domingo, 27 de novembro de 2011

CAPÍTULO XI - Na Base da Montanha

CAPÍTULO XI




     As paredes de basalto transpiravam o negrume do silêncio penoso que pairava sobre a casa dos Ferreira. As vivências iam e vinham sem serem percebidas ou sequer apreciadas. O céu acompanhava o luto que se sentia forrando-se de nuvens pesadas e prometedoras de dilúvios. Maria sentia uma inspiração doce nesta penumbra e trabalhava mais do que o segredo permitia. A sua vocação ultrapassara o deslumbre dos chapéus a partir do momento em que uma senhora muito fina lhe apareceu à porta da escola e com um sorriso manchado pelo tabaco pediu-lhe que colocasse uns apliques nuns sapatos. Maria achou aquele pedido ridículo, mas ao observar aquela mulher distinta, alta com o cabelo curto e que vestia calças como se fosse um homem, Maria percebeu que não se tratava de uma conterrânea das ilhas. A conversa que tiveram de seguida confirmou-lhe a teoria.
- Minha querida! Vi alguns dos teus chapéus e tens um talento divino na pontinha desses teus dedos…
- Obrigada! – Maria não conseguia desviar o olhar do cabelo louro quase branco daquela mulher.
- Pensei que me pudesses fazer o mesmo a uns sapatos que trago aqui. – A mulher tinha uma pronúncia estranha, como se enrolasse a língua. – É tão difícil encontrar coisas bonitas nesta ilha. Quando vi o chapéu que tu fizeste para a minha cunhada, abriu-se uma fresta de luz nesta ilha insipida.
- Não estou a perceber… - Maria sentia-se baralhada e ao mesmo tempo deslumbrada. Gostava sinceramente daquelas calças verdes que se alargavam nas ancas acentuando as formas de uma forma descarada.
- Eu vivo no Canadá há mais de dez anos, querida! Vim passar dois meses aqui porque a minha mãe está muito doente e eu queria vê-la antes de ela partir. – A mulher encostou-se ao muro e tirou um cigarro exageradamente comprido. Acendeu-o com uma naturalidade imprópria numa mulher e deliciou-se com uma passa lenta que resultou num vapor soprado pelos seus lábios escarlate. – Já me tinha esquecido de como esta terra adormeceu. O resto do mundo palpita rock´n roll, e brilha com a electricidade. A televisão é uma realidade irrefutável em cada lar… E o que é que acontece aqui? Esta ilha morreu num tempo atrasado e enterrou com ela as suas gentes sofridas…
    Maria não percebeu nada do que aquela senhora dizia, mas sentiu quase fisicamente que o seu lugar no mundo não era ali. A mulher entregou-lhe uma revista e os olhos de Maria devoraram uma moda linda, em que a silhueta da mulher era valorizada por corpetes justos e metros de tecido nas saias que caiam abundantes até ao tornozelo. As cores misturavam-se harmoniosamente e a maquiagem tornava as expressões femininas angelicais. Os acessórios tinham tanta importância como a própria roupa e abusavam no glamour. Era aquilo que Maria queria fazer… Aceitou com prazer transformar uns sapatos simples pretos em algo merecedor de ser apreciado…
    Maria sentia o coração palpitar-lhe de ansiedade, pois já terminara a escola. O exame da quarta classe já estava feito há meses, e ela sabia que os pais estavam a ser condescendentes, mas a verdade irrefutável é que a sua vida de campo começaria em breve. Ela conseguia sentir isso em todos os poros da sua alma e refutava este destino com todas as suas forças. Estava na hora de ela tomar uma decisão demasiado importante para uma menina de onze anos. E ela precisava de apoio… Mas este passo teria de esperar um pouco mais. A preocupação daquela casa centrava-se agora em Ana. O seu coração sangrava sempre que olhava para a irmã e lhe lia tristeza no olhar. Não era uma tristeza passageira, mas uma tristeza que estava gravada na sua alma… O funeral de Fátima já havia sido há mais de um mês e Ana nunca mais proferiu uma palavra que não fosse monossilábica.
    Maria entrou no quarto que ambas partilhavam e encontrou a irmã deitada sobre a cama comum encolhida e abraçada à barriga molhando a colcha de retalhos com lágrimas gordas e silenciosas. Maria sentiu um medo que lhe subiu pela espinha e lhe arrepiou a nuca. Algo não estava bem e ela não sabia o que fazer… Sentia que Ana precisava de ajuda urgentemente. Os seus gestos hábeis e o seu raciocínio fluido gelaram pela primeira vez… Maria não sabia como lidar com o desconhecido. Alguma coisa de negativa se estava a passar, mas sem conseguir detectar o problema, Maria não sabia como resolvê-lo e saiu a correr sem pensar. Correu para um colo que sempre a acolheu… Correu para casa da irmã mais velha e só parou quando aquele abraço tão conhecido a recebeu.
- Maria! O que se passa? Em que embrulhadas te meteste desta vez? – Glória afagava-lhe as costas, acalmando-lhe as tremuras. Quando a rapariga parou de tremer começou a gaguejar.
- Oh Glória! Eu nem sei qual é o problema… Mas a Ana está com um problema grave… Ela não me disse nada… Mas eu sei… Eu sei Glória… Não sei como sei, mas sei… Percebes o que te digo?
    Glória beijou a testa da irmã mais nova e resolveu ir averiguar esta preocupação.
    Quando abriram a porta do quarto, ambas as raparigas apressaram-se nos actos. Ana vomitava freneticamente tentando acertar dentro de um bacio, mas sem grande sucesso. Maria apressou-se a ir buscar toalhas, enquanto Glória lhe segurava a cabeça trémula. Quando Ana finalmente acabou, começou a chorar desalmadamente para grande incómodo de Glória qua a embalava nos seus braços.
- O que é que se passa contigo Ana? Não pode ser só tristeza pela morte de Fátima… Também não acredito que seja só a ausência de Francisco que te provoque isso… O que se passa contigo? – Ana sentiu uma pontada no ventre quando a irmã mencionou a nome de Francisco. Desde o funeral que não sabe nada de Francisco. O sentimento de abandono domina-lhe a mente e o peito. É assim que Ana se sente abandonada por quem devia ampará-la nas situações difíceis. A falta de apoio que sentiu naquela igreja gelou-lhe a alegria e com o baixar de olhos e afastamento de Francisco, Ana sentiu a dor da desilusão.
- Ai Glória! – Ana agarrou-se aquelas irmãs como se fossem as suas bóias num naufrágio. – O que vai ser de mim?
- O mundo não acabou só porque tiveste um desgosto amoroso! – Maria queria lançar alguma racionalidade a toda aquela emoção numa tentativa frustrada de se sentir em terreno mais confortável.
- Eu estou grávida!
    As irmãs sentiram a chapada da compreensão com uma violência mal disfarçada. A mente bloqueia os raciocínios necessários até aos mais fluentes de ideias e o coração cala as palavras de consolo aos mais caridosos, quando uma compreensão tão dolorosa atravessa o espírito. O que seria de uma rapariga grávida e mãe solteira naquela ilha. Nunca mais receberia um cumprimento de um vizinho. Nunca mais entraria numa igreja. Nunca mais sobreviveria sem a caridade dos familiares mais próximos. Nunca mais poderia levantar um olhar de orgulho. Nunca mais poderia elevar um ar de dignidade… E doía… Doía muito esta compreensão de um futuro infeliz numa criatura que tanto se ama… No seio de uma família unida como aquela, a infelicidade de um elemento era a condenação de todos.
- Temos de contar aos pais! – Maria sentia-se desorientada. Apetecia-lhe pegar na irmã e fugir dali. Levá-la para um sítio onde não fosse alvo de nenhum tipo de malvadez. Onde a pudesse proteger de todos os olhares de condenação, de todos os comentários murmurados, de todos os juízos de valor…
    Aquela observação de Maria pairava na mente das três irmãs. Tinham realmente de contar aos pais. Mas como? Ana lembrou-se de quando ainda era miúda e roubava laranjas na quinta dos vizinhos. Tratava-se de um fruto que os pais não tinham nas suas terras e que era muito invejado por ela e pela irmã pela sua doçura. As duas infiltravam-se nas terras alheias e colhiam as melhores laranjas, embrulhando-as no avental. Uma tarde fria, o consolo de um sol suave de Outubro deliciava-as tanto quanto a antecipação daquele fruto sumarento escorrendo-lhes pelos cantos da boca. José que já desconfiava esperava-as à saída da terra do vizinho e apanhou-as em flagrante. Roubar era um pecado enorme. Era a pior transgressão que se podia cometer numa terra em que tudo resultava de muito trabalho. E o que elas acabavam de fazer era um desrespeito pelo trabalho alheio. Perante a severidade de José, Ana sentiu-se encolher e a humilhação de ir devolver as laranjas ao vizinho confessando o roubo e pedindo perdão por tal acção atingiu-lhe o orgulho como uma flecha ferindo-lhe a dignidade de uma forma que ela julgou ser a pior de todas. Até este exacto momento. Os actos com consequências passageiras têm respostas passageiras, mas desta vez ela cometeu um acto que a acompanharia para o resto de seu ser. Tinha acabado de gravar na própria testa um rótulo que jamais a largaria. Podia esforçar-se por ser uma mulher digna. Podia trabalhar que nem uma perdida. Podia ajudar o próximo como se houvesse amanhã que seria para todo o sempre a rameira que engravidou de um qualquer. Seria sempre o mau exemplo a seguir. Serviria de lição humilhante aos mais novos. Seria sempre vista como uma má companhia. Uma acção, um acto de amor seria interpretado e julgado para o resto da sua vida, porque as mentes pequenas não têm capacidade de ver para além das grandes acções. Se durante a sua vida alguém praticar uma boa acção gigante então é de certeza um bom homem, mas se tiver o azar de num determinado momento praticar uma má acção então é má pessoa. As mentes limitadas não têm a capacidade de ler o quotidiano das pessoas, de interpretar as acções. As mentes diminutas julgam rápida e eficazmente, marcando o tipo de pessoa como se marca o gado, para todo o sempre. E viver com um juízo de valor proveniente de mentes fracas é um preço demasiado elevado e murcha as almas grandiosas cheias de potencial, cheias de sonhos e vontades. Transforma uma linha de horizonte longa, onde um céu mágico se funde com um mar terrestre, num minúsculo ponto insignificante e limita tudo o que de grandioso poderia fluir de uma alma perdida.
- A Maria tem razão! Eu vou contar aos pais! – Ana sentia no carinho das irmãs um apoio incondicional que merecia ser respeitado. – Vou só arranjar-me… E encontro-me convosco na cozinha daqui a pouco.
- Vê se colocas um ar apresentável, porque estás deplorável. – Glória tentou esboçar um sorriso de provocação que foi entendido mas não correspondido.
    Ana lavou a cara e mirou-se longamente no pequeno espelho que tinha pendurado na parede do quarto. Passou a mão suavemente pela barriga e percebeu que começava a amar o ser que se desenvolvia nas suas entranhas. Sentiu-se mais corajosa do que alguma vez se lembrava e preparou-se para dar um grande desgosto às pessoas que mais amava no mundo.
    As irmãs estavam sentadas em bancos baixos encostadas à janela, aproveitando a luz do dia para remendarem meias grossas de lã. Aqueles pares de olhos colaram-se ao rosto calmo de Ana e esperaram pelos acontecimentos com todos os músculos em alerta prontos para reagir em sua defesa.
- Pai! Mãe! – Ana tinha um ar solene, quase angelical, como se fosse proferir uma boa nova. – Eu estou grávida!
    Não houve remedeios naquela abordagem, nem nenhum discurso que suavizasse a gravidade daquela declaração. Ana não era assim. Não minimizava o que era grande e não aumentava o que era insignificante. Luzia levou as mãos à cabeça e libertou uma ladainha de murmúrios. José muito mais eficaz abordou o assunto com a seriedade exigida e uma frieza falsa, enquanto a sua alma chorava pelo destino cruel que estava reservado à sua menina.
- Quem é o pai dessa criança? – Perguntou José sabendo já a resposta.
- Francisco! – Ana mostrou-se tão seca na abordagem quanto o pai. Parecia que ambos estavam a medir forças e os olhos nunca se descruzaram.
- Pelo que tenho visto depois do funeral de Fátima, não me parece que vocês continuem tão envolvidos em sentimentalismos! – Esta apreciação foi dolorosa para os ouvidos de Ana e um tremer no seu olhar denunciou o que José pretendia. Ele queria incutir algum sofrimento na filha. Não por vingança daquilo que ela o estava a fazer sentir, mas para que ela nunca mais voltasse a expor-se daquela forma. Quando se erra deve-se sentir o erro da forma mais dolorosa possível. Só assim esse mesmo erro serve de defesa para o futuro.
- O Francisco ainda não sabe. – Ana recuperou a frieza no olhar.
    Luzia assistia àquela conversa aparentemente calma sem acreditar naquilo que via. Ela levantou-se do seu lugar assim que encontrou forças e dirigiu-se à filha com as faces rubras de indignação. Pegou-lhe nos braços e abanou-a como se ela fosse uma boneca de trapos, enquanto deixava que a sua voz libertasse toda a dor e frustração que lhe trespassava o espirito.
- Sabes o que fizeste rapariga?! Tu desgraçaste-te… Deitaste a tua vida, a tua juventude no lixo… Oh Ana o que vai ser de ti? – E assim se verbalizara o receio de todos. O que seria de Ana?
- Pára com isso mulher! – José finalmente baixou as defesas e chorou juntamente com a mulher. – Vamos amanhã logo de manhã a casa do Dr. Bruno e veremos como corre a conversa.

sábado, 12 de novembro de 2011

CAPÍTULO X - Na Base da Montanha

    CAPÍTULO X


- Ai que Deus nos acuda! Ana! Maria! – Glória corria forçando uma respiração sôfrega que resultava do cansaço imposto ao seu corpo e da aflição sofrida pela perda que sentia.
Maria foi a primeira a surgir-lhe no âmbito de visão e quando viu a irmã mais velha com uma olhar esbugalhado de dor com as faces molhadas por umas lágrimas gordas e escorregadias abriu-lhe os seus pequenos braços e amparou-lhe o sofrimento.
- Chora minha querida! Chora tudo! – Maria embalava-a com um carinho extremoso.
- Oh Maria! – Glória endireitou-se. Afinal de contas ela é que era a adulta daquela relação. E casada. Ela é que teria de assumir os pesares que aquela noticia teria. – A Fátima… Ela não… Ela foi… ela…
- Morreu! – Foi Maria a conseguir verbalizar aquele acontecimento tão temido quanto esperado. As duas irmãs abraçaram-se e choraram. Ambas sabiam que era este o desejo da amiga, mas esta certeza não diminuía a dor da perda.
Francisco entrou pela porta dos Ferreira com a notícia gravada nas olheiras escuras que se evidenciavam sem sequer lembrar as regras de boa educação que lhe pediam para bater à porta.
- Glória! Onde está a Ana? – Francisco juntou-se e partilhou daquelas lágrimas.
- Já sabes Francisco? – Glória esqueceu as cautelas que aquele jovem médico lhe costumava provocar e abraçou-o. A dor é o único sentimento que detém em si mesmo a capacidade magnífica de aproximar pessoas opostas, de baixar defesas e de criar afinidades. Mais nenhum sentimento tem esta capacidade. Dor é sinónima de sofrimento. Dor é um sentimento que carrega uma conotação negativa e que tem em si a magia de amolecer corações e transformar desprezos em solidariedade.
- Já sei Glória! E nem sei bem o que pensar… Mas no que toca a sentimentos, eu estou de rastos… A Fátima era uma pessoa especial… Era como se ela não pertencesse a este mundo. Eu sempre olhei-a como se olha para uma divindade que brilha demasiado para ser devidamente apreciada neste mundo…
- A Ana deve estar na atafona a arrumar as bilhas do leite… Vais lá tu dar-lhe a notícia?
Francisco entrou na atafona de pedra escura e encostou-se à ombreira permitindo-se uma pequena consolação olhando Ana a arrumar as bilhas brilhantes com uma saia rodada azul e uma camisa justa que lhe acentuava as formas. O cabelo apanhado por um lenço escapava-se rebeldemente dando-lhe um ar mais sedutor.
- Olá! – Ana virou-se devagar temendo que os seus olhos não correspondessem à figura que a sua mente estava neste momento a fazer corresponder à voz que acabava de ouvir.
- Francisco! – Ana correu de encontro ao seu amado e atirou-se para os seus braços. O abraço firme procurava um consolo que Ana imediatamente percebeu. – O que se passa Francisco?
- A Fátima… - As palavras mudas foram gritadas num gemido de choro, e os braços que se entrelaçavam não foram suficientes para amparar a tristeza.

A casa do presidente da câmara sofria de uma languidez crónica que se gelava num silêncio de morte. O Sr. Joaquim estava prostrado no sofá sem que qualquer acção se evidenciasse no seu corpo, sem que qualquer expressão lhe trespassa-se as feições, sem que qualquer pensamento lhe ocupasse a mente. Só uma dor aguda lhe infernizava o peito pesado e lhe inutilizava todo o resto do seu ser. A esposa trancara-se no quarto da filha velando e uivando a dor que aquele cadáver lhe provocava. A senhora Alice não permitiu que ninguém velasse o corpo. Não abria a porta a quem queria prestar uma última homenagem ou a quem simplesmente queria partilhar rezas de pesar. Alice acariciava as faces exangues da filha e chorava enquanto murmurava o quanto a amava e que tudo correria bem.
- Estás a ver o que te acontece quando não ouves o que te digo? – Alice murmurava uma meiguice e uma ternura que Fátima teria agradecido em vida.
A casa respirava uma angústia e um vazio partilhado por um casal distante em espírito que deixou passar um par de dias sem distinguir o dia da noite, chorando para além da exaustão e gritando para além do que a voz permitia. O pesar que desabara naquele tecto pesaria toneladas durante um tempo indefinido e deixaria marcas íntimas no interior daqueles seres como tatuagens decrépitas que nunca mais libertam uma pele saudável.
A Igreja encheu-se de gentes negras que envergavam a postura do momento sem fingimentos. Fátima era o tipo de pessoa que reunia o respeito de todos. Era uma daquelas pessoas raras sobre as quais as más-línguas se apaziguam e os invejosos se retraem, sem que as maledicências convenientes tenham capacidade de permanecer nas mentes maldosas. Os perversos eram incapazes de verbalizar um comentário depreciativo sobre aquela menina quase angelical. Os mentirosos retraiam falsas verdades sobre aquele ser quase místico. A sua pele pálida, o seu sorriso bondoso, o seu olhar humilde era um amaciador de almas para quem tivesse o privilégio de ser merecedor de tal. Neste mundo imenso, em que transborda acções e sentimentos, amores e rancores, pensamentos e desejos, dores e alegrias, guerras e fomes, abandonos e necessidades, Deus colocou na base daquela imensa montanha rodeada por mar um ser incrível que não soube ser devidamente apreciado em vida e cuja morte pesava sobre tantos corações.
O padre Inácio pousava os seus olhos no caixão fechado em frente ao altar e sentia cada palavra de homenagem que prestava àquela jovem. Era do conhecimento geral que Fátima tinha posto fim à sua vida de forma prematura, privando o seu corpo de comida e água. No senso comum de uma pequena comunidade, o serviço religioso não é prestado àqueles que de forma ingrata terminam com a vida que Deus tão generosamente lhes deu. Mas nenhuma voz verbalizou este facto. Nenhum coração sentiu que Fátima não era merecedora do perdão eterno. E numa última oração em voz alta, uma ilha chorou e rezou pela salvação daquela alma.
- Parem!... Parem tudo! – A senhora Alice saiu do seu lugar e com os olhos a rebolarem sobre si cambaleava até ao caixão que guardava o corpo da filha. Caiu desajeitadamente e levantou-se, enxugou as lágrimas com a manga do vestido preto e uivando o nome da filha ajoelhou-se em frente ao caixão. Acariciou-o sem pressas e repetiu vezes sem conta que não deixaria que nada de mal lhe acontecesse… Que ela não precisava de ter medo… que estaria sempre com ela… Que a protegeria sempre… A plateia calou-se num silêncio tumular e os corações encheram-se daquele pesar. Um frio trespassou cada ser que assistia àquela cena e todas as peles se arrepiaram em uníssono. Ana chorou e apertou a mão de Glória que sentia que lhe arrancavam uma parte das entranhas.
Alice abriu o caixão onde a filha serenamente repousava com as mãos cruzadas sobre o ventre enredando um terço de prata e vestida de noiva. Uma interjeição geral sobrevou sobre a plateia, que de queixo caído arregalou os olhos de admiração. Absorveram a cena e depois numa coreografia perfeita viraram todos os pares de olhos acusadores para um corpo demasiado pequeno para enfrentar aquela multidão. Ana sentiu o peso da acusação e procurou consolo no olhar de Francisco que baixou o seu olhar e se afastou. Os dedos apontaram-se na sua direcção e as acusações foram disparadas como flechas demasiado assertivas. Ana não distinguia qual a dor que a magoava mais. Se a perda de uma amiga… Se o peso de uma acusação colectiva… Ou se a desilusão que Francisco lhe provocara. A multidão exaltava-se com a falta de acção de Ana perante tamanha indignação. Esperavam que a rapariga abandonasse a Igreja… Mas ela permanecia ali com o queixo levantado.
