domingo, 19 de junho de 2011

CAPÍTULO V

CAPÍTULO V


    O hall-de-entrada do edifício novo da escola secundária estava repleto de rostos ansiosos e nervosos. Diana agarrava a mão de Duarte com uma força desnecessária, mas o enfermeiro não reclamava. Todos os olhares estavam depositados nas contínuas que entravam com as pautas decretórias de muitos futuros, incluindo o de Diana e Raquel, que se contorciam em ansiedade de ver o resultado daqueles exames nacionais. As mãos experientes eram rançosas na colocação dos papéis desejados no placar, enquanto as cabeças se começavam a esticar sobre os ombros ossudos das duas funcionárias da escola. Diana foi a primeira das duas amigas a visualizar as suas notas. Foram excepcionais e garantiram-lhe uma média final de 18,8 valores. Diana sentiu um orgulho incomensurável que lhe preencheu as entranhas e que se enalteceu com o olhar terno e babado de Duarte.

- Diana!... Diana!... – Raquel furava impetuosamente aquela barreira de gente que a separava da amiga. Assim que a avistou laçou-se ao seu pescoço. – Oh Diana!... Eu consegui! Tens de ver as minhas notas… Os meus pais nem vão acreditar. Fiquei com média final de 16,7… E tudo graças a ti sua bicha do mato.
    Diana sentiu o peito ainda mais inchado de satisfação. O reconhecimento da amiga vincava-lhe ainda mais o orgulho, mas a alegria que sentia por ela ultrapassava em muito o primeiro sentimento.
- Eu sabia que tu conseguias! Sempre soube! Afinal tu és a beta loura mais inteligente que eu conheço.
- Oh! Isso não vale como elogio… Tu não conheces mais nenhuma…

    As raparigas rodopiavam enquanto choravam e riam ao mesmo tempo. Duarte tentava inutilmente conduzi-las para o exterior do edifício. Nesta tentativa frustrada de atingir a porta de entrada, Raquel tropeçou em Ruben e logo o abraçou também num impulso.
- Olá Ruben! Eu tive 17 a inglês, viste? E 17 a psicologia, viste? Sabes o que significa? Eu vou conseguir tirar o curso dos meus sonhos…
- Ainda bem Raquel, fico muito contente…
- E tu? Nunca soube bem quais eram os teus planos…
- Eu chumbei…
- Oh! Lamento imenso Ruben!
- Não te preocupes! Eu prefiro assim. É melhor repetir este ano e para o próximo ano vou sentir-me mais seguro…
- Ah! A Diana foi a melhor aluna da escola de certeza absoluta. Ela até tirou 20 a matemática e economia. – Raquel puxou a amiga para o seu lado para que pudesse receber uma palavra de agrado do colega.
- Não te desfaças em graças comigo sua borra-botas… Nem sequer ouses olhar para o sítio onde estou… Estás a ouvir sua pelintra. – O tom de voz de Ruben foi subindo desagradavelmente atraindo todos os olhares para aquela cena.- Pensas o quê?!?! Que agora que a Raquel te dá confiança já és gente?!?! Vadia, rafeira… - este discurso inflamado culminou com um estalo ruidoso na face de Diana.

    Duarte não deu tempo de refrear os ânimos e respondeu com um soco rápido e certeiro no olho direito de Ruben. A confusão instalou-se e foi a professora de Biologia que colocou termo àquela situação.
- Ruben, vais já para o gabinete da directora. E vocês três podem seguir-me até à sala de professores.

    A sala de professores era um espaço que intimidava Diana. Quando entrou sentiu-se de uma pequenez crónica e a intensidade dos olhares inquiridores dos professores pesava-lhe na alma.
- A culpa não foi nossa! Foi aquele bruto que se atirou à Diana… Veja a marca da mão dele ainda está impressa no rosto dela… - Raquel sentia uma fúria que lhe ascendia desde o diafragma até às cordas vocais que neste momento vibravam em demasia.
- Deixa-me ver o teu rosto Diana. – A professora Maria de Jesus, que conhecia os dramas daquela aluna que ela tanto estimava sentou-a com uma cautela excessiva e afastou o cabelo de Diana deixando à mostra a marca dos dedos de Ruben.
- Não foi nada! Já passou! – Diana sentia-se desconfortável com aquelas atenções e só queria sair dali.
- Foi uma agressão! E uma agressão nunca deve ser reduzida a nada sob pena que adquirir exactamente essa importância. – A professora de filosofia, Maria Céu, acariciava-lhe o rosto magoado enquanto lhe falava devagar como se quisesse forçar a entrada de uma ideia. – Percebes o que te estou a dizer Diana?
    Diana abanou a cabeça afirmativamente e atreveu-se a levantar o olhar até Duarte que estava inchado de fúria.
- Bem Diana! Existe outro assunto que queríamos falar contigo. A directora incumbiu-me de te comunicar que tu e um outro colega da ilha de S. Miguel foram os melhores alunos da região autónoma dos Açores e ocupam os primeiros lugares na tabela nacional. Este ano o grupo aéreo SATA vai baptizar dois aviões e convida-te para madrinha de uma deles. É evidente que terás benefícios junto da companhia. Mas eles entrarão em contacto contigo. Tens alguma questão? – A professora Maria Jesus sentou-se ao seu lado pegando-lhe na mão. Um gesto que nunca se permitia enquanto docente, mas já não era professora na escola daquela rapariga. Ela agora seguiria um caminho que ela própria conquistara com muito esforço e todo o merecimento.
- Gostava de saber se com estas notas posso obter alguma bolsa de estudo.
- Nós vamos ajudar-te nisso. Se existe alguém neste mundo que merece uma bolsa de mérito és tu Diana. – A professora mudou de posição e dando a entender que o caso da agressão estava completamente terminado continuou. – Também queremos pedir-te que discurses no próximo sábado no baile de finalistas. Vamos fazer um baile de gala e haverá um prémio para o melhor aluno deste 12º ano, que és tu evidentemente. Gostaria muito que tivesses um discurso preparado.
- Mas… - Diana não podia conceber tal coisa. Como podia ela falar para uma plateia que não a respeitava? Uma plateia de alunos que nem a consideravam uma pessoa?
- Não há mas nem meio mas… Prepara um discurso e não se fala mais nisso. Encontramo-nos no sábado.
    O reconhecimento que Diana sentia naquela sala de professores enchia-lhe a alma de um orgulho e de uma vontade de um dia voltar ali e mostrar que tinha conseguido alcançar mais do que sequer seria desejável para ela.
    Quando finalmente saíram da escola, Diana e Duarte encaminharam-se a pé para o café no intuito de comunicar as novidades aos restantes amigos. De mãos dadas caminhavam sem pressas fora do clube naval, apreciando os barcos à vela que iniciavam novos aventureiros.

- Não foi a primeira vez que te trataram mal naquela escola, pois não? – Duarte cortou aquele silêncio com uma conversa que se antevia difícil.
- Não. – A resposta curta e rápida deixou um peso de verdade no ar.
- Foi só o Ruben que te agrediu?
- Não. – Novamente aquela resposta monossilábica.
- E tu nunca te queixaste a ninguém?
- Não. – Desta vez Duarte não deixou a resposta no ar e interrompeu os passos de Diana com um abraço forte e sentido envolvido numa promessa murmurada.
- Nunca mais vou deixar que te tratem mal Diana. Nunca mais vais ter que engolir humilhações… - Diana deixou-se envolver por aquele mundo que já lhe pertencia e que começava a ser-lhe agradavelmente familiar.

    À porta do café Diana sacudiu os cabelos soprou para cima e preparou-se para ser mimada como realmente merecia.
- Atenção minha gente! – Diana colocou-se em cima de uma cadeira e tilintava com uma colherzinha numa chávena chamando a atenção dos presentes. – É oficial… Eu sou a melhor aluna da região autónoma dos Açores e uma das melhores alunas do país! – O mar de aplausos e assobios romperam. Seguiram-se os cumprimentos carinhosos as palmadinhas nas costas, os abraços e os beijos estalados dos pescadores.
- Lembras-te quando eu te ensinei a prova dos nove? Foi desde aí que te transformaste numa pessoa inteligente. – José Gaitinha exibia-se ao lado daquela rapariga que lhe proporcionava um orgulho que nunca sentira.
- Não… Foi graças às minhas lições de história… Quem é que te contou as artimanhas do Conde Andeiro com D. Leonor Teles para entregar Portugal aos castelhanos? – Mário não largava o braço daquela menina que acompanhava há anos e de quem aprendera a partilhar os sonhos.
- Desculpem meus senhores, mas a influência positiva que esta menina recebeu que a tornou nesta jovem esplendorosa, foi minha… - Até Manuel mostrava indícios de emoção na humidade que lhe contornava os olhos.

    Diana ligou ao irmão a contar todos os pormenores daquela tarde. Tinham muito para organizar. Tinham de planear tudo com muito cuidado. Afinal de contas o sonho dela estava prestes a materializar-se e ela entraria de cabeça erguida na faculdade de economia da cidade dos estudantes. E daí sairia também vitoriosa, porque Diana começava a perceber que o sabor da vitória e da superioridade é infinitamente melhor do que certos privilégios quotidianos. Ela voltaria àquele lugar de cabeça erguida e ninguém teria coragem de a humilhar, ou sequer de emitir pensamentos menos agradáveis da sua pessoa. Um dia iria poder proporcionar momentos gloriosos àquela gente simples que merecia um mundo de respeito e gratidão.
    Aquela noite não foi passada em festejos grandiosos, mas simplesmente sentada no sofá de casa a ver um filme repetido milhentas vezes nos canais abertos e enroscada no irmão a comer pipocas. Um serão corriqueiro, que lhe tinha passado ao lado durante toda a sua existência.
- No sábado vou ao baile com a Raquel. – Pedro atirou a novidade para ver como caía na irmã.
- Não acredito… Em vez de me acompanhares que sou tua irmã… a mulher da tua vida, vais acompanhar uma loura boazona… - Diana estava contente com aquela nova perspectiva do irmão se entender com a Raquel. – És um vendido… É isso que tu és!
- Tu já vais ser conduzida por um enfermeirozito! Tive de arranjar outra pessoa que me desse atenção!
- Oh meu caro irmão! Pois fique sua excelência sabendo que eu tenho dois braços…
    Pedro começou a fazer-lhe cócegas que resultaram num voar das pipocas. Diana ria alto e tentava defender-se daquela ofensiva que disparava de todos os lados. Finalmente conseguiu levantar-se do sofá e sempre a fugir desajeitadamente refugiou-se atrás da mesa da cozinha. Enquanto fitava Pedro que a tentava apanhar o som do telefone soou estridente. Correram ambos para o aparelho e foi Diana a mais bem-sucedida.
- Sim… - após um momento a ouvir a conversa do outro lado, Diana terminou a chamada. – Então fica combinado. Amanhã ao meio-dia estarei pronta. Beijo.
- Agora recebes telefonemas… Quem te viu e quem te vê! – Pedro já tinha acalmado a sua perseguição e voltou a sentar-se no sofá ao lado da irmã. – Não vais dizer-me quem era?
- Claro que te digo! Era a tua amada… - nova insinuação de cócegas se fez insinuar na ponta dos dedos de Pedro, mas depressa se verificou que não passava de uma falsa intenção. – Tem calma maninho! Ela só me queria convidar para almoçar lá em casa dela. O convite partiu dos pais dela… Agora que penso nisso… É a primeira vez que vou a casa de Raquel. Pronto! É oficial! Estou nervosa!

    No dia seguinte ao meio dia em ponto, Diana esperava ansiosamente, sentada nos degraus de basalto do pátio da sua casa a chegada da sua boleia. Quando avistou o jipe preto que se elevava sobre o asfalto de forma imponente não conseguiu evitar um formigueiro no estômago.
- Pronta para uma tarde sequiosa a aturar dois velhotes. – O Dr. Guilherme exibia um sorriso simpático enquanto abria a porta do jipe a Diana. – O Carlos contou-me as novidades sobre a tua herança. Eu e a Fernanda ficámos muito contentes.
- Pois, não foi uma situação fácil… - Diana não gostava de falar naquele assunto.
    A viagem de carro foi do agrado de Diana que nunca tinha oportunidade de ir para aquele lado da ilha. A casa situava-se num alto com vista para a Praia do Almoxarife. Os portões altos abriram-se ao carregar num comando e Diana deixou-se deslumbrar por uma entrada de brita sob uma arcada de árvores verdes. A casa era sóbria e simples. Não tinha a opulência que Diana tinha imaginado. Tratava-se de uma casa de um só piso branca com gelosias azuis e rodeada por um relvado verde. Uma varanda muito familiar com um baloiço alongava-se por toda a frente da casa. Quando entraram, Raquel correu para a amiga.
- Estava a ver que nunca mais chegavam! Anda lá que já temos tudo pronto no jardim das traseiras.
    As raparigas saíram do hall-de-entrada por uma porta ampla de correr que dava lugar a uma cozinha enorme, toda branca com os electrodomésticos em inox, que resultavam numa simetria perfeita entre o branco imaculado das paredes e armários, o cinzento dos electrodomésticos e o preto do chão. Diana atravessou esta cozinha idílica de queixo caído e saiu por uma porta traseira que dava a um novo jardim com uma relva suave e verde que contrastava com a piscina de um azul límpido com um rebordo em granito branco que convidava descaradamente a um mergulho.
    A mesa estava graciosamente colocada sob um telheiro de madeira que albergava também uma churrasqueira e uma lava loiça, num estilo rústico, mas muito prático e confortável.
    Diana sorriu quando viu ser servido um frango de churrasco com salada e batata frita. Todo o medo que a dominara até aquele momento dissipou-se quando visualizou uma refeição que seria capaz de comer sem tirar nenhum curso com a Paula Bobone. O almoço correu com uma simplicidade e à vontade que contagiou Diana e a fez sentir-se integrada.
- Temos de agradecer-te o facto de teres resgatado a nossa pequena da preguiça. – Fernanda mostrava-se uma dona de casa e anfitriã atenciosa.
- A Raquel tinha tudo o que era preciso nela, eu só estudei com ela.
- Ah Diana! Não sejas humilde. Deste-me uma grande ajuda. Se não fosses tu, nunca saberia que conseguia estudar mais do que meia hora seguida.
- Também temos de dar-te os parabéns… A melhor aluna do arquipélago e entre as melhores do país… E quiçá da Europa. – O Dr. Guilherme transbordava bom humor e tinha-lhe bondade inscrita na testa. – O que pretendes fazer agora Diana?
- Vou concorrer ao curso de economia na Universidade de Coimbra.
- Excelente escolha! – Aplaudiu Fernanda. – Foi em Coimbra que eu tirei o meu curso de direito e onde conheci o homem da minha vida… Era um angolano com um corpo fantástico… - Após uma gargalhada geral alta que desfez a mentira da anfitriã… - O que é?!?! Podia ser… Afinal de contas eu era um estrondo naquela altura…
- Tu ainda és querida! – Tratava-se de um casal especial, sem dúvida, com uma vida especial, que Diana queria para si também.
- A Raquel também vai concorrer para Coimbra. Se ficarem lá as duas, gostaríamos muito que ficasses no nosso apartamento com a Raquel. O que nos dizes Diana? – O convite do Dr. Guilherme ficou uns segundos sem resposta.
- Eu… Sinceramente, agradeço muito a disponibilidade, mas sinceramente não tenho possibilidades para pagar uma renda a meias… Vou concorrer para as residências da universidade.
Foi Fernanda que desfez as dúvidas da rapariga.
- Oh querida! Se existe alguém com capacidade para pagar o que exigimos és tu! Nós não queremos uma renda monetária Diana. Só queremos que continues a ter a boa influência na Raquel que tens tido até agora. – Fernanda continuou com um discurso emocionado. – Tens sido amiga, no verdadeiro sentido da palavra, para com a nossa filha e o facto de sabermos que vocês não estão sozinhas lá fora, que se podem apoiar mutuamente, que a nossa Raquel tem alguém com ela que se importa com o seu bem-estar e com o seu sucesso… Oh Diana, não existe dinheiro no mundo que possa pagar o descanso que eu sentirei se souber que vocês as duas estão juntas… lá fora… Tão longe de casa…
- Assim sendo… É evidente que eu adoraria morar com a Raquel. E se me estão a dar essa oportunidade eu vou agarrá-la com ambas as mãos. E dou-vos a minha palavra que vão sentir-se muito orgulhosos de nós… - Gratidão era o sentimento que enchia Diana naquele momento.
- É claro que se vão orgulhar de nós… Afinal de contas está provado cientificamente que as duplas de sucesso são sempre constituídas por uma beta e por uma bicha do mato. – Raquel aliviou a emotividade que se sentia naquela mesa e deu lugar a uma conversa fluida cheia de previsões e cautelas para o futura que as aguardava.
    A tarde foi passada num ambiente familiar que aguçou os desejos de Diana para o seu futuro. Agora esticada no sofá Diana tentava inutilmente concentrar-se no discurso do próximo dia. Ainda nem tinha um vestido adequado. Teria de comprar qualquer coisa logo de manhã. Apesar de achar que era um desperdício de dinheiro.
-Bolas! Mas quem é que será a esta hora?!?! – Diana levantava-se do sofá sem vontade arrastando-se até à porta, respondendo assim ao bater ritmado que se ouvia.
- Duarte! – O espanto resultou num abraço apertado e num sorriso demasiado alargado. – O que é que estás aqui a fazer?
- Vim ver a minha musa antes de dormir! – Duarte beijou-a ao de leve e entregou-lhe uma caixa branca com uma rosa vermelha na tampa. – Surpresa!
- Oh! Mas eu não faço anos, nem é Natal! – Diana ria baixinho de excitação. – O que é que tu me queres pedir? Hein?
    Diana tirou a rosa com cuidado com o intuito de a guardar no seu diário. Abriu a tampa da caixa sem pressa, e pasmou num abrir de boca enquanto ia deixando escapar interjeições incompreensíveis.
- É lindo! Lindo! Lindo! Não existe outra palavra… é lindo!
- Podes experimentar para ver se acertei no número? – Duarte sentia-se a vibrar de felicidade por poder dar aquele pequeno mimo a Diana. Tratava-se de um vestido para o baile de finalistas.
- De certeza que é este o número certo! Afinal de contas tu já me tiraste as medidas há muito tempo! – Diana agarrou no vestido e refugiou-se no seu quarto. Despiu a roupa que tinha de forma apressada e desajeitada, e depois pegou no vestido com um cuidado extremo e enfiou-se nele com uma cautela desnecessário. Olhou-se ao espelho um pouco a medo, mas depressa o sorriso de satisfação a denunciou de uma vaidade merecida. Diana entrou na sala com o cabelo solto e descalça, mas com o vestido a delinear-lhe cada curva do tronco. O vestido rodeava-lhe graciosamente o pescoço como se se tratasse de um colar justo, e alongava-se sobre um peito perfeito, deixando os ombros morenos à mostra. O tecido caía descontraidamente até ao joelho, sendo apenas apertado por um cinto dourado grosso, que delineavam uma cintura perfeita. Perante aquela visão que se situava entre o sofisticado e o selvagem, Duarte sentiu a respiração suster-se e o coração parar. Tinha à sua frente uma menina mulher sem consciência da beleza que possuía com uma inocência sobre si mesma irresistível e ele tinha a sorte de a ter conquistado.

    O quarto de Raquel germinava roupa, e Diana não conseguia perceber onde se situava a fonte de todo aquele tecido.
- Ajuda-me Diana! Não tenho nada para vestir e o baile já começa daqui a duas horas. Ai meu Deus que não vou ter tempo para me arranjar!
- Também acho difícil que consigas enfiar um vestido pela cabeça abaixo apenas num par de horas. – Diana sentia-se divertida ao olhar para Raquel, que transpirava nervosismo e que andava de um lado para o outro como uma barata tonta mas com a cabeça muito hirta de forma a não estragar o penteado muito elaborado que a cabeleireira Natália lhe havia feito.
- As tuas unhas já estão secas?
- Já Raquel, não te preocupes.
- Já tens o teu vestido pronto?
-Já! Estás chata… Acalma a piriquita.
- Ai Diana! Como é que consegues estar tão descontraída? Eu estou a dar em doida. Nada me fica bem!
    Diana com muita calma começou a analisar a roupa de Raquel. Ela tinha realmente muitos vestidos de noite. E todos muito pomposos.
- Olha Raquel experimenta este. – Diana estendeu-lhe um vestido que estava esquecido no roupeiro e recebeu de Raquel uma careta como resposta.
- Credo Diana! Queres ver-me assim tanto sem brilho nenhum?
- Nada disso Raquel. Mas olha bem para ti! Já tens um penteado muito elaborado a praticar equilibrismo no teu cocuruto, enredado num fio de pérolas. Está lindo, mas se vais colocar um desses vestidos com muito brilho ou com tantos folhos, vais parecer uma árvore de Natal. É melhor levares um vestido liso como este e colocas estes brincos e uma pulseira. Experimenta… Não custa nada.
    Raquel fez-lhe a vontade mas muito contrariada. Quando finalmente se olhou ao espelho teve de admitir que estava muito bem. Estava com uma aparência sóbria qua a fazia mais adulta. Uma aparência que seria difícil para uma adolescente adquirir por escolha própria, mas que qualquer miúda da sua idade desejaria alcançar abusando no baton e no eyeliner.
    Finalmente chegou a hora de irem embora e Duarte já estava na sala de Raquel à espera das raparigas para as levar. Quando Duarte olhou para a sua Diana naquele vestido azul, teve o vislumbre de uma deusa grega, ideia que era vincada pelo penteado simples puxado para trás num rabo-de-cavalo liso que lhe conferia a personalidade de Diana, a deusa da caça.
- Duarte, tome bem conta destas meninas. Se houver algum problema tem neste papelinho o nosso número de telefone. – Fernanda sentia-se tão ansiosa como as próprias meninas.
- Agora vamos só tirar umas fotografias para a prosperidade. – O Dr. Guilherme puxou da sua máquina fotográfica muito sofisticada e começou a exigir a posses.
- Pronto! Já chega de fotografias! Vamos chegar atrasados. – Raquel apressava aquela saída com a ansiedade dos aflitos.
    A viagem de carro fez-se sem que Diana conseguisse desviar os olhos de Duarte. Ele vestia um smoking preto que o tornava mais alto e mais bem constituído, se é que isso era possível. O cabelo rebelde dava-lhe um ar muito macho que se acentuava com a barba por fazer. Podiam dar-lhe um ar de desmazelo, mas pelo contrário, acrescentavam um charme àquele smoking que ele usava. Diana questionava-se se era aquele smoking que favorecia o namorado ou se era o namorado que favorecia aquele smoking.
    Finalmente chegaram à escola. O baile seria no ginásio grande que tinha a entrada enfeitada com uns arcos que faziam lembrar as festas de S. João. Pedro envergava um fato cinzento com uma gravata da mesma cor e uma camisa impecavelmente branca. Assim que Raquel o avistou correu na sua direcção encantada com aquela visão de um homem alto de ombros largos, o cabelo preto que realçavam aqueles olhos verdes opacos que escondiam sempre qualquer coisa. O lábios alargaram-se num sorriso deixando à vista uns dentes brancos em que o canino do lado direito de sobrepunha um pouco aos outros de uma forma atrevida e que dava àquele sorriso um ar travesso.
- Estás linda Raquel! – Pedro deixou-se deslumbrar por aquele corpo perfeito realçado num vestido preto justo.
- Obrigada! – Raquel apressou-se a dar o braço ao seu par e entrou naquele ginásio com o orgulho de quem possuía o par mais bonito do mundo.
    A música estava boa, e Duarte pegou na mão de Diana e conduziu-a para a pista de dança. Rodeou-lhe a cintura e a música “can’t take my eyes off you” tomou uma nova dimensão. Diana deixou a palma da mão sentir os ombros de Duarte e enterrou o rosto naquele pescoço áspero da barba. Os braços de Duarte estreitavam Diana de uma forma perfeita como se tivessem sido feitos um para o outro. O cheiro dela que já lhe era familiar não o desiludiu naquela noite, e fê-lo inalar profundamente como se quisesse guardar aquele cheiro a caramelo que lhe era característico. Duarte fechou os olhos por um momento e teve a certeza de que era aquela a sua cara-metade e embalado pela música e pelo sentimento, deixou descair os lábios até ao ouvido dela e murmurou.
- Eu amo-te Diana Silva.
    Diana sentiu uma lágrima involuntária percorre-lhe a face e respondeu-lhe com uma beijo apaixonado e sincero. Era a segunda pessoa na sua vida que a amava. Para além do irmão que a amava incondicionalmente, ela tinha sido capaz de despertar amor noutra pessoa, e isso dava-lhe uma força e uma motivação extra. Uma força que não a deixaria desiludir aqueles que lhe davam tanto sem esperar nada em troca.
    Foram interrompidos pelo anúncio do melhor aluno da escola. A entrega seria feita pela professora Maria do Céu.
- É com muito orgulho que entrego este prémio à melhor aluna finalista do ano de 1998. Este ano tem sabor especial porque a nossa melhor aluna foi a número um do arquipélago, e uma das melhores do país. Diana vem ao palco receber o teu prémio.
    Diana subiu as escadas do palco sem sentir as pernas. Aceitou o prémio com os nervos alojados na barriga mas com a aparência de uma princesa.
- Muito obrigada professora!
    Quando Diana ficou sozinha em cima do palco, e olhou para Duarte, para Raquel e para o irmão onde deteve o olhar, esmigalhou o papel onde riscara umas humildes palavras e atirou a bola de papel para trás das costas. De repente soube exactamente o que devia dizer. E começou devagar, numa voz profunda e entendida, mas sabia que não estaria ao alcance do entendimento de todos.
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

    A intensidade que Diana colocou naquele poema de José régio, arrancou aplausos e uns olhares emocionados daqueles que entenderam a mensagem contagiaram uma sala inteira que acabou por aplauri de pé a filha do Zé dos copos.

CAPÍTULO IV

CAPÍTULO IV


    O terceiro período era vivido num ritmo monótono, entre as aulas, a biblioteca e casa. Diana dedicava-se ao estudo com um afinco e contagiava Raquel que pela primeira fez tinha um objectivo de difícil alcance e sentia-se estimuladamente desafiada.
    Aquela tarde de quarta-feira estava convidativa a um mergulho na praia, mas as raparigas resistiam à tentação com a vontade dos teimosos. Só podiam fazer uma pausa de uma hora às quatro e meia da tarde, e não abdicariam do tão merecido mergulho, por enquanto manter-se-iam num canto do café a estudar e a petiscar uns amendoins torrados em açúcar que Guida tinha feito de propósito para as raparigas.
    Diana sentia falta de Duarte, mas nestes últimos tempos tem sido difícil conciliar os turnos do hospital com os horários de estudo. Por vezes ainda duvidava se aquela relação era real. Estava sempre à espera que Duarte se arrependesse ou que de repente tivesse noção do ridículo que era manter uma pessoa como Diana ao seu lado. Mas enquanto isso não acontecesse Diana sentia-se feliz.

- São quatro horas e trinta minutos! – José Gaitinha era o cronómetro oficial das raparigas. – Têm autorização superior para fazer a pausa…

    Raquel levantou-se logo e pegou no saco de praia, deixando os livros espalhados na mesa. Diana pelo contrário colocou cada tampa de caneta no sítio certo, fechou todos os livros e cadernos e arrumou tudo por uma ordem pré-definida dentro da mochila.

- José Gaitinha, you are the best fisherman in the world. We love you. – Raquel lançou-se ao pescoço do velho num abraço apertado.
- Lá está esta a falar alemão para mim… - resmungou José desconfiado do significado daquelas palavras.
- Oh homem! Não vês que ela estava mas era a falar inglês. – Mário levantou-se da sua mesa numa tentativa frustrada de parecer maior.
- Ai que o Mário sabe tantas coisas! E não me traduzes o que disse a minha amiga Raquel? – Diana provocava descaradamente aquele homem pequeno.
- Pronto eu confesso… - Mário deixou-se cair novamente na sua cadeira rendido à evidência de não ter percebido patavina – eu percebi que vocês estavam a estudar inglês, logo ela só podia estar a praticar um pouco…
- Mas que raciocínio brilhante Mário!... Estou muito orgulhosa de ti - Diana atirou-lhe um beijo que fez com que Mário se levantasse novamente da cadeira esticando-se como se quisesse tornar-se do tamanho da sua importância.

    As raparigas foram então ao merecido mergulho. Desceram a rampa que dava acesso à praia, tiraram os chinelos e enterraram os pés com um prazer silencioso naquela areia suave e quente. Percorreram a curta praia sempre à beira mar, molhando os pés na espuma calma que morria no contacto lento com a areia.
    Escolheram um lugar mais calmo e estenderam as toalhas. Livraram-se daquele vestuário leve o mais depressa possível e correram num entendimento mudo para a água mergulhando naquele mar imenso e esvaziando a mente das preocupações quotidianas. Diana libertava-se de todas as tensões, pesares e preocupações assim que sentia a água bater-lhe no rosto. Nadava sem parar com uma braçada forte e larga que a fazia deslizar com a graciosidade dos golfinhos. Raquel não conseguia acompanhar o ritmo da amiga pelo que se deixou ficar a chapinhar onde os pés sentiam a areia. Enquanto nadava vagarosamente de um lado para o outro, Raquel encontrou-se com Ruben, que aproveitou o facto de a ex-namorada estar sozinha para se aproximar.

- Olá Raquel! – Ruben exibia o seu sorriso brilhante numa tentativa sedutora. – Já não falamos há algum tempo…
- Porque tu não queres. Eu não tenho preconceitos e falo com todo o tipo de pessoas. – Raquel apesar de estar contente por estar a reatar aquela amizade, adoptou uma postura defensiva.
- Pois! Já percebi isso… Olha, vamos recomeçar do zero, sem rancores está bem Raquel.
- Isso quer dizer que vais passar a ser uma pessoa civilizada e cumprimentar todos os meus amigos?
- Não Raquel! Não me podes obrigar a gostar daquela vadia. Mas o facto de não gostar dela não me impede de gostar de ti. Não faz sentido não falarmos…
- Pronto Ruben! É evidente que podemos continuar a falar.
- Amigos? – Ruben estendeu a mão num gesto que firmava uma palavra.
- Amigos. – Raquel aceitou o cumprimento que se demorou na sua mão.

    A hora do descanso passou-se depressa demais e Diana teve de arrastar Raquel de novo para as obrigações. Quando chegaram ao café depararam-se com o movimento típico do início de Verão. A esplanada era uma explosão de idiomas e as cabeças confundiam-se num mar de louro, castanho e preto. As raparigas sentaram-se no interior do café, numa mesa mais resguardada.

- Olá Diana! – Dr. Carlos cumprimentou as raparigas com um aperto de mão efusivo. – Tenho excelentes notícias.
- Nada como uma boa noticia antes de mergulhar no estudo de inglês. – Diana tentava mostrar um ar descontraído, mas sentia-se inquieta. Com toda a certeza que a conversa seria acerca da herança daquele homem a quem ainda não consegue associar a palavra avô.
- Então é assim Diana, já tenho tudo tratado. Como me passaste uma procuração tua e do teu irmão para vos representar neste processo, fiz todo o trabalho sem vos consultar. Mas acho que o resultado é bastante satisfatório. – O advogado ajeitou-se na cadeira colocando-se numa posição mais confortável, e bebericou a imperial fresquinha que Guida tinha colocado à sua frente. Depois de um revirar de olhos de satisfação continuou. – A escritura dos terrenos faz-se amanhã. Vocês ficam com todos os terrenos das Dutras. - Mais uma pausa para bebericar o fino e apreciar a reacção da rapariga que parecia suster o ar. – A renda que receberão do talho será mensal, no valor de cento e oitenta contos… - Diana explodiu toda a contenção num grito de satisfação e abraçou aquele advogado chamando sobre si toda a atenção do café. Os velhos pescadores que estavam no estabelecimento aproximaram-se apressadamente, seguidos por Paulo e Guida.
- Mas que gaitaria vem a ser esta? E ainda por cima sem o Gaitinha. – José Gaitinha foi o primeiro a interromper os festejos de Diana.
- Oh Gaitinha! O Dr. Carlos é o melhor advogado do mundo!... – Diana elogiava o advogado de uma forma atrapalhada. Foi Raquel que vendo os olhares inquiridores trocados entre aquele grupo de amigos que começou a explicação.
- Aqui o Dr. Carlos, conseguiu que ficasse para a Diana e para o irmão, todos os terrenos das Dutras. Conseguiu ainda uma renda do talho no valor de cento e oitenta contos.
- O doutor é mais endemoninhado do que a garota que só pedia cem contos… - Mário mostrava-se satisfeito com aquele acrescento.
- Finalmente, sinto que se está a fazer alguma justiça nesta história. – Manuel quase deixava transparecer a pronúncia de um sorriso.
- Esperem meus amigos que ainda não acabei. – Quando o advogado conseguiu calar a assistência continuou com um ar de muitas importâncias. – Claro que a renda mensal tem o acrescento exigido pela Diana. Será actualizada anualmente conforme a inflação, nunca podendo crescer menos que 2%. – Neste momento as palmas surgiram e foram logo interrompidas por um gesto altivo do advogado fazendo antever mais novidades. – E ainda, foi depositado numa conta em nome dos dois irmãos… - o advogado fez nova pausa adivinhando os protestos que aumentavam de som, e com um sorriso lento e uma ar de suspense. – O valor de cinco mil contos…

    A festa rompeu, as bebidas foram por conta da casa, a música surgiu como por magia e Paulo pegou na sua Guida e dançaram como já não faziam há muito.  À festa privada dos amigos juntou-se o resto da clientela e entre gente da terra e estrangeiros fez-se um arraial que se tornou muito rentável para o café. Depressa todos os amigos tiveram de arregaçar as mangas e entre uma dança e outra ir servindo os clientes sequiosos de consumo e diversão.
    No final da tarde Pedro entrou naquele café transformado numa festa de santos populares e logo se tornou adepto daquela animação. Levado pela euforia do momento pegou em Raquel e dançou. Sentiu que a rapariga estava tensa e emitia umas vibrações de nervosismo, o que o levou a uma satisfação própria de macho. Para provocar um pouco mais, Pedro apertou-a para além do necessário e de forma lenta e premeditada depositou um leve beijo no pescoço da rapariga, cuja emoção se evidenciou um arrepio, provocando um sorriso malandro em Pedro.

domingo, 5 de junho de 2011

CAPÍTULO III


    Aquela noite suavizada pela doce memória do jantar parecia não estar receptiva ao sono… Diana sentia-se embalada numa leveza um pouco tola em que a respiração estava lenta e a dormência do corpo fazia-se acompanhar de um sorriso palerma nos lábios. Foi neste marasmo que Diana se sobressaltou ao som do toque inoportuno do telefone. Sem vontade e ao mesmo tempo impelida por uma urgência própria de um contacto fora de horas Diana correu para o telefone. Levantou o auscultador e ouviu a voz do outro lado sem qualquer reacção.
   
- Pedro!... Acorda Pedro… - Diana abanava aquele corpo adormecido com uma cautela excessiva enquanto sussurrava- Acorda Pedro!...

    Pedro abriu os olhos com dificuldade e levou algum tempo até conseguir focar o rosto da irmã.

- Ele foi-se… - Foram estas palavras que despertaram completamente a mente de Pedro que abraçou a irmã numa compreensão mútua.

    No hospital foram recebidos por um médico que já os esperava.

- Lamento muito! – Foram as únicas palavras de consolo que os irmãos encontraram naquele hospital. – O vosso pai estava já muito doente. Tinha uma cirrose já num estado muito avançado, resultado de muitos anos de alcoolismo…

- Pois… Pensei que fosse só um traumatismo… - Diana não conseguia pensar com clareza…

- O traumatismo foi o resultado da queda que ele deu, mas o vosso pai já tinha esta doença há muito tempo… Talvez não vos tenha dito para não vos preocupar… - Aquela afirmação ficou no ar sem que ninguém acreditasse nela.

    Foi uma noite longa. O Capítulo era demasiado grande para as pessoas que velavam o corpo. Ao contrário de Pedro que chorava, Diana não conseguia libertar uma única lágrima. Tratou de todos os pormenores com a frieza dos agentes funerários. Neste momento apenas se sentia cansada e grata aos poucos amigos que a acompanhavam.
    O funeral realizou-se logo no dia seguinte. Não havia necessidade de adiar esse ritual, uma vez que as despedidas já haviam sido feitas há muito tempo. Mesmo assim Diana sentiu um peso no peito quando viu o caixão do pai ser depositado naquele buraco. Deixou cair as primeiras lágrimas de infelicidade, porque apesar de tudo sentia-se infeliz… Infeliz por não ter mais nenhuma oportunidade de mudar as coisas com o seu progenitor… Com aquele caixão enterrado, enterravam-se todas as esperanças de salvar aquela relação. Diana olhou demoradamente as pessoas que estavam ali ao seu lado naquele momento. Os amigos do café, a sua nova amiga Raquel, o advogado Carlos e Duarte, que apesar de estar um pouco afastado estava ali… Ironicamente nenhuma daquelas pessoas se encontrava ali para lamentar a morte do Zé dos copos… Ironicamente a mesma terra que tinha engolido o corpo do abastado Pereira do talho, engolia agora o corpo do homem mais miserável daquela ilha… O seu pai…

    Os dias correram numa normalidade estranha aos dois irmãos. Diana depressa percebeu que o ordenado do irmão não era mau. Apenas insuficiente para fazer face às dívidas do pai. Mas agora sentia a casa mais leve, mais arejada, mais limpa e mais abastada. Logo pela manhã Diana tinha o prazer de se deliciar com o aroma a café fresco que Pedro fazia todos os dias. O pequeno-almoço era tomado à mesa como nunca haviam feito, havia uma toalha limpa que servia de depósito a pão sempre fresco com queijo e manteiga, e por vezes massa sovada que satisfazia a gulodice dos irmãos.
    Diana sentia-se feliz. Escovava o cabelo e olhava-se ao espelho com uma certa vaidade que nunca tinha tido disposição de sentir. Sentou-se na beira da cama para calçar as sapatilhas quando reparou num envelope em cima da sua colcha.

- Pedro! Oh Pedro! Deixaste isto no meu quarto… - Diana esticava o envelope na direcção do irmão recebendo deste apenas um sorriso desinteressado…

- Se estava na tua cama então deve ser para ti. – E com esta frase Pedro pegou na irmã ao colo e rodou-a como se ela fosse uma boneca. – Parabéns Princesa…

    Diana emitia gritinhos de alegria. – Nem acredito que me esquecia… Isto é para mim? Põe-me no chão que fico tonta - Diana sentia-se asfixiar de tanta excitação… Ela fazia anos e o que estava dentro do envelope eram duas notas de cinco contos. – Acho que nunca vi tanto dinheiro junto… Não posso aceitar Pedro…

- Lê o postal.

    Diana abriu um postal que tinha a imagem de uma princesa na capa e leu a mensagem escrita numa letra cuidada:

“ Depois de dizeres que não podes aceitar, quero que aceites esta prenda e que gastes todo este dinheiro contigo. Quero que compres roupa para a faculdade que trates um pouco de ti. Quero que sejas princesa por um dia, no sentido literal da palavra. Esta é a minha prenda e quero que aceites.

Adoro-te Princesa”

    Diana atirou-se ao pescoço do irmão e chorou e riu ao mesmo tempo enquanto balbuciava coisas sem sentido entre um emaranhado de gratidão.

    Quando a aniversariante chegou aos portões da escola deixou-se aí ficar à espera de ver Raquel. Esticava o pescoço na direcção em que a amiga devia surgir numa impaciência irrequieta. Assim que a avistou correu ao seu encontro.

- Vamos faltar hoje às aulas? – Diana emitia um brilho de esperança naqueles olhos arregalados.
- Tu queres baldar-te? Estás doente? – Raquel encostou a palma da mão à testa da amiga. – Logo tu que és tão enervantemente responsável?

- O meu irmão deu-me como prenda de anos 10 contos para eu gastar só comigo. Preciso da ajuda de uma entendida em gastar dinheiro.

- Esse é um golpe baixo… Aliciares uma miúda inocente com compras… Só vou aceitar porque fazes anos e nem sequer me tinhas dito. – Raquel enfiou o braço no de Diana e encaminhando-se no sentido contrário ao da escola sussurrou ao ouvido da amiga – Mas primeiro eu vou dar-te a minha prenda.

    As duas percorreram as ruas daquela pequena cidade comentando todas as montras que viam, desde as ourivesarias às lojas de roupa. Diana sentia que era o melhor aniversário desde que tem memória. Quando frequentava o colégio as irmãs faziam sempre um pão-de-ló que comiam depois do jantar e deixavam Pedro juntar-se a elas naquela refeição. Pedro era o único que lhe dava sempre uma lembrança. Diana acariciou a pulseira que trazia no pulso. Tinha sido uma dessas lembranças. Uma pulseira preta feita com verga que os miúdos costumavam pedir a uma empresa de telecomunicação. Muita gente fazia e tinha daquelas pulseiras, mas Diana orgulhava-se de ter a mais bonita e a mais bem-feita de todas.

- Chegamos! – Raquel deu um pulinho de excitação acompanhado por um bater de palmas repenicado. Tratava-se de um salão de cabeleireira situado num emaranhado de ruazinhas no coração da freguesia da Conceição. O salão não era grande, mas era muito agradável à vista e tornava-se ainda mais especial por ser o primeiro salão onde Diana cortaria o cabelo.

- Bom dia Natália. Pode atender-nos agora? – Raquel entrou no salão conhecedora do caminho e dirigiu-se com um sorriso rasgado em direcção a uma mulher baixa e leve que se movimentava com a ligeireza de uma bailarina.

- Raquel!... Não esperava ter-te aqui hoje! Não me digas que não gostaste da cor das tuas madeixas? – Natália falava enquanto supervisionava o cabelo de Raquel.

    Diana deixou cair o queixo de admiração…

- Tu não és realmente loura?
- Claro que sou… - Raquel não conseguiu evitar uma gargalhada face ao espanto da amiga…
- A Raquel tem o cabelo num tom louro escuro… Fizemos umas madeixas mais claras para ajudar a realçar a cor natural dela. – Natália dirigiu-se a Diana com uma simpatia sincera, sem medo de a tocar e sem uns olhos inquiridores.
- A minha amiga Diana tem de mudar de visual urgentemente como é evidente. – Raquel provocava a amiga deliberadamente. – Quero que pegue nesta bicha do mato e a transforme numa princesa.

    Após duas horas naquele salão Diana olhou para o espelho com um orgulho perceptível num suave sorriso. Olhou sem demora o cabelo comprido mas um pouco mais curto com os caracóis soltos e salientes que se mexiam graciosamente a cada movimento seu… Olhou como aquele novo corte de cabelo lhe emoldurava de uma forma que lhe agradava muito aquele rosto moreno. Reparou deliberadamente em todos os pormenores que até então não tinha tido coragem de encarar e descobriu uma Diana bonita. Bonita era a palavra que melhor a descrevia neste exacto momento. Bonita… Uma palavra que nunca lhe pertencera e da qual se sentia agora proprietária legitima. Pela primeira vez naquele espelho falsamente admirado por centenas de pessoas ela tomou consciência do que é aparência… De como é fácil induzir percepções nos outros apenas pela aparência. Como é que nunca ninguém viu aquela verdade irrefutável… Diana era muito mais bonita do que a popular Bia ou mesmo mais bonita do que a sua amiga Raquel… Como é que em tantos pares de olhos sem problemas oftalmológicos nenhum captou esta verdade que agora se afigura tão irrefutável?...

- Estás linda Diana!- Raquel emitiu aquele gritinho que lhe era característico quando se sentia satisfeita. – Esta é a minha prenda para ti…

    As duas raparigas aproveitaram o resto do dia para entrar em todas as lojas que existiam naquela cidade. Diana mais cautelosa do que Raquel acabou por escolher com sensatez a roupa certa para usar na Faculdade a partir de Setembro. Nem olhou para as calças de ganga rasgadas que Raquel lhe impingia. Preferia calças de corte direito simples que servem para qualquer circunstância. Comprou umas camisolas, um sobretudo e umas botas adivinhando um Inverno mais rigoroso do que aquele que se faz sentir nas ilhas.

    Quando terminaram as compras, ambas as raparigas foram até à oficina onde Pedro trabalhava.

-Olá Anjo! Guardas-me aqui as compras? – Diana beijou o irmão na face e sentiu que ele estava rígido. O olhar dele estacou na imagem da sua amiga. Diana nem queria acreditar no que estava a ver… Raquel estava corada e emitia uns risinhos nervosos enquanto cumprimentava Pedro. E este gaguejava de forma aparvalhada uma piadas despropositadas…

    Quando Diana conseguiu arrancar a amiga da oficina dirigiram-se para a escola. Seguiram pela marginal. Raquel não emitia uma única palavra. Levava um olhar que se petrificava nas pedras da calçada como se estivesse a decorar a sequência dos desenhos resultantes daquele calcetamento de basalto e granito.

- Estás a pensar em quê Raquel?
- Não te posso dizer… - Raquel sorriu-lhe gentilmente como se isso bastasse para conseguir a compreensão da amiga.
- Eu sei que estás a pensar no meu irmão. – Diana fez esta afirmação sem tirar os olhos da companheira e ficou satisfeita por ter acertado.
- Porque é que dizes isso?
- Ora, porque o Pedro é lindo de morrer e tu não és cega nenhuma. – Esta descontracção de Diana fez com que Raquel baixasse completamente a guarda.
- Ai Diana! Eu estava inquieta para desabafar com alguém… O teu irmão mexe com todos os nervos que existem no meu corpo… Ele é um deus grego… E tem aquele ar mais velho e aqueles olhos pretos que emitem um brilho maroto de quem é muito mais vivido.

    Diana não evitou uma gargalhada.
- Pára de te babar e da próxima vez que o vires convida-o para ir à praia contigo no fim-de-semana. O Pedro adora o mar. Podes agradecer-me a dica mais tarde.

    As aulas passaram-se a um ritmo apressado que fez Diana sentir o peso da culpa por ter faltado às aulas da manhã. Descia a rampa da escola organizando mentalmente o estudo dessa noite de forma a compensar a sua falta. Também tinha de começar a estudar com Raquel de forma a incentivá-la a subir a média. Tinha-lhe prometido que a ia ajudar e não podia falhar. Os seus olhos pousaram numa imagem demasiado boa para ser real. Duarte estava em frente à escola encostado à sua lata velha com um ramo de rosas na mão. Estaria ele à sua espera? Diana aproximou-se dele e viu-o abrir a boca mas sem emitir um único som.

- Isso é para mim? – Perguntou Diana de forma um pouco atrevida.
- Tu estás linda! – Duarte esticou o ramo na direcção dela confirmando a pergunta que lhe tinha sido colocada – quer dizer tu és, eras… Mas estás diferente…

    Diana sorriu-lhe e beijou-lhe a face de um modo deliberadamente lento. Olhou para aquele enfermeiro alto e agradeceu o facto de ele ter-se demonstrado aberto a ela antes de ela parecer um pouco mais bonita. Ele foi a única pessoa do sexo masculino que olhou para Diana com carinho, que lhe pegou na mão, que a levou a jantar fora… Não haveria lugar na sua vida para outra pessoa, porque quem a viesse a partir deste momento teria uma visão privilegiada da sua pessoa… Duarte foi o único que soube vê-la…

- Ah! Parabéns Diana! Entra no carro que hoje estás por minha conta!

    Diana não recusou a imposição e entrou naquele Fiat velho que já tinha ganho a sua estima. A viagem de carro foi curta. Pararam em frente ao café Porto Pim para espanto de Diana.

- O que é que fazemos aqui?
- Shiu! Não perguntes nada apenas segue-me.

    Duarte pegou-lhe na mão e dirigiram-se para o café. Diana sentiu um palpitar mais apressado quando ouviu um uníssono “Parabéns”. Estavam ali reunidas todas as pessoas que realmente lhe importavam.

- Pensavas que não pagavas um copo aqui ao teu Romeu? – José Gaitinha deu-lhe um abraço tão apertado que Diana sentiu o tremer do peito quando ele deu um soluço de orgulho. Seguiram-se os outros pescadores o Mário que se pôs na ponta dos pés para lhe beijar as faces, o Manuel que lhe deu um parabéns rezingão, a Guida que lhe deu imensos conselhos relacionados com os 18 anos frescos, Paulo que lhe deu umas palmadinhas carinhosas nas bochechas e Diana sentia os olhos a arderem-lhe de emoção à passagem de cada pessoa que fazia questão de estar sempre presente na sua vida.

- Vocês sabiam disto e não me disseram nada? – Diana falava agora com o irmão e com Raquel.
- Foi ali o teu namoradinho que organizou esta festa. – Pedro implicava com a irmã de um modo cúmplice que Raquel não pode deixar de admirar.
- Ele não é meu namorado. – Diana amuou falsamente.
- Olha Diana os meus pais estão ali e querem conhecer-te. – Raquel pegou na mão da amiga e arrastou-a atrás de si. Diana, quando foi colocada em frente à Juíza da cidade e ao novo médico do hospital da horta, sentiu uma vergonha por não ter tido tempo de se arranjar melhor. Sentiu de repente um medo que a obrigassem a afastar-se de Raquel.

- Então esta é a famosa Diana! – O Dr. Guilherme estendeu-lhe a mão num cumprimento caloroso. – Aqui o meu amigo Carlos falou-me muito bem de ti… Se bem que nunca sabemos quando podemos confiar nos advogados.

    Diana soltou uma gargalhada, mais de alivio do que de graça. A mãe de Raquel também foi muito simpática, mas não tiveram oportunidade de falar muito uma vez que todos solicitavam a atenção de Diana.
    Os parabéns foram cantados desafinadamