essa prece se elevasse e se tornasse prioritária junto àquele Deus misericordioso.
- Eu peço a Deus que proteja e ampare a minha família como eles estão a fazer comigo neste momento em que tanto preciso. Peço a Deus que lhes estenda a mão e os eleve numa nobreza de sentimentos que só alguns são capazes. – Ana fechou os olhos e sentiu cada palavra que a sua garganta expulsava. – Rezo para que a minha irmã Glória usufrua da felicidade de um longo casamento com este marido bom que lhe colocaste no seu caminho. Rezo para que continues a iluminar a alma brilhante da minha irmã Maria para que ela siga a sua vocação e para que continue justa e bondosa nos seus actos. Rezo para que os meus pais não sofram descriminações por minha causa que ultrapassem as suas forças.
    A noite aquecida pelo forno a lenha que mantiveram aceso na cozinha manteve-se num ritmo caloroso e simpático sem ligar a tristezas ou sofrimentos antecipados. Estavam todos a despedirem-se de Ana que partiria no primeiro dia de Janeiro para a ilha da Terceira rumo a um futuro incerto. Ela inscrevera-se no exame de aferição para a escola do magistério, mas foi-lhe recusado fazer o exame da sua própria ilha devido à sua condição. Esta palavra ainda ensombrava as ideias de Ana… Condição… Era esta a palavra usada para se referirem à sua gravidez. Não era uma condição digna de exemplo a futuros alunos. Uma professora devia ser irrepreensível em todas as suas acções de modo a que os seus alunos a tomem por exemplo. Esta era a afirmação mais ridícula que já tinha ouvido. As crianças deviam olhar para o seu exemplo de frente e retirarem as suas próprias conclusões, só assim teriam capacidade de avaliar os seus próprios actos e consequências de forma consciente. Deviam saber avaliar os possíveis resultados das suas escolhas. Deviam aprender a enfrentar as consequências e deviam inspirar-se nela para verem que não são obrigadas a caírem num buraco negro que lhes sugará a alma e as forças sempre que agirem em desconformidade com as regras. E Ana não pode ter agido de forma tão errada. Ela não se arrepende de ter amado para além do entendimento superficial do amor. De se ter entregado sem perspectivas ou cobranças. Sem esperar ser recompensada por isso, porque amar desmesuradamente é entregar sem esperar nada em troca e ela sabia que era capaz de tal acto. E todos queriam fazê-la acreditar que estava a ser castigada por isso. Como poderia acreditar em semelhante coisa, se foi neste exacto momento que mais se sentiu amada e amparada pela sua família. Foi nesta circunstância que ela percebeu que o amor que os seus lhe dispensavam era incomensurável. E foi nesta loucura que Deus a abençoou com uma criança que ela tanto desejava. A vida é feita de contrastes e balanços. Para possuirmos o benefício de uma felicidade plena, temos de ter a capacidade de a contrabalançar com algum sofrimento, mas só depende de cada um dar mais importância ao momento de felicidade ou ao sofrimento que a vida teve que impor para manter a ordem das coisas.
    Os dias finais daquele ano passaram-se sem que Ana saísse de casa ou recebessem qualquer visita. Fora daquelas paredes só os pais e irmãs eram alvo de olhares de soslaio e de comentários murmurados. Ana sabia que estava a ser poupada a semelhantes constrangimentos, mas mesmo fechada ela sabia… Ela sentia as malícias. Ouviu os pais comentarem que o marido de Glória se metera numa briga na Voz do Campo para a defender de comentários perversos. Sabia que a tia Espirito Santo inventara uma desculpa para dissimular o parentesco que a unia à família. Os vizinhos partiam para o mato sem esperarem pelo pai como era costume fazerem. Mas o que mais a magoava era o silêncio de Francisco… Nunca mais ouve uma palavra um bilhete um sinal. Ele pô-la fora da sua vida e fechou-lhe a porta na cara, sem uma justificação ou uma esperança. Ana ainda sentia uma pontada de desilusão e mágoa da rejeição, mas no seu íntimo sabia que a longo prazo ela seria a beneficiada. Ela usufruiria sozinha do fruto daquela relação e Francisco ficaria privado do seu próprio filho, e só Deus sabia o peso que a sua consciência carregaria quando o desejo de disfrutar daquilo que ela desfrutará um dia, lhe cair sobre a memória e atemorizar-lhe o arrependimento.
    A última noite naquela casa suportava a saudade antecipada e o tempo parecia curto para absorver todas as palavras, olhares, e gestos que lhes seriam negados nos próximos meses. Glória passaria aquela noite na casa dos Ferreira com o marido de forma que não conseguia afastar a sua mão da irmã. Roçava os seus dedos pálidos nos braços de Ana e acariciava-lhe a barriga constantemente. Maria refugiava-se no ângulo do cotovelo de Ana e enterrava o seu nariz entre o peito e a barriga da irmã tentando reter o cheiro que tanta falta lhe faria. Luzia confirmava e reconfirmava as malas da filha garantindo que não lhe faltava nada, mas os olhos enublados não lhe facilitavam o trabalho. José tentava inalar um pouco de ar forçando aquela garganta que teimava em fechar-se. Ele admirava a filha, a força interior de que ela dispunha naturalmente, a justiça nos seus actos e o discernimento das suas decisões. Ela enfrentaria um futuro incerto sem garantias de sucesso, sem facilidades ou facilitismos, apenas com um punhado de desejos e um lar para onde poderá sempre voltar. José já sentia orgulho naquela menina mulher que de queixo erguido iria enfrentar sozinha novas oportunidades e novas derrotas, mas no seu íntimo José sabia que se havia alguém neste mundo capaz de conseguir algo positivo de uma situação desastrosa, esse alguém seria a sua filha Ana. Deus só coloca problemas na medida da capacidade de quem os deve resolver. Cabe a cada um saber lidar com essa dificuldade e conseguir uma nova situação mais confortável e fortalecida.
- Vinha um coelhinho
   Da roça a passear
   Encontrou uma coelhinha
   Com quem logo quis casar
   Minha querida minha doce
   Minha linda coelhinha
   Vim falar-te de amor
    Com intenção de seres minha…
    Maria já dormia sob o efeito da voz de Ana que lhe contava pela última vez ladainhas sussurradas para embalar a irmã. Ana deixou que os seus olhos se fechassem e sonhassem com um futuro promissor contrário a todas as previsões que mentes limitadas pudessem intuir.
    Quando o dia amanheceu, o frio foi o primeiro sinal físico que Ana sentiu e só depois o beijo carinhoso de Maria que a mirava com uns olhos inchados e vermelhos denunciadores de algum tempo de sofrimento. O momento da despedida começara e Ana sentiu um aperto no ventre. A criança que transportava mexia-se fazendo com que a sua barriga ondulasse provocando uma gargalhada nervosa nas duas irmãs. Aquela criança era uma dádiva naquela família e ninguém se atrevia sequer a sentir o contrário.
    As primeiras rotinas fizeram-se num silêncio penoso que carregava preocupações e expectativas, desejos e receios. Ana despediu-se de cada divisão da casa e com uns olhos secos de sofrimento que contrariavam o coração. Saiu para o pátio de terra batida absorvendo pela última vez o terreno dianteiro onde o milho verde lhe acenava. Glória chegou mesmo na altura em que fechavam o portão exterior.
    Foram todos na velha camioneta. Ana sentia-se grata pela família que Deus lhe tinha dado. Contaram-se história, recordaram-se momentos que não precisavam de ser verbalizados para evitar o seu esquecimento. Discutiram vivamente o futuro de Maria, concordando em uníssono que não passava pelo trabalho duro da terra. Maria descrevia-se como uma futura mulher independente que abusaria do batom, provocando uma gargalhada geral, mal entendida pelos restantes passageiros que miravam com um desdém maldoso aquela família pouco resignada á vergonha que os assombrava.
    O cais borbulhava uma vida colorida em passagens apressadas de encomendas de última hora, os últimos conselhos e os últimos abraços sentidos. O barco de Ana já se encontrava atracado, mas o embarque ainda tardava. Luzia afagava-lhe o rosto como se o quisesse memorizar para além do olhar. José sentia uma dormência nos olhos e um aperto na garganta por saber que estava abrir mão da sua menina. Maria e Glória apoderaram-se de cada braço da irmã e falavam as duas ao mesmo tempo, arrancando promessas de cartas frequentes e uma visita no Verão. João mantinha-se ao lado da esposa apoiando a cunhada prenha e solteira sem vergonhas e com um orgulho próprio por fazer parte daquele pequeno mundo familiar. Ana recebia aquelas atenções sem embaraços aproveitando todas elas como forma de compensar os próximos meses. Os seus olhos passeavam de cara em cara recolhendo o máximo de memórias para seu consolo futuro, quando pousaram ao acaso na figura de Francisco. Ele continuava alto e com uma aspecto poderoso envergando um fato impecavelmente vincado, coberto por um sobretudo muito sofisticado que lhe caia de uma forma agradavelmente desleixada. Ana sentiu que o seu coração parava. O seu ventre deu um salto ao reconhecer o progenitor. Ele estava acompanhado por uma mulher alta e esguia de cabelo preto lustroso curto que lhe emoldurava uma cara redonda e atrevida. Trocavam pequenas carícias dando-lhes um toque casual. Aquela mulher transpirava um ar citadino e sofisticado com o qual Ana não podia competir. Envergava uma camisola justa que lhe evidenciava uns seios redondos e promissores que se esvaiam numa cintura fina. A saia favorecia-lhe a curva das ancas e tronava-a mais esguia com umas curvas perfeitas. A maquiagem tornava-lhe os seus traços doces e perfeitos como se fosse uma boneca de porcelana. Agora percebia de uma forma cruel que não tinha significado nada para Francisco. Ela era apenas uma conquista interessante, que lhe causou a adrenalina da caça.
- Estás bem Ana? – Glória percebeu o motivo daquele olhar longínquo.
- Estou! Não te preocupes!
- Aquele filho-da-mão! Eu havia de lá ir e obrigá-lo a ter alguma dignidade nas ventas. – José sentia a raiva fervilhar-lhe nas veias. A filha cometeu um erro e está a pagar um preço cruel. Aquele canalha cometeu o mesmo erro e anda a namoriscar com uma bisca qualquer.
- Tem calma pai! Este é um momento nosso. Não vamos estragar a nossa despedida! – Ana tentava transmitir uma tranquilidade que não sentia. Neste exacto momento sentia-se principalmente humilhada. Mas queria aproveitar os últimos minutos com aqueles que verdadeiramente lhe interessam.
    Maria lia indignação no olhar de todos quando miravam de soslaio Francisco. Sabia que todos tinham vontade de o magoar de alguma forma, mas eram adultos e tinham de ser ponderados. Mas ela era apenas uma criancinha. E as criancinhas podem fazer coisas que os adultos não podem… Afinal são apenas crianças. E com esta razão do seu lado, Maria dirigiu-se ao jovem médico sem que a família percebesse a sua falta e puxou-lhe suavemente a manga do sobretudo. Francisco desviou o olhar por cima do seu ombro e a primeira sensação que teve foi a imagem de Ana nos seus olhos. O aperto que sentiu no peito fê-lo apertar o colarinho da camisa. E antes que a sua mente pudesse desenvolver mais alguma ideia, Francisco deparou-se com a segunda sensação. Uma dor aguda na canela resultante de um pontapé demasiado certeiro para uma miúda de onze anos que neste momento corria a sorrir de prazer para junto da irmã. Maria sentia-se vingada.
    Francisco não conseguia desviar os olhos de Ana. E sentiu um pouco de desilusão ao ver que ela não estava com um ar de sofrimento. Este era um pensamento egoísta, mas magoava-o muito pensar que ela já não sofria por ele. A barriga dela era exibida descaradamente e acertou-lhe como uma flecha. Ela era forte e determinada, o tipo de mulher que não se rendia facilmente, com um riso fácil que lhe atingia a alma. E ele sentia saudades dela. Sentia tantas saudades dela. Porque é que as coisas não eram simples? Porque é que as pessoas tinham de julgar tão facilmente? Ele sabia que era a sua reputação que estava em jogo e na altura não podia arriscar. Mas talvez as pessoas pudessem ver as coisas de forma diferente. Se ele fizesse parecer um acto heróico da sua parte, munido por um grande amor, as pessoas talvez se rendessem a uma linda história de amor e ainda sairia com a sua imagem reforçada… Para além de poder ficar com a sua Ana. Num impulso provocado por esta corrente de esperanças, Francisco dirigiu-se ao seu futuro num passo determinado.
- Ana! – Francisco sentiu que a emoção de a ter ali tão perto de si lhe transtornava as ideias. O seu olhar continuava quente, e ela mordiscava o lábio inferior de uma forma ingenuamente sedutora. – Posso falar contigo?
- Eu tenho um barco para apanhar e estou a despedir-me da minha família! – Ana foi mais dura do que imaginou que conseguiria e sentiu um formigueiro de trinfo invadir-lhe as entranhas quando viu um brilho de espanto e receio traspassar o olhar de Francisco.
- Como assim? Vais ao Faial? – Francisco começou a sentir o seu coração acelerar o ritmo cardíaco de uma forma louca e as suas mãos ficaram dormentes.
- Não! Vou mudar-me para a Terceira! – Ana sorriu-lhe condescendentemente. Francisco agarrou-lhe os braços com uma força excessiva e deixou que o medo se reflectisse sem vergonha nos seus olhos baços e lacrimejantes.
- Não podes! Não quero que vás!
- Estás a ser ridículo Francisco! – Ana começava a não sentir-se tão segura, mas tinha de ser forte. Ela não quer um futuro com uma pessoa fraca que vive em função dos pensamentos e julgamentos alheios. Ela quer alguém que olhe para ela e que esqueça o resto do mundo. Ela quer alguém capaz de enfrentar a humanidade para defendê-la. Ela quer alguém que viva para ela em primeiro lugar e que disfrute do resto do mundo ao seu lado. Se Francisco fosse capaz disso… então ela não hesitaria.
- Por favor não vás Ana! Eu imploro-te! – Francisco deixou que o desespero rolasse pelas suas faces e a voz apertada se soltasse. – Fica comigo Ana. Vamos enfrentar isto juntos! Eu já pensei em tudo! Eu achava que as pessoas iam julgar-me apontar-me o dedo, mas podemos transformar isto numa história de amor. Vamos derreter os corações destas gentes com a nossa história e depois todos vão aceitar a nossa relação… Para mim é mais do que claro que tu me mereces… Que estás à altura de alguém como eu, independentemente do que os outros dizem…
    Aquelas palavras magoaram mais Ana do que todas as atitudes ou falta delas até àquele momento. Ana encheu o peito e mostrou uma dignidade que ficou gravada na memória, no coração, na alma de Francisco…
- Largue-me doutor Francisco! – Francisco deixou cair as mãos alheio às nódoas negras que deixara impressas nos braços de Ana. – Tu estás equivocado nesse teu raciocínio. Não sou eu que não estou à tua altura. És tu que não me mereces. – Francisco levou algum tempo a processar aquelas palavras. Ana pegou-lhe na mão a pousou-a sobre a sua barriga. A resposta àquele toque foi um pequeno pontapé, como se tivesse reconhecido o progenitor.
- Apresento-te o meu filho! Aquele que tu ajudaste a gerar! – Ana afastou novamente a mão de Francisco E abraçou-o sem remorsos. Afinal ele não era o culpado. Ele amava-a e ela sabia que sim, mas se uma forma que não servia na vida dela. Francisco apertou Ana nos braços sem perceber bem o que se estava a passar, até ao momento em que Ana lhe sussurrou ao ouvido.
- Adeus Francisco! Eu amo-te, mas tu és demasiado fraco para mim…
    Francisco sentiu o seu mundo ruir e a dor do entendimento instalou-se desconfortavelmente no seu peito. Os seus olhos não se desviaram daquela criatura que tinha movido os alicerces da sua vida enquanto ela se despedia de uma família humilde que a apoiava com uma capacidade superior que ele não soubera ter. Ana subiu para o barco e debruçou-se acenando pela última vez àqueles que ela amava. Francisco não desviou o olhar na esperança de merecer um último aceno que não lhe foi dedicado.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

CAPÍTULO XII - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XII



    O dia amanheceu na frieza que acompanhava a despedida de José e Luzia quando saíram de casa para ir à vila. A caminhada adivinhava-se longa e o silêncio que se instalou entre o casal tornou o caminho mais difícil. A preocupação com o futuro da filha pesava-lhes mais do que qualquer humilhação que aquela situação poderia significar. Os olhos miraram sem apreciar da forma merecida as pontas negras da vila que se alongavam em braços de magma adormecido por entre o mar preguiçoso que se baloiçava sem sentido acariciando desajeitadamente aquele manto negro, e penetrava descaradamente as reentrâncias que se perdiam em grutas fundas de mistérios e águas.
    A porta do médico da vila apresentou-se à frente dos Ferreira num pronúncio de dificuldade, como se houvesse uma chuva permanente que lhes molhava a alma e lavava a esperança.
- Bom dia Luzia! Como está José? – Clemência recebeu o casal inesperado com uma cordialidade educada apesar de os seus olhos sinceros terem transmitido a surpresa de uma forma bastante clara.
- Desculpe incomodá-la, mas temos uma conversa muito importante para ter convosco. – José cumprimentou a dona da casa com um embaraço que denunciava uma conversa difícil. – O Dr. Bruno está?
- Sim! Está na sala! Entrem! Estejam à vontade. – Clemência conduziu as visitas até à sala onde foram calorosamente recebidos por Bruno que sentado no sofá folheava pela enésima vez o “Monte dos Vendavais”.
    Depois de estarem todos confortavelmente sentados nas poltronas forradas de veludo e com um chá fumegante servido num conjunto de porcelana delicado, José iniciou a conversa sem delongas.
- O Francisco não está em casa? – José sentia-se ansioso e só queria resolver aquele assunto o mais rápido possível.
- O Francisco foi passear com uma colega de faculdade que veio passar uns dias connosco. Eles eram muito amigos e a rapariga veio matar saudades do meu rapaz. – O Dr. Bruno falava com a despreocupação dos inocentes, sem perceber o efeito que as suas palavras provocavam na disposição dos convidados.
- Devíamos ter esta conversa na presença do Francisco, mas visto que ele está muito ocupado vou falar convosco. – José fixou os olhos do Dr. Bruno e foi eficaz na transmissão das suas ideias. – A minha Ana está grávida do vosso rapaz.
    O silêncio que se seguiu foi o necessário para assimilar a informação. Clemência foi a primeira a falar. Doía-lhe o coração pela rapariga, mas ela tinha que proteger o seu próprio filho. Já dizia o ditado “filho da minha filha meu neto é, o filho do meu filho é ou não é?”.
- Tenho de falar com o meu filho! Só ele pode confirmar essa vossa afirmação. Se o que me dizem é verdade, então voltaremos a conversar para agirmos da melhor forma possível.
- Mas… - Luzia queria contrapor. Dizer que a sua filha não mentia. Toda a gente sabia que eles tinham tido um romance… Ela foi acusada disso publicamente… Mas quando Luzia se preparava para defender a filha, José mandou-a calar, pegou-lhe no braço e levantou-se em jeito de despedida. Com o queixo erguido José dignificou-se:
- Não precisamos de enganar ninguém para assumirmos os nossos problemas familiares. Sempre fomos uma família humilde, mas justa nos sentimentos. Dentro da minha casa ninguém entra por obrigação. Ninguém se deita na mesma cama por obrigação. Ninguém ama por obrigação… - Estas palavras atingiram a carência afectiva de Clemência de uma forma cruel e a consciência do Dr. Bruno que percebeu o recado. Ele olhava para Clemência e continuava a sentir o mesmo repúdio da obrigação que sentiu no primeiro dia em que se casou. E recebeu de Clemência o mesmo olhar esperançoso e enganado de que um dia a faísca do amor lhe saltaria do coração e seriam eternamente felizes.
    O regresso a casa foi feito sem a altivez que caracterizou José naquela conversa. Os ombros descaíram e os olhos focaram as pedras do caminho sem se erguerem uma única vez. As lágrimas finalmente soltaram-se face ao entendimento cruel de que a filha seria mãe sem ter um marido que a apoiasse. A dor de suportar a dor de um filho tem proporções inesgotáveis no peito de um pai. Ele encontraria uma solução para a filha e protegê-la-ia custasse o que custasse, porque a sua menina não merecia uma condenação prematura e solitária por um acto tolo praticado a dois.
    Os dias passaram-se sem que Francisco desse noticias. Os olhos de Ana despregaram-se finalmente da porta de entrada e a esperança libertou-se das suas ânsias. A realidade mostrou-se num misto de culpa e medo, e a penitência era aguardada ao mesmo ritmo da barriga. Ana não queria a clausura que o destino obrigava. Ela queria deixar de lado as tristezas e os pesares e queria sentir em sentimentos nobres e humanos a felicidade da maternidade. Ela era responsável por uma nova vida e queria gritar este feito em alegrias coloridas. Não é justo calar os movimentos carinhosos que ela sente desenvolverem-se dentro de si num luto permanente, como se a sua criança não fosse digna de todas as maravilhas que Deus colocou à disposição de todos. O sol é uma maravilha que se exibe ao mundo sem restrições. O arco-íris surge tranquilamente para que qualquer par de olhos se posse deslumbrar. A felicidade dela não vai ser engolida por um punhado de gente. Ela recusa fechar-se às maravilhas do mundo dentro de amarguras que ela não sente. O seu intimo quer absorver uma vida de possibilidades, um futuro de decisões, um rumo de hipóteses, porque a magia de viver é fazê-lo tendo sempre o privilégio da escolha e a surpresa do resultado.
    A ceia era engolida sem ser saboreada e Maria tagarelava coisas sem sentido numa tentativa frustrada de ter as antigas conversas em que todos falavam ao mesmo tempo e há muito caladas em suspiros e resignações. Ana interrompeu-a sem aviso provocando o levantar de olhos tão desejado por Maria.
- Eu não vou ficar nesta ilha! – Ana foi frontal na sua comunicação, não deixando que dúvidas sobre a sua decisão pudessem prevalecer sobre as suas certezas. – Recuso-me a ser enterrada viva nas infelicidades que esta gente me reserva.
- E vais para onde? Não sejas tonta! – José não queria mais palermices naquela casa.
- Vou para a Terceira! Inscrevi-me para fazer o exame de admissão para a escola do magistério primário. Vou fazer o exame e vou estudar. Vou ser professora primária e sustentar-me a mim e ao meu filho sem ter que me vergar a vergonhas impostas por quem não tem qualquer poder de decisão na minha vida!
- Não sejas ingrata com esta terra! Foi aqui que te criaste e agora queres recusar as tuas origens? – Luzia não suportava a ideia da filha sozinha e desamparada noutra terra que nem conhecem.
- Eu acho que ela tem toda a razão! – Maria viu uma réstia de esperança que começava a dominar-lhe a mente. A sua alma começava a abrir-se a novas possibilidades como se o escuro já não fosse tão escuro, as perspectivas palpitavam em esperanças e o seu coração voltou a rezar e a ansiar uma felicidade que parecia perdida.
- E como é que pretendes fazer isso, Ana? – José era mais cauteloso naquele assunto. Gostava muito de poder partilhar da esperança das filhas, mas a verdade é que ele tinha acabado de casar uma filha e de lhe oferecer um terreno. Neste momento não tinha recursos para pagar os estudos da filha.
- Vou para a Terceira fazer o exame que é daqui a 15 dias e depois trabalho lá como mulher-a-dias ou mesmo nos campos para pagar o curso. Não tenho medo do trabalho… E vou lutar com todas as minhas forças e vou ser uma vencedora, porque eu não nasci para me vergar com esta facilidade que me querem impor… - José sentiu como se lhe tivessem dado um murro no estômago. Ele queria muito ajudar, mas não podia ir roubar para proporcionar à filha um caminho que nem sabia se resultaria. Para além de que lhe era insuportável imaginar a sua filha sozinha numa terra desconhecida a dar à luz um filho ilegítimo.
- Mesmo que te queira ajudar, a verdade é que estamos sem dinheiro para essas aventuras. – José abordou o assunto sem rodeios da forma que o caracterizava, directa e eficaz.
    Ana calou-se por uns momentos. Teria de pensar melhor. Não poderia chegar à terceira sem ter algum dinheiro para os primeiros meses, pois teria de pagar a renda de um quarto e viver dignamente até começar a receber algum dinheiro do seu trabalho. Também tinha consciência de que no seu estado não seria fácil arranjar quem lhe desse trabalho… Mas não desistiria da ideia. O preço a pagar pela desistência era demasiado alto.
- Toma Ana! Acho que tens aqui o suficiente para poderes começar uma nova vida! – Maria surgiu na cozinha com um embrulho de pano verde atado nas pontas por um cordão. Ninguém reparara sequer que ela se tinha ausentado da mesa e os olhares curiosos depositavam-se no conteúdo que aquele embrulho traria.
- O que é isto, Maria? – Ana abriu o embrulho sem pressas e sem expectativas, mas quando visualizou o conteúdo os seus olhos arregalaram-se num misto de surpresa e gratidão… As lágrimas embrulhavam-se com os soluços num misto de reconhecimento por um gesto tão nobre de uma menina de onze anos capaz de um altruísmo desconhecido pelas gentes daquela terra. – Mas não posso aceitar. – Ana sabia que aquele era o dinheiro que ela poupava religiosamente há mais de uma ano proveniente dos seus trabalhos como modista.
- Onde é que foste arranjar este dinheiro? – Luzia levantou-se a arrancou o embrulho das mão de Ana. – Como é que tinhas este dinheiro todo? Luzia sentia uma fusão de desconfiança e medo da resposta que ouviria.
- É do meu trabalho! – José não pode deixar de sorrir, reconhecendo naquela pequena herdeira a sua própria altivez. O nariz empinado realçado pelas sardas que brilhavam um orgulho descarado e a linha fina dos seus finos lábios não se destorcia em intimidações.
- E que trabalho vem a ser esse? – Pergunta José mais divertido com a situação do que chateado. Ele confia cegamente nas filhas e conhece o carácter que ele ajudou a criar em cada uma das três. Mesmo na sua Ana ele não é capaz de a julgar, porque não é capaz de diminuir todo o ser de uma pessoa a um único acto.
- Eu faço chapéus… e tenho muitas clientes e senhoras de bom gosto que me encomendam. E eu faço-os… E elas pagam-me.
    Luzia deixa-se cair no banco assimilando aquela novidade. O estudo exagerado a que a filha se submetia fechada no quarto começava a fazer sentido. Qual estudo qual carapuça!
    Maria explicou a sua repulsa à vida do campo e mostrou de forma convincente que tinha arranjado uma alternativa rentável. Pediu e choramingou uma oportunidade que já estava dada desde o momento que ela mostrou o seu trabalho brilhante com a tiara de flores que segurou o véu de Glória. Os pais reconheceram-lhe todo o mérito e o abraço que partilharam com Maria fez desabrochar toda a união e apoio que se vivia dentro daquelas humildes paredes.