- Parem com esta palhaçada no funeral da minha filha! – Joaquim encontrava-se no púlpito e a sua voz estrangulada de dor captou todos os olhares, aliviando Ana. – Mostrem algum respeito pela dor e pela perda que estou a sentir.
As mentes raciocinaram devagar e congelaram na esperança de absorverem mais palavras.
- Deixem essa rapariga em paz! – José deixou que as lágrimas rebolassem pela sua face e deixassem o seu paladar absorve-las. – Estou farto de julgamentos… De apuramentos de culpas… De falsas acusações… Querem um culpado? Estão sedentos de desgraça povo enfermo? É esta a droga para a vossa desolação? Então eu dou-vos um culpado para chacinarem em praça pública… Sou eu o culpado… Sou eu o culpado pela morte da minha filha… E sabem lá o que isto me pesa na consciência, no peito, na mente… Nunca mais terei uma noite descansada. Os meus lábios nunca mais deixaram florir um sorriso. O meu coração jamais conhecerá uma alegria. Querem conhecer as minhas misérias? Precisam delas para alimentar essa vossa ganância de sofrimento? Pois eu dou-vos a conhecer as minhas misérias e espero que se saciem com elas e rebentem… Eu sou o culpado por ver hoje enterrar o ser que mais amei na vida. Amar da forma correcta alguém em vida é uma tarefa árdua e de difícil entendimento. Mas na morte torna-se tão fácil saber como deveríamos ter amado. E este entendimento é tão cruel como a última refeição de um condenado à morte. Hoje vou-vos contar a história da minha filha. Ela era uma menina com uns valores e sentimentos muito nobres que não foram transmitidos por mim ou pela Alice. Era um ser capaz de deter em si mesma todas as virtudes humanas que Deus depositou na Terra. E só agora consigo dizê-lo em voz alta. Porquê? Porque tive uma vida demasiado ocupada para desfrutar do amor que sentia pela minha filha. A pressão social toma, na vida mundana das pessoas, uma importância desmedida e imerecida. E eu tinha uma boa posição social que deveria manter a todo o custo. Era aqui que residia a minha felicidade? Não… A minha felicidade residia nesta menina que vou enterrar… E não, nunca desfrutei desta felicidade incomensurável que estava à minha inteira disposição da forma como ela merecia ser disfrutada. A minha felicidade morava debaixo do mesmo tecto que eu… E eu todos os dias ia viver a minha vida longe dela… A Fátima amou inocente e apaixonadamente um rapaz. Um rapaz demasiado humilde para ser aceite no seio da minha família desunida e desmembrada… Um rapaz demasiado verdadeiro e que transmitia uma alegria á minha filha que eu nunca consegui… Um rapaz que a fez demasiado feliz, mas que mesmo assim não coube nos nossos requisitos… A hipocrisia que veste as atitudes humanas enoja-me neste exacto momento em que compreendo a importância das coisas… Neste exacto momento em que compreendo e não posso gozar dessa compreensão… O casamento com o médico da vila era demasiado conveniente para caber no coração puro da minha filha… E nós matámo-la com esta imposição despropositada… Manel… Manel é o rapaz com quem a minha filha queria casar… Manel é o rapaz que a minha filha amou… Manel foi o rapaz que fez a minha menina feliz… e eu rogo-lhe com toda a humildade que pode caber num só ser que receba a minha filha nos braços e a faça feliz… Com a minha bênção…
Até a mente mais obscura se rendeu àquela constatação de verdades. Alice sentiu cada palavra do marido como um punhal apontado na sua direcção e as sombras da sua consciência dominaram a sua mente que se perdeu nos remorsos e nunca mais encontrou a paz dos virtuosos.

domingo, 6 de novembro de 2011

CAPÍTULO IX - Na Base da Montanha

CAPÍTULO IX

O casamento de Glória diminuiu a intensidade da maledicência que ensombrava a relação de Ana com o jovem médico. A vila retraiu a língua por escassos dias face à evidência que a presença de Fátima no casamento transmitia. No entanto, nas povoações pequenas não se pode contar com um esquecimento prolongado, principalmente quando o mexerico assenta numa certa verdade que o revigoriza como um fungo num ambiente húmido.
As vinhas transbordam a abundância de cachos gordos que garantirão muitas alegrias daqueles que se regalarem com o seu vinho e angelica. Também Ana sente a antecipação de uma certa embriaguez que a acompanha sempre que tem uma oportunidade escassa de ver o seu Francisco. Ele enviou-lhe uma mensagem escrita por Glória marcando um encontro no meio das vinhas. Ana recordava com um sorriso desdenhoso os conselhos da irmã mais velha quando lhe estendeu o bilhete adivinhando o seu conteúdo.
- Tem cuidado Ana! Não te esqueças que o facto de estares apaixonada por ele e possivelmente seres retribuída nesse sentimento, não te dá o direito de ocupares um lugar oficial na vida dele… Os sentimentos não significam necessariamente compromisso.
Ana ouviu sem interiorizar a preocupação daquelas palavras sábias.
- Ai estou tão feliz! Não vejo o Francisco a sós desde as festas do Senhor Espírito Santo… Estou farta de recados dobrados em pedaços de papel amarrotado… - Ana ondulava a sua felicidade numa melodia silenciosa que a fazia rodopiar.
O coração de Ana descompassou-se quando viu Francisco aproximar-se, desviando os ramos voluntariosos das vinhas que se espreguiçavam viçosamente sobre os currais negros de basalto. Francisco atrapalhava-se com o caminho sinuoso que tinha de enfrentar para chegar ao seu destino e Ana permitia-se olhá-lo gulosamente absorvendo cada movimento do seu cabelo leve e gracioso que brincava ao sabor da aragem permitindo que os olhos risonhos ficassem completamente descobertos. O corpo alto e esbelto tornava-se cada vez mais desejado por aquela humilde rapariga que vivia aquele momento com uma intensidade exagerada que lhe turvava as ideias. Francisco aproximou-se de Ana e ofereceu-lhe o seu melhor sorriso. Encostou timidamente a palma da sua mão à dela e deixou que os seus dedos se entrelaçassem. A ansiedade que antecedera aquele encontro tronava cada gesto cerimonioso e a antecipação de uns momentos a sós exaltava-se em cavalgadas loucas dentro dos seus peitos.
- Olá doutor! – Ana cumprimentou-o ainda com os olhos fechados depois de saborear um leve encostar de lábios.
- Que saudades Ana! – Francisco apertava-a como se o aconchego daquele abraço não fosse suficiente para dissipar a ausência, daquele corpo, tão sentida nas suas entranhas. – Isto é uma loucura… Mas eu amo-te! E sinto-me desnorteado quando não te vejo… não te toco… não de sinto.
Ana baixou todas as suas guardas e receios perante aquela declaração emitida por entre beijos intensos e sussurros que lhe arrepiavam a pele. Francisco deitou o corpo rendido de Ana no meio das vinhas sem deixar que um único milímetro de espaço se intrometesse entre eles. Ana fechou os olhos e deixou-se disfrutar da sensação que a boca de Francisco desferia no seu pescoço. A sua pele eriçou-se no contacto quente do hálito do jovem médico junto ao seu ouvido. A mão de Francisco acariciava-lhe a cintura, subindo sobre o seu seio e demorando-se deliciosamente. A sua blusa foi lhe retirada com a meiguice dos anjos, sem que os olhares se largassem durante esse acto. Ana tremia quando desabotoou a camisa do seu amado e os seus olhos deliciaram-se com a visão de um tronco nu coberto com uma suave penugem clara que Ana deixou passear entre os seus dedos. Ana sentiu a inútil protecção que só a combinação lhe oferecia e no momento em que esta lhe roçou a pele desligando-se dela, Ana sentiu a sua pele em contacto com a pele de Francisco e deixou descair a cabeça para trás numa afirmação de certeza do passo que estava prestes a dar. Francisco deixou a ponta dos seus dedos percorrer o corpo perfeito de Ana demorando-se neste acto, devorando com os seus olhos inebriados a cova do pescoço daquela menina mulher. Os seus seios redondos e firmes demasiado morenos para os requisitos da moda transtornavam-lhe as ideias. A barriga dura apresentava-se com uma suavidade doce ao seu contacto e Francisco perdeu-se naquele corpo tão desejado. O seu nome foi gemido numa voz estrangulada pelo prazer quando os corpos se fundiram e Ana acreditou terem fundido as suas almas numa só.
O sol era mais radiante do que nunca e numa cumplicidade silenciosamente entendida brilhava aquecendo os corpos dos amantes que murmuravam promessas longínquas e sorriam face ao entendimento daquele acto de entrega que acabavam de praticar. O mundo não podia conspirar contra tanta paixão. O ódio não podia subverter uma humanidade a quem lhe era dada a conhecer tanta ternura. A guerra não devia existir face a este entendimento tão reconfortante. A dor não deveria ter lugar num mesmo espaço em que se permite tão elevado nível de felicidade…
- Eu amo-te! – As palavras eram proferidas pela boca de Ana com a simplicidade com que as verdades devem ser ditas e aceites por quem está aberto a receber na sua alma este sentimento.
- Tu és o meu mundo Ana! – Francisco posou um beijo leve nos cabelos espalhados da sua companheira, mas os seus olhos brilhantes de paixão davam agora lugar a um esguio de preocupação. – O que vamos fazer Ana?
- Vamos casar… Que pergunta tão tola!
- Não é assim tão simples! O que fazemos com a Fátima?
- Não a levamos ao altar! Esta é uma certeza absoluta…
Francisco riu alto face a esta constatação marota daquele ser pequeno e falsamente frágil que estava ali ao seu lado. Ele não queria estragar a magia do momento. Mas a verdade é que lhe pesava no peito e na reputação um rompimento de noivado em que as coisas não teriam um procedimento normal. Ele gostava que Fátima o libertasse dos laços que haviam assumido e que os pais de ambos dessem a sua bênção a este rompimento do compromisso. Só assim as mentes humanas daquele pequeno lugar aceitariam de braços abertos o romance do médico da vila com uma rapariga de origens humildes. E talvez até olhassem para ele com respeito por ter feito esta escolha sem preconceitos.
- Já se está a fazer tarde! – Ana levantou-se preguiçosamente. – Eu ficaria aqui para sempre…
- E comerias uvas no próximo mês e viverias da chuva nos seguintes… - A gargalhada de ambos já não foi tão sonora, face ao entendimento comum da proximidade da despedida. O beijo profundo do adeus deixou no peito de ambos o amargo sabor da saudade, antes mesmo que os olhos penassem dessa ausência.
Ana sentia o seu espírito muito acima do seu corpo. Tinha-se entregue por amor e não por casamento e achava este acto tão romântico que lhe merecia um orgulho desmedido. As consequências desse acto não lhe pesavam na consciência. Não poderia haver consequências negativas de uma entrega tão bonita, de um acto de amor tão intenso, de uma certeza tão certa. Ela amava de corpo e alma… E que sentido teria este sentimento se fosse o mundo a impor os tempos do amor carnal e do amor espiritual. O mundo não percebe nada das vidas de cada um e as vivências individuais são demasiado individuas para serem decididas por parâmetros ou regras tolas de comportamento. Como podem os outros dizerem-lhe que ela devia esperar pelo casamento para se poder entregar daquela forma? Como é capaz uma sociedade de seres iguais privarem os seus semelhantes de tais sensações, destes momentos espontâneos repletos de alegria e com uma intensidade que não pode ser adiada? Como pode o ser-humano ser tão egoísta e maldoso que faz de uma coisa maravilhosa um acto vergonhoso? Mas que mentes perversas conduzem o entendimento geral da humanidade para longe daquilo que realmente proporciona felicidade?… uma felicidade tão completa, tão preenchida, que se não for vivida no momento em que se proporciona nunca mais poderá ser vivida naquele exacto momento…
Ana chega a casa com as faces rosadas e uns olhos febris que brilham a verdade do último par de horas de uma forma quase descarada. Glória ao perceber este estado de êxtase conduz a irmã para o quarto de forma que os pais não a vejam neste estado de graça desgrenhado.
- O que é que andaste a fazer Ana? – Glória sabia a resposta à sua pergunta, pelo que não aguardou que a boca de Ana a denunciasse. – Vou preparar-te uma pana com água quente e vais tomar um banho… Depois havemos de falar, querida. Agora tira esse sorriso palerma dos lábios, ou todos vão saber o que andaste a fazer.
Ana deixou que Glória tratasse dela, uma vez que o seu corpo recusava-se sair da dormência que o amor lhe havia proporcionado. Quando se enroscou na sua cama recebeu da irmã um beijo terno de despedida e fechou os olhos embalada numa suave melodia torneada de felicidade e sonhou com o seu futuro marido alheia ao ser que já se começava a gerar dentro de si…