domingo, 21 de agosto de 2011

Capitulo XV


Capitulo XV

    No primeiro dia de formação Diana sentia o nervosismo miudinho próprio da responsabilidade que seria transmitir em três semanas, aquele que deveria ser o quotidiano dos próximos anos. Diana tinha uma equipa de camareiras exclusivamente composta por meninas do colégio, pelo que instalaram uma pequena casa de madeira pré-fabricada nas traseiras do hotel que serviria de lar enquanto elas não arranjassem o seu próprio espaço. Marta era a responsável principal pela escolha das outras funcionárias, pois foi ela que nomeou os nomes. Naquele exacto momento em que se preparava para aprender as suas novas funções, Marta sentia-se orgulhosa. Apesar das pressões sofridas quando se tornou do conhecimento geral do colégio que ela seria a responsável pela nomeação de outros nomes que ingressariam a equipa de trabalho no hotel, ela conseguiu encontrar forças suficientes para fazer uma escolha consciente.
- Deixa que eu faço a lista por ti! – Dissera-lhe a Dr.ª Filipa, fazendo Marta experimentar um sentimento muito próximo do ódio. Mas Marta não se deixou intimidar e recusou a oferta que lhe foi imposta e gritada dias a fio pela directora do colégio. Ela sabia que não seriam nomeados os nomes das raparigas mais trabalhadoras, mas sim daquelas que sabiam chantagear a directora. Marta sentiu-se parte integrante da equipa de trabalho daquele hotel, e tinha consciência de que seria o bom trabalho de todos que garantiria o ganha-pão de cada um.
    A aprendizagem foi absorvida por cada membro de forma entusiástica e o espirito de equipa surgiu naturalmente para grande satisfação de Diana. Encontrou um grupo de trabalho disposto a arregaçar as mangas e a trabalhar afincadamente por um projecto que agora era comum a todos. O quotidiano das limpezas dos quartos foi interiorizado como se de uma coreografia se tratasse. O programa informático do hotel foi aprendido por todos, mesmo por aqueles que supostamente não o utilizariam. As ementas da cozinha foram escolhidas por todos e a apresentação dos pratos teve sugestões até do José Gaitinha. Este, juntamente com Manuel seriam jardineiros daquele grande complexo e eram os únicos que não tinham conseguido aprender o programa informático.
    Faltava apenas uma semana para a abertura do hotel ao público, e depois de um dia intenso de trabalho em que todos trataram da montagem dos quartos, organizaram a piscina e os acessórios exteriores, distribuíram os bancos de madeira pelos recantos de um enorme jardim e limparam meticulosamente cada canto do hotel, Diana relaxava no Café do Porto Pim com um copo de Kima na mão.
- Tenho os nervos em franja! Mal posso esperar pelo próximo sábado! – O sentimento de dever cumprido dominava a consciência de Diana.
- E vamos ter casa cheia! – O entusiasmo de Bernardo era um pouco mais pálido. Nestes últimos meses ele tinha perdido muito peso e qualquer movimento que fizesse era acompanhado por dores insuportáveis. Bernardo sentia a morte a rondar-lhe a alma, mas fechava-se a esta hipótese. Queria ver aquele hotel vibrar num quotidiano de clientes satisfeitos.
- Mais quartos houvesse… - José Gaitinha sentia muito orgulho por ter participado naquele projecto tão importante.
- Agora já temos espaço onde realizar o nosso casamento! – Raquel tinha adiado esta data tão desejada de forma a poder ter a festa dos seus sonhos. Queria uma passadeira vermelha naquele jardim idílico com um altar feito em madeira colocado à beira da piscina.
- Finalmente ficaste sem desculpas para mais adiamentos! – Pedro picava a futura esposa com um olhar apaixonado.
    As conversas fluíram em previsões para o futuro e Diana deixou o seu pensamento voar para junto de Duarte. Ela tinha conquistado a tão desejada estabilidade. Tinha conseguido uma vida económica fácil e principalmente tinha garantido uma boa estabilidade financeira para as pessoas que amava. As coisas na sua vida foram surgindo exactamente como ela desejara e o retorno de todos os seus esforços foram recompensados. Mas ali sentada naquela esplanada frequentada por pessoas de falas simples e roupas descuidadas sentia um vazio que não conseguia explicar. Era finalmente uma pessoa financeiramente estável… era amada… era até admirada, mesmo por aqueles que não simpatizavam com ela e a viam como uma oportunista resultante da vida duvidosa que teve na sua infância e juventude. Até hoje ela conhecia as suas necessidades e sabia o que tinha de fazer para satisfazê-las, mas este vazio era incompreendido pela sua mente. Às vezes sentia até um mau estar físico que não se curava com comida, ou uma manta como acontecia com os males da sua juventude. Era uma dor flamejante que lhe ardia no peito e lhe atormentava a mente num sentimento de impotência. Tudo o que lhe tinha sido tão suado e tão desejado perdia o encanto da conquista quando a sua percepção sentia a ausência de Duarte. Uma tempestade de insatisfação dominava o seu íntimo e minava o sentimento de dever cumprido. Era como se a meta principal da sua vida, aquela que realmente lhe era crucial, aquela que mesmo sem todas as outras tinha a capacidade de completá-la, ainda estivesse por atingir. Era como se o destino a fitasse e a deixasse em suspense dependendo de ventos desconhecidos que a conduzissem.  Diana sentia-se como um bocado de carvão transformado num lindo diamante boiando no meio de um charco sem ter com quem partilhar esta conquista tão importante. Faltava-lhe uma parte importante do seu futuro, faltava-lhe uma outra parte de si que compartilharia e entenderia todas estas alegrias passageiras. São precisas duas colunas para aguentar uma placa de gesso com segurança…
- Olá Diana! Queria mesmo falar contigo! – O Dr. Carlos tinha a sua mão pousada no ombro de Diana que demorou uns segundos a responder ao pedido do advogado.
- Claro! – Diana levantou-se prontamente e dirigiu-se para um canto do café na companhia daquele homem por quem o tempo tinha passado descaradamente sulcando-lhe as feições com rugas e roubando-lhe o cabelo generosamente.
- Bem Diana! – O advogado mostrava-se um pouco incomodado. – Eu queria pedir-lhe um favor.
- Diga doutor! Se estiver ao meu alcance terei todo o gosto! Afinal de contas o senhor já me ajudou tanto.
- Eu tenho um sobrinho que tem dado algumas preocupações à minha irmã!
- Sim…
- É muito inconsciente nas suas acções… Não tem má índole, mas é muito limitado e tem um feitio dos diabos…
- Sim… - Diana tentava perceber onde é que o seu favor se encaixava na história do sobrinho.
- Eu queria ajudar a encaminhá-lo… e pensei que talvez tivesses um trabalho para ele no hotel…
    Diana não vacilou na resposta positiva. Sentia que tinha uma divida permanente com aquele homem que no passado a tinha ajudado sem sequer conhecê-la, e ajudou-a sem pedir nada em troca. Ela não podia negar-lhe este pedido… Tal como ele não a julgou pela aparência também não o faria com o sobrinho dele.
- Ele que se apresente amanhã de manhã no hotel! Ainda tenho lugar para um recepcionista.
- Muito obrigado Diana! Nem sei como te agradecer!
- Um certo advogado ensinou-me um dia que as nossas melhores acções são aquelas que fazemos sem esperar nada em troca.

    O dia seguinte amanheceu com um sol prometedor. Diana despertou demasiado cedo, revelando um velho hábito do seu corpo e preparou-se para ir trabalhar. Tinha de preparar o sobrinho do advogado em apenas dois dias e queria fazê-lo sem pressionar o rapaz.
    Quando os portões do hotel se abriram para ela, não conseguiu evitar a emoção do orgulho por estar na origem daquele pequeno paraíso. Percorreu o caminho forrado por uma arcada verde de árvores até ao edifício majestoso que fazia lembrar uma enorme casa colonial toda em grandes blocos de basalto com grandes janelas modernas que deixava a luminosidade entrar desavergonhadamente. Diana esperou o rapaz fechada no seu gabinete organizando os contractos de trabalho que deveriam ser assinados naquele mesmo dia. As pancadinhas na porta foram delicadas e Diana ordenou que entrasse. A porta abriu-se envergonhadamente e a figura de Rúben depositou-se no seu escritório para grande incómodo de Dina.
- Mas que raio é que estás aqui a fazer! – Diana deu um passo atrás colocando o seu cadeirão à sua frente como se assim se sentisse mais protegida.
- O meu tio disse-me que tinhas trabalho para mim…
- Mas… - A admiração de Diana face a este entendimento momentâneo sobrepôs-se ao terror… - Tu és sobrinho do Dr. Carlos?
- Sim… - O incómodo de Rúben era visível. Diana não pode deixar de sentir uma satisfação intima ao reparar que aquele brutamontes estava quase encolhido. Quase lhe sentia o cheiro a transpiração que o seu corpo emanava dos nervos de estar a ser avaliado pela filha do Zé dos Copos. – Sente-se por favor Ruben! – O homem obedeceu-lhe visivelmente contrariado.
- Quanto é que vais pagar-me? – Perguntou ele tentando dominar a conversa pela via da intimidação.
- Aqui o Ruben não me vai tratar por tu! Eu sou sua patroa e não uma coleguinha de escola… - Ruben sentiu como se lhe tivesses esmurrado o estômago. – Não precisa de tratar-me por doutora… Mas também não me trata por tu… Estamos entendidos?
- Sim… - Foi a única resposta sumida que aquela boca distorcida conseguiu proferir…
- Então vamos prosseguir com esta entrevista de emprego! – Diana colocou os óculos e começou a analisar umas tabelas, sabendo que este compasso enervaria ainda mais Ruben. – Terminou o décimo segundo ano?
- Não! – A humilhação começava a formigar-lhe nos punhos, sentimento que não ficou fora do alcance do entendimento de Diana.
- Ainda tem o hábito de bater em mulheres para se sentir mais homem? – Ruben encontrou um olhar penetrante e frio que lhe congelou qualquer reacção. – Quero que saiba que não admito qualquer falta de respeito ou violência nesta casa… Sente-se capaz de ingressar uma equipa responsável e comportar-se de forma competente e respeitosa?
- Sim… - Uma resposta demorada arrastou-se por entre aqueles lábios que já não eram tão deslumbrantes.
- Eu disse ao seu tio que tinha um lugar como recepcionista… Mas como não confio em si e muito menos gosto de si, vou começar por colocá-lo como porteiro… Está bem assim?
- Sim…
- Quero que saiba que eu lhe estou a fazer um favor… Quero que tenha consciência disso… É a vira-lata que lhe está a fazer o especial favor de lhe garantir um ganha pão… - Diana deliciou-se com aquele baixar de olhos constrangido e quase jurava ter visto um rasgo de arrependimento. – Vou agora acompanhá-lo e mostrar-lhe como deverá executar as suas funções.
    A vida abalroa-nos com constrangimentos impensáveis que poderiam ser evitados por presentes dignos de futuros promissores. Diana sorriu ao pensar que naquele exacto momento se corporizava o ditado “ cada um se deita na cama que fez”. 

Capitulo XIV


Capitulo XIV

    Os olhos abriram-se devagar contrariando a preguiça típica que se segue a um momento se satisfação. O dia já estava claro e Diana deixou que os seus lábios se rendessem ao sorriso de felicidade que o seu peito exigia. Levantou-se devagar e não pode deixar de se emocionar ao olhar para o lençol remexido onde Duarte passara a noite com ela.
- Duarte! – Diana ansiava vê-lo neste dia seguinte. Queria ver os seus olhos brilharem prometedores de um futuro comum. Mas a falta de resposta ao seu chamamento começou a invadir-lhe a mente numa má premonição. – Duarte! – Todas as divisões foram percorridas repetidamente. A procura foi-se tornando mais agressiva e em movimentos rápidos Diana procurava um bilhete, um sinal de que Duarte não se tinha arrependido. O resultado nulo fê-la sentir um enjoo-o que a conduziu para o exterior da casa. O carro não se encontrava onde o tinham deixado. Na cabeça de Diana tornou-se claro que Duarte tinha-se arrependido e estava a dar espaço a Diana para se retirar. Mas que raio é que lhe havia passado pela mente. Já não são uns adolescentes que viajam ao sabor do momento. São adultos que assumiram responsabilidades e não podem agir sem medir as consequências. Duarte tinha um casamento marcado. Uma noiva que organizava uma vida a dois, um casal que sonhava um futuro no qual ela não estava incluída. Diana recolheu as suas coisas e saiu sem demoras. Não se arrependia daquela noite, dos gestos, das carícias. Ela sentiu as lágrimas rolarem-lhe pela face, mas a satisfação de uma memória tão doce já ninguém lhe podia tirar.
    Quando chegou a casa, Diana abriu a porta com cuidado para não fazer barulho e espantou-se com a visão de Bernardo sentado no sofá a conversar animadamente com Raquel. Diana correu na sua direcção e abraçou-o.

- O que é que estás a fazer no meu sofá? – A humilhação do abandono de Duarte foi superada pela alegria de ver Bernardo com bom aspecto, apesar de estar visivelmente mais magro.
- Vim ver se arranjava uma guia para me mostrar esta linda ilha! – Bernardo reparou no olhar triste que acompanhava o sorriso de Diana. – Que tal me levares às piscinas que tanto falas… Poça da Rainha. – Bernardo queria ter oportunidade de falar com Diana a sós. Tinha tanto para lhe contar, que se esperançava que isso fosse suficiente para animar Diana.
    Sentados naqueles degraus tão conhecidos, Diana entrelaçou o seu braço no de Bernardo e encostou a sua cabeça naquele ombro amigo.
- Isto é lindo, Diana! Nunca imaginei que pudesse haver um lugar no mundo que nos preenchesse ao mesmo tempo a vista e o coração. – Bernardo inspirou e preparou-se para pôr Diana a par das novidades. – Vendi tudo…
    Diana endireitou-se face àquela surpresa e refazendo-se do choque mostrou-se um pouco atrapalhada.
- Mas… como assim vendeste tudo? Vendeste o quê? Os teus carros? A tua casa? As tuas acções? – Diana tinha percebido bem a intenção daquelas palavras, mas sentia-se reticente em aceitá-las.
- Vendi tudo Diana! O grupo económico todo! Neste momento tenho uma pequena fortuna com muitos zeros à direita depositada na minha conta bancária.
- Bem Bernardo! Nem sei o que dizer! – Diana olhou-o cautelosamente e não pode evitar um sorriso ao ver um homem mais descontraído. Parecia que lhe tinham tirado um peso das costas, e não pode deixar de se congratular com esta atitude. – Bem acho que me estás a tentar dizer que estou despedida…
    Ambos riram alto como há muito tempo não o faziam juntos. Estavam leves e abertos ao mundo. De repente tudo eram oportunidades, novos caminhos e a leveza da liberdade de escolherem uma nova direcção sem pressões ou fortes desejos encheu-lhes o espírito numa paz partilhada pelo grasnar das gaivotas.
- Ainda gostava de abrir aqui um hotel! Mas só se o fizermos juntos Diana!
- Tenho pensado nisso ultimamente. Tenho imensas ideias… Gostava muito que se tratasse de um hotel de luxo mas sem aqueles requintes que tornam o acolhimento frio. Eu tenho o terreno ideal para o hotel. Eu dou o terreno, mas na condição de ser sócia… O que me dizes Bernardo!
- Vamos fazer loucuras!
- Agora, sócio, só me falta mostrar-te o projecto excelente que já tenho em papel para o nosso futuro negócio… - Diana sentia-se agradecida por ter tido a oportunidade de conhecer Bernardo. Uma pessoa maravilhosa que se encaixava na sua vida de uma forma perfeita. Quem lhe dera que Duarte tivesse a mesma capacidade de encaixe…

    O projecto foi do agrado instantâneo de Bernardo. Um grande terreno que tinha a cidade inteira aos seus pés com uma paisagem que se alongava pela marina estendendo-se no azul do mar e terminando na ilha majestosa que se impunha no horizonte.

- Temos aqui a paisagem mais bonita que já tive o privilégio de ver. Em nenhum outro lugar se pode assistir a um nascer do sol como aqui. O céu começa a tingir-se de laranja atrás daquela ilha triangular. Depois, o sol vai-se mostrando envergonhadamente, até ser um grande e próximo círculo flamejante que parece suster-se na base do Pico… É um espectáculo da natureza que nunca imaginei… - Bernardo tinha-se apaixonado por aquela ilha instantaneamente. – O hotel vai ser um sucesso… a melhor publicidade que lhe podemos fazer é torná-lo num lugar secreto… como se fosse um privilégio conhecê-lo e frequentá-lo… Um lugar em que quem ouça falar dele não seja através de uma agência de viagens que conduz todos os seus clientes para o mesmo sítio. Aqui o cliente vai sentir-se afortunado por não estar num lugar onde entram excursões todos os dias. E este sentimento de se sentirem especiais paga-se melhor do que propriamente a qualidade. Quero que seja um hotel apenas para privilegiados que tenham a sorte de ouvir falar nele. Claro que nós sabemos quem devem ser esses privilegiados… Assim que o hotel estiver terminado vou fazer uns telefonemas a alguns antigos clientes, principalmente alemães, holandeses e ingleses que vão saber apreciar o que lhe vamos oferecer aqui.

    Os meses que se seguiram foram sinónimo de trabalhos e cansaços. As obras avançavam com determinação e bom gosto sempre sob a supervisão de Diana e Bernardo. Para além da construção havia milhentos assuntos a tratar. Os meses foram-se passando no meio desta agitação saudável que não deixava espaços para pensar em problemas ou tristezas. Bernardo sentia-se mais activo e a vontade de viver cada momento com intensidade palpitava-lhe nas veias. Desistiu de fazer os tratamentos. Tomava apenas alguma medicação para as dores. Não tinha desistido da vida… Apenas tinha aceitado a vida tal como ela se lhe apresentava e queria aproveitá-la ao máximo. Tinha um projecto seu que queria muito concretizar e esta força tinha-se oposto às previsões dos médicos que lhe haviam destinado no máximo um par de meses de vida se desistisse dos tratamentos. Já se tinham passado mais de seis meses e a vontade de viver competia de forma desigual com aquela doença que se havia instalado no seu corpo sem sequer pagar renda.
    Para Diana a agitação ocupava-lhe a mente que teimava em perder-se frequentemente na figura imaginária de Duarte. Sentia um vazio que só era ocupado com um quotidiano palpitante e com um tratamento pormenorizado de cada questão, de forma a sentir o pensamento ocupado. Mas o facto de a cabeça não pensar, não significa que o coração não sinta.
    Faltavam apenas trinta dias para a inauguração do hotel e era altura que começar a pensar no pessoal a contratar e de dar formação. Diana e Bernardo faziam questão de ter colaboradores bem formados que soubessem executar um trabalho eficiente, mas principalmente que primassem pela discrição e lealdade. Neste contexto, nenhum deles queria colocar um anúncio no jornal, uma vez que captaria demasiadas atenções. Manter um segredo num lugar pequeno é difícil, mas numa ilha pequena é impossível. Tinham conseguido que as especulações sobre as obras que se faziam dentro daqueles muros altos de basalto fossem tão diversificadas que ninguém tinha a certeza exacta da verdade. “ Vai ser um lar de luxo para velhos que vêm do Canadá”… “ É a casa de férias de um actor muito famoso de Hollywood, aquele que faz filmes românticos e é muito riquinho”… “ Vai ser uma piscina para nudistas, por isso é que está rodeado por aqueles muros que não deixa ver nada para dentro! Esta ilha está perdida! Desconjuro!”… As teorias de adivinhação eram tão variadas que faziam as delícias dos poucos que partilhavam o segredo animadamente na sala de Pedro.
- Ah gente do diabo que esconde coisas esquisitas dentro daqueles muros maléficos… - Raquel brincava com a situação enquanto distribuía várias taças de pipocas.
- Temos de começar o recrutamento! – Diana queria dicas de pessoas idóneas que pudessem contactar.
- Mas vais à tropa?!?! – Perguntou José Gaitinha inocentemente fazendo as delícias dos presentes.
- Oh homem de Deus! Eles querem pessoas para trabalhar! – Manuel que foi o único a revirar os olhos face àquela questão ignorante, explicava impacientemente.
- Ah! Desculpa a minha ignorância… Deus não me deu uma pança onde pudesse guardar um segundo cérebro! – Agora a gargalhada foi geral. Até Manuel não conseguiu evitar um sorriso.
- Oh Diana! Já pensaste em ir ao Colégio de Santo António? – Esta ideia de Guida despertou em Diana um súbito entendimento daquilo que devia e queria fazer. Ela já foi interna naquele colégio e sabe a discriminação que aquelas meninas sofrem.
    Às nove horas em ponto Diana estava no Colégio de Santo António. Foi recebida por uma assistente social que lhe explicou que já não eram as freiras que tomavam conta das meninas.
- Eu acho maravilhoso que esteja disponível para dar uma oportunidade às nossas meninas. – A Dr.ª Filipa, assistente social daquela casa de solidariedade, mostrava um sorriso superficial e olhava para o relógio com uma frequência que irritou Diana. – Poderá ajudar as meninas que estão prontas para começar a sua vida activa fora do colégio.
- Eu lembro-me da dificuldade e preocupação que se sentia nesta casa sempre que uma menina chegava aos dezoito anos e tinha de abandonar a casa.
- Ainda temos essa preocupação. Somos uma grande família e queremos sempre o melhor para as nossas meninas… - Filipa colocou uma expressão de mágoa tão deformada que se lia hipocrisia naquela face. – Mas as meninas passam tantas privações… Coitadinhas… Faço o que posso mas o dinheiro é tão pouco…
- Gostava muito de voltar a ver as instalações, se a Filipa não de importasse, claro!
- Dr.ª Filipa. – Corrigiu a assistente social com a prepotência dos pouco importantes.
    Diana sentiu a emoção alojar-se no meio das costelas quando entrou nos aposentos das meninas. As coisas estavam muito diferentes. Os antigos quartos escuros com várias camas estreitas cobertas por colchas gastas e díspares deram lugar a quartos bem decorados com colchas cor-de-rosa que condiziam com os cortinados. As meninas saiam para as aulas com telemóveis topo de gama, mochilas de marca e a antipatia da falta de cumprimento. Não pareciam meninas frágeis, mas adolescentes presunçosas. Diana já teve aquele ar demasiado duro e despreocupado que escondia a mágoa da rejeição. Um muro de protecção que impede qualquer contacto mais estreito, que as torna meninas superficiais com histórias de vida demasiado duras e personalidades demasiado fracas. Um sorriso tímido de uma menina magra, com uma trança grossa loura fez Diana experimentar novamente os seus dez anos, quando quem tinha aquele sorriso ficava com as tarefas mais pesadas. Diana simpatizou instantaneamente com aquela rapariga de estatura baixa e ombros estreitos. Se ela sorria assim é porque não tinha medo do trabalho, caso contrário mostraria um ar sisudo de forma a conseguir o medo das colegas e desincentivá-las a delegar-lhe as tarefas indesejadas.
- Olá! – Diana dirigiu o mesmo sorriso aberto àquela menina. – Eu sou a Diana!
- Olá! Eu sou a Marta! – Marta encarou Diana com um certo encantamento que Diana percebeu instantaneamente.
- Esta já foi a minha casa! – O brilho de esperança que trespassou o olhar de Marta foi exactamente como Diana o tinha previsto. Queria transmitir segurança àquela jovem. Sentiu uma vontade imensa de protegê-la de lhe garantir um futuro risonho. – Quantos anos tens Marta?
- Faço dezoito anos daqui a dois meses. – Os olhos rasaram-se de lágrimas. Uma idade que para a maior parte das jovens daquela casa é sinónimo do segundo abandono. É a idade limite para pertencer àquela família que conhecem. É a idade em que são lançadas para um mundo regido por quotidianos e regras afectivas que não conhecem.
- E o que é que tu queres fazer da tua vida? – Diana estava com o seu instinto protector accionado na potência máxima. – Queres estudar? Queres trabalhar?
- Eu não sou lá muito boa nos estudos. Estou a frequentar o décimo ano, mas vou chumbar. – Marta deixou finalmente as lágrimas libertarem-se. – Se já estiveste aqui sabes bem que se não continuar com os meus estudos, tenho de me ir embora… Confesso que estou com muito medo…
    Diana sentou-se na beira de um muro baixinho que dava acesso a uma varanda exterior e puxou Marta para que fizesse o mesmo.
- Não chores Marta! Um dia uma pessoa disse-me que nós temos menos oportunidades na vida do que as pessoas normais, por isso devemos estar mais atentas a essas oportunidades e quando elas aparecem devemos agarrá-las com ambas as mãos. – Diana rodeou os ombros da rapariga que teimavam em tremer e pousou-lhe um delicado beijo no cimo da cabeça. – Estás preparada para agarrar uma oportunidade Marta?
- Estou preparada para agarrar todas as oportunidades. – Marta sentiu um arrepio de confiança que lhe percorreu todo o corpo em pequenas doses de esperança. Diana tinha razão. Ia colocar o seu melhor sorriso e agarrar as oportunidades que lhe estavam destinadas e provar a todos que ela tem capacidades para ocupar o seu lugar no mundo.
- Sentes-te capaz para começar a trabalhar?
- O trabalho não me assusta! É a única coisa em que sou boa…
- Queres trabalhar num hotel de luxo?
- Até nas limpezas de casas de banho públicas… Assim que aparecer uma oportunidade vou agarrá-la. – Diana não pode deixar de sorrir. Estava um pouco de si mesma naquele comentário dotado de força de vontade.
- Não estás a perceber Marta… Eu tenho um hotel e gostava muito que trabalhasses para mim…
    Marta rodeou o pescoço de Diana e chorou de alegria, de gratidão, de alívio. Aquela mulher distinta estava a oferecer-lhe a tão escassa oportunidade e Marta não iria desiludi-la. Era a primeira pessoa que apostava nela e Marta sentia-se merecedora dessa aposta. Até este dia Marta era vista como uma menina frágil, e do tipo de personalidade fraca que todos se sentem incentivados a abusar. Nunca lhe foi detectada uma virtude que valesse a pena ou uma acção que indicasse distinção. Mas a lealdade que nunca foi detectada aos olhos avaliadores demasiado ocupados em actos grandioso foi absorvida por Diana, que tinha aprendido o dom de analisar as pessoas para além de um primeiro olhar. A capacidade de avaliar para além do superficialmente visível é uma virtude escassa nas sociedades modernas que se tornam detentoras que grandes sabedorias fúteis e pouco profundas.

domingo, 14 de agosto de 2011

Capitulo XIV

Capitulo XIV

    Diana aproveitou o resto das férias para se libertar dos seus antigos fantasmas. Despiu-se de todas as preocupações e ambições. Libertou-se dos objectivos e concentrou-se apenas no que lhe dava prazer. Descobriu uma Diana simples de sentimentos fáceis e com jeito para actividades radicais. Participou em todas as caminhadas por carreiros até então desconhecidos, mas foi no percurso que fez à volta da caldeira que Diana sentiu um novo chamamento para o seu futuro. Diana sentou-se um pouco numa elevação e sentiu a sua alma em sintonia com aquela calma aparente. O seu coração desacelerou o ritmo das preocupações e os seus olhos fecharam-se num relaxamento que sintonizou todos os seus sentidos com a paz daquele momento. Os pêlos dos seus braços eriçaram-se voluntariamente em resposta à carícia de uma brisa fresca. As narinas abriram-se desavergonhadamente ao cheiro de erva húmida e a sua alma conciliou-se devagar com a profundidade daquela cratera. Aquele lugar era o espelho do seu espírito. Um vulcão em tempos activo e o provável responsável pela existência daquela ilha maravilhosa. Um vulcão que se afirmou em consecutivas explosões incompreendidas e indesejadas que construíram um património. Um vulcão que viveu uma actividade alucinante em nuances de fluorescências e sentimentos palpitantes e que finalmente encontrara uma paz tranquila naquilo que construíra. Um vulcão de um encarnado vibrante que se deixou descansar numa grande cratera que agora brotava uma variedade lúcida de verde e que escondia vidas e vivências.
    Diana sentia essa calma na totalidade dos seus poros e os seus olhos repousavam naquela paisagem arduamente construída por aquele vulcão adormecido que contornava o enorme buraco numa longevidade de pastos divididos por hortências em flor que deixavam reflectir o azul do mar distante e dançante à volta daquele triângulo de ilhas. Mas esta calma dissipava-se com a aproximação da viagem de regresso que a conduziria de volta à sua vida tão desejada e suada. Diana tinha agora a responsabilidade da gestão de todo o grupo económico, incluindo os hotéis, os restaurantes e as agências de viagem. Era o braço direito de Bernardo e neste momento a única pessoa de confiança que ele tinha. Bernardo encontrava-se numa condição física muito debilitada. A doença apoderava-se do seu corpo com o mesmo efeito que uma manada de elefantes teria num pomar, e Diana não podia abandoná-lo nesta fase tão delicada. Acima de tudo devia-lhe lealdade... Mas ela não podia ignorar o chamamento daquela terra.
- Estou!... – Diana foi arrancada daquela sintonia com o ambiente envolvente pelo toque corriqueiro do seu telemóvel. – Bernardo! Que bom ouvir-te! Estava agora mesmo a pensar em ti!
- Coisas boas, espero! – Bernardo falava com a dificuldade dos fracos e Diana sentiu o coração apertar-se face a esse entendimento.
- Não me dás possibilidade de pensar mal de ti! Estás bem?
- Dentro dos possíveis! – Diana compreendia aquelas palavras. Era sinal que as dores lhe estavam a dar uma trégua. – Encontraste o Duarte?
- Sim! – Diana tinha em Bernardo, para além da pessoa do seu patrão, um grande amigo. Mesmo sabendo que Bernardo nutria por ela um sentimento muito mais forte do que amizade, naqueles anos nunca foi um assunto abordado. Era uma certeza que ambos partilhavam de uma forma muda e que nunca foi impeditivo para que a amizade entre eles se fortalecesse. – Mas não foi como esperava. Ele já refez a sua vida com outra pessoa!
- Lamento Diana! – Bernardo lamentava sinceramente. Apesar de amar aquela menina mulher que lhe entrara na vida de uma forma tão intempestiva, desejava vê-la feliz… Aliás, este era o seu único e último desejo.
- Evitei esta terra com todas as minhas forças Bernardo!... Mas agora que aqui estou sinto-me mais real nesta terrinha! – Diana fez um momento de silêncio, e como não obteve resposta do outro lado da linha continuou. – Não sei se o que vou dizer faz sentido, mas é como me sinto… É como se aqui fosse a verdadeira Diana. Como se a Diana que construiu essa vida tão desejada fosse uma farsa.
- Percebo! – Bernardo sentiu um aperto no coração. – Tens aí as tuas raízes. Foi aí que criaste a tua personalidade. Foi essa terra que te moldou e fez a pessoa incrível que tu és! – Bernardo fez uma retrospectiva à sua vida. Ele foi empurrado para aquela vida que não escolheu. Foi criado para continuar com o negócio de família e toda a sua vida foi um esforço para não falhar na missão que lhe foi incumbida. Não era nenhum coitadinho. Não era assim que se sentia. Pelo contrário, sempre se sentiu um privilegiado. Mas neste momento queria aliviar-se da pressão daquele património. Queria saborear a pouca vida que lhe restava sem confundi-la com a vida sonhada pelos pais. E era isso mesmo que iria fazer. – Diana?
- Sim!
- Fica aí mais uns dias!
- Não posso! Tenho de começar a analisar os lucros deste ano e começar a traçar as linhas orientadoras do próximo ano. Ainda falta um trimestre para terminar o ano e já temos os objectivos praticamente atingidos… quero que os funcionários sintam orgulho do seu trabalho e que se sintam admirados e respeitados por isso… Até tenho umas ideias que queria partilhar contigo sobre…
- Pára com isso, Diana! Eu sou o patrão e eu é que decido! Quero alargar o meu negócio aos Açores. Começa a procurar oportunidades por aí!
- Estás a falar a sério?
- Claro que sim!
- Vou começar já a tratar disso! – Diana sentiu a emoção vibrante que acompanha um novo desafio gratificante. – Gostava muito que conhecesses esta ilha, Bernardo! Um homem que conhece o mundo e que nunca veio ao lugar mais bonito deste planeta… É pecado!
- Quem te disse que eu não vou aí dar-te uma mãozinha?
    Diana não cabia em si de felicidade. Já há muito tempo que não sentia uma motivação tão forte a revolver-lhe as entranhas. Aquela terra é um poço sem fundo de oportunidades para investir no turismo. Ela vai fazer um trabalho de excelência e vai garantir uma ligação com aquela terra que lhe vai permitir regressar às suas origens com mais frequência.
    Quando a tardinha convidou a um regresso a casa Diana sentia a felicidade de uma forma que ela nunca tinha saboreado.
- O jantar está pronto!
    Diana respondeu a este chamamento de Raquel com a destreza dos olímpicos e em tempo recorde estava sentada na mesa completamente concentrada no seu olfacto que inalava sofregamente aquele cheiro apetitoso que só uma boa alcatra cozinhada num tacho de barro pode emanar. As narinas antecipavam o paladar que se degustaria no sabor da carne tenra que se desfazia na boca juntamente com a batata assada embebida num molho divinal. O jantar terminou com uma sobremesa sublime que satisfez os mais esquecidos desejos de Diana. Tratava-se araçás, um fruto pequeno e amarelo que fazia lembrar uma romã minúscula, mas com uma textura suave. A memória de Diana foi impulsionada para o passado. Naquela mesma casa, numa época em que esta era sombria, em que a decadência e as sombras dominavam o ambiente, Diana sentava-se debaixo da árvore-araçá, na companhia do irmão e abriam a boca enquanto sacudiam os galhos, na esperança que os frutos lhe caíssem directamente na boca. Pedro tinha sempre a agilidade de conseguir tal proeza para grande frustração de Diana que não gostava de perder nem a feijões.
- Esta árvore é a única coisa fértil nesta casa. – Diana constatava este pensamento sempre que terminavam a brincadeira.
- Um dia, esta casa vai palpitar vida e alegria! – Pedro contrapunha sempre com esta frase. Era um ritual que se repetia numa inconsciência necessária.
   Nessas alturas Diana achava o irmão um sonhador que se afastava da realidade criando falsas expectativas relativas àquele lugar que se assemelhava a um túmulo, onde ela se sentia enterrada viva. Hoje ao olhar para aquela casa onde se sentia um ambiente familiar e um calor humano que nunca sentira em outro lugar para além do café, Diana já não tinha tantas certezas de serem os sonhos dela os mais correctos, e a expressão “renascer das cinzas”, tomavam uma nova dimensão na vida que Pedro escolhera para si.
    O fim do jantar foi marcado pelo toque musical da campainha.
- Olá pessoa! Já estão prontos? – Guida entrou conhecedora do caminho e atirou a mala para cima do sofá, encaminhando-se de seguida para a cozinha onde começou a ajudar as mulheres da casa a tratar da louça. Paulo seguiu a mulher e encostou-se à bancada com uma cerveja na mão tagarelando com Pedro. Diana conseguia ouvir as vozes de José Gaitinha, Manuel e Mário na sala de estar a discutirem as melhores tácticas para melhorar o jogo do tão amado Benfica.
- Hoje falei com o Bernardo e ele disse-me para começar a procurar um lugar para abrir um hotel aqui! – Diana lançou a notícia sem aviso prévio e esperou uma reacção.
- Estás a falar a sério? – Foi Pedro o primeiro a expressar o seu espanto.
- Eu não brinco com assuntos de trabalho.
- Eu estou muito feliz! Isso significa que vais passar mais tempo por cá! – Raquel abraçou a amiga num gesto efusivo que reflectia bem a sua personalidade.
- Não te sentes assustado com o facto de te voltares a ligar a esta ilha? – Foi Paulo que fez a pergunta que sondava todas as mentes daquela cozinha.
- Sabes Paulo, durante anos lutei para me afastar desta terra inutilmente. É aqui que estão as minhas raízes, a minha família, as minhas memórias… Umas coisas excepcionalmente boas, outras terrivelmente más… Mas foi a junção de todas que resultou na pessoa que eu sou… Eu sinto-me muito ligada a este lugar… - Diana sentiu o lábio inferior tremer. – Pode parecer parvoíce… Eu sofri tanto aqui… Houve muito mais gente a maltratar-me ou ignorar-me do que a dirigir-me um sorriso… Mas aquilo que eu sinto quando estou aqui convosco é demasiado grandioso para ser sequer comparado às privações que passei. – Aquelas palavras foram ouvidas e sentidas por todos os presentes daquela casa e o abraço que uniu Pedro à irmã foi emocionado por um par de lágrimas em várias faces amigas.
- Vá lá! Acabem com essa choradeira que hoje é dia de festa! – Foi José Gaitinha que, limpando as lágrimas de orgulho que lhe rolavam pelas bochechas murchas, fez aquela gente regressar ao seu quotidiano.
    Saíram da casa de uma forma ruidosa e animada e dividiram-se pelos dois carros numa agitação engraçada que fazia lembrar um bando de crianças a lutarem pelos mesmos lugares. O caminho era longo para as distâncias de uma ilha e as curvas enjoavam um pouco Raquel, que só se distraia com as canções regionais que os amigos insistiam em cantar. A noite seria passada nas festas do varadouro. Umas festas que seguiam a tradição do arraial e umas tascas onde se podiam comer favas assadas e pernas de caranguejo. Os carros tinham de ser estacionados muito longe do lugar dos festejos, mas mesmo assim valia a pena o longo caminho a pé. Desceram a estrada escura e contornada por salgueiros e faias cantando desafinadamente a “sapateia”. Diana deliciava-se com a voz grossa de José Gaitinha que abria exageradamente a boca e pronunciava mal as palavras.
- Bem Gaitinha! Espero ter a oportunidade de te ouvir cantar mais vezes… És um verdadeiro Pavaroti da música popular açoriana! – Diana entrelaçou o seu braço no do velho que se inchou de importância.
- Se queres que te faça uma serenata é só pedires… Não precisas de me dar graxa…
- Estou tão contente… Neste baile vou dançar com as três mulheres mais bonitas da festa! – Mário esticava-se enquanto falava. – Sabem quando foi a última vez que isso me aconteceu?
- Quando eras pequeno? – Foi Manuel que brincou com a estatura de Mário, mostrando que até aquele resmungão estava animado.
- Ah! Ah! Ah! Muito engraçado este príncipe encantado pançudo! – Mário voltou-se novamente para as raparigas! – Nunca tal coisa me tinha acontecido… Hoje não quero mulheres barbudas…
A gargalhada foi geral e as luzes da festa foram recebidas com agrado. Assim que se aproximaram do baile, Pedro pegou em Raquel e levou-a para o meio da pista. Paulo fez o mesmo a Guida e Diana foi arrastada por Mário que estava inquieto que os olhares dos presentes se espantassem com a sua capacidade de arranjar um bom par. Os pares foram trocados graciosamente e Diana acabou por dançar com todos eles, até com Raquel. Diana vasculhava as feições dos presentes e conseguia distinguir os nativos daqueles que não pertenciam àquela ilha. Era como se uma linhagem distinta definisse as feições dos faialenses. Mesmo na geração mais nova, Diana conseguia perceber quais os seus compatrícios, e em alguns casos era capaz de identificar o lugar ou mesmo a família de onde provinham. É uma característica típica dos lugares pequenos, e talvez fosse esse um dos motivos que ligam estas gentes às suas terras… ali todos são identificados… Nunca são meros desconhecidos, mesmo que essa identificação seja negativa. Diana sentia que estava aberta a dar uma segunda oportunidade àquela ilha.
- Tenho de parar um pouco! Já não sinto as pernas… - Diana sentia-se tonta de tanto rodopiar.
    Abandonou a pista improvisada de dança e saiu daquela largo à procura de um lugar para se sentar. O pequeno muro que separava a terra do mar estava cheio de gente que tinha tido a mesma ideia e Diana começou a afastar-se um pouco das luzes na esperança de encontrar um lugar mais calmo. A festa terminava no último carrinho de algodão doce e Diana continuou um pouco mais o seu caminho. A noite estava um pouco fria e um arrepio invadiu-lhe a espinha, seguido de um forte instinto de olhar para trás. Diana ignorou este impulso e chegou mesmo a soltar uma gargalhada que continha um timbre nervoso. O cansaço que sentia nas pernas encorajaram-na a passar a zona escura dos balneários e a encontrar o muro que contornava a descida para umas piscinas naturais. A escuridão feria tanto os olhos que tentavam focar as formas no meio daquela ausência de luz. Quando finalmente encontrou um muro totalmente ao seu dispor, sentou-se e soltou um suspiro de alívio. As pernas pareciam pesar toneladas e aquele descanso foi mais que desejado. Quando os seus músculos começaram a relaxar, o seu coração retraiu-se face a um cumprimento de uma figura masculina cuja voz não lhe era completamente desconhecida.
- Excelentíssima doutora vira-lata! – Aquele cumprimento trouxe-lhe memórias os pontapés repetidos no estômago que sofrera sem que ninguém tivesse mexido uma palha para evitá-los.
- Olá Ruben! – Diana sentia-se tão nervosa a apavorada como nos seus tempos de adolescente. O seu corpo estava todo em alerta e o peso das pernas já não se fazia sentir, preparando-as para se pôr em fuga a qualquer momento.
- Então voltaste? – Ruben sentou ao lado de Diana de forma calma, o que fez com que a rapariga baixasse um pouco a guarda.
- Estou de férias. Devo voltar em breve! – Respondeu Diana num tom que tentava ser simpático.
- Estou a ver! – Ruben aproximou-se mais e Diana conseguiu sentir-lhe o bafo pestilento a vinho barato. – Eu cá acho que vieste tentar provar que já não és uma vira-lata…
- Eu nunca fui uma vira-lata! – Os músculos de Diana voltaram a retrair-se. E afastou-se um pouco discretamente.
- Já conseguiste tudo o que a tua ganância desejava… Só te falta conseguir uma última coisa que desejaste muito, não é assim Diana? – E com esta pergunta Rúben voltou a aproximar-se de Diana, agarrando-a com força pelo braço quando ela se levantou de uma forma desesperada. – Eu vou facilitar-te a vida e vou dar-te o que tu tanto desejaste durante a tua adolescência… - e encostando a sua boca de forma lasciva ao ouvido de Diana acrescentou – Não estás feliz Diana? Finalmente vais provar o desejado…
    Diana arregalou os olhos num entendimento momentâneo e o pânico invadiu-a de uma forma nervosa que se manifestava em gestos rápidos e desesperados, facilmente controlados pelo braço forte de Rúben que a rodeou prendendo-lhe os movimentos. Desesperada, abriu a boca para libertar um grito de socorro que depressa foi abafado pela mão livre daquele homem que parecia gigante. Aquele ser perverso preenchia todo o espaço que a rodeava e Diana sentiu que lhe começava a faltar o ar no meio daquele beijo desajeitado e lascivo. Rúben arrastava-a para o meio da vegetação intensa. Obrigou-a a deitar-se utilizando a força e a sua mão indiscreta começou a perscrutar o corpo de Diana de uma forma devassa, seguida pela boca ordinária. O pânico de Diana crescia e ela contorcia-se e esperneava. Um soco sentido no seu maxilar inferior fê-la acalmar-se uns segundos num reflexo de surpresa, mas depois os seus gestos tornaram-se mais desesperados. Nova chapada na cara incendiou ainda mais a luta de Diana que se esforçava por gritar e por se libertar daquele predador nojento que lhe percorria a intimidada usando uma força bruta. O seu corpo preso desesperava quando a mão grande e áspera lhe levantou o vestido e numa fracção de segundos já não sentia o peso do seu agressor. Sentiu que ele tinha voado e finalmente conseguiu gritar e chorar todo o medo que lhe dançava nas entranhas. Ficou sentada abraçada a si mesma esforçando-se por perceber o que se passava. Sentia que estava a haver uma luta, mas não conseguia perceber entre quem. Apenas diferenciava umas formas humanas que se agarravam sofregamente, para depois uma delas cair no chão e não se voltar a levantar. Ao sentir novamente alguém a aproximar-se Diana tentou levantar-se desajeitadamente, uma vez que as pernas lhe tremiam, e quando sentiu que esse alguém se sentava ao seu lado o pânico voltou a dominá-la. Uns braços envolveram-na e uma voz muito desejada segredou-lhe ao ouvido.
- Está tudo bem! – Duarte abraçava-a com força e a sua voz era rouca. Quando ele sentiu o corpo de Diana descontrair-se ele então começou a tentar perceber o estado físico de Diana. – Dói-te alguma coisa?
- Dói-me tudo! – Diana tinha uma vasta experiência com os maus tratos e percebia bem qual o significado daquela pergunta. – Mas não tenho nada partido nem deslocado… Só estou dorida…
    Duarte sabia que podia acreditar no deu diagnóstico, e levantou-a com cuidado encaminhando-a para o seu carro. O caminho, sempre em subida foi feito pacientemente devagar. E quando chegaram à viatura Diana não conseguiu evitar um sorriso.
- Tenho saudades do Fiat Punto! – Perante aquele cometário, Duarte não conseguiu evitar uma gargalhada. Ela lidava bem com a situação, não porque fosse uma situação pouco importante, mas porque ela estava habituada. Este pensamento provocou um aperto no peito de Duarte.
- Este Toyota Yaris é alugado! Dei o Fiat a uma senhora que trabalhava nas limpezas do hospital.
    Diana entrou no carro sem questionar o destino. Sentia-se segura na companhia de Duarte e queria alongar ao máximo o tempo que estava com ele.
- Devia ter avisado o meu irmão. Eles vão ficar preocupados.
- Não te preocupes! Vou enviar-lhe uma mensagem.
    Duarte sentia o seu corpo novamente em alerta como acontecia sempre que estava na presença de Diana. Sentiu que por baixo do perfume caro que ela usava ainda sentia aquele aroma doce que lhe lembrava sempre o cheiro do leite-creme. A sua garganta apertou-se ao sentir o olhar de Diana perscrutar-lhe as feições e sentiu que todas as forças da natureza o empurravam naquela direcção como se Diana fosse detentora de um poderoso campo magnético.
    O carro foi estacionado fora de uma casa geminada. Depressa Diana percebeu que se tratava da casa onde Duarte estava instalado. Entraram na casa vazia e Duarte foi buscar o estojo de primeiros socorros. Sentados na sala Duarte sentiu uma fúria crescer-lhe nas entranhas, quando olhou para o rosto de Diana e a vontade de ficar permanentemente com ela de forma a protegê-la foi incomensurável. Duarte olhou para aquele rosto reviveu o momento em que conheceu Diana, no hospital vítima de uma violência extrema que se espelhava num rosto inchado. Desde essa altura que Diana faz parte da sua vida, dos seus mais frequentes pensamentos, desejos e ambições. Enquanto lhe limpava o rosto com um algodão embebido em água de forma a remover a terra e as poeiras, Duarte sentiu naquele contacto inocente a certeza de que o seu futuro casamento acabava de ficar sem efeito.
- Está muito feio? – Perguntou Diana, tentando cortar aquele silêncio que começava a enervá-la.
- Tens um hematoma junto ao queixo e alguns nos braços e pernas. Fora disso estás óptima e recomenda-se.
- Obrigada! Se não tivesses aparecido…
- Não digas mais nada… - Duarte nem queria imaginar o que poderia ter acontecido para além dos hematomas… - Eu sou um super-herói muito atento, sempre pronto a ajudar donzelas em apuros
    A gargalhada nervosa que Diana deixou libertar, fez com que Duarte pasmasse naquela figura delicada e emocionou-se com a capacidade dela ultrapassar os momentos difíceis. Admirava-a com toda a sua sabedoria, e naquele exacto momento desejava-a na sua vida com todas as suas forças. Os movimentos com o algodão deram lugar a carícias suaves que Diana não recusou o seu olhar profundo antecipou o momento lento que se seguiu e desabrochou num beijo meigo que foi permitindo um envolvimento mais intimo aproximando-os numa paixão inadiável. Duarte pegou em Dina sem lhe libertar o olhar e conduziu-a ao quarto, onde se fundiram de corpo e alma num entendimento lento e profundo que os tornou num único ser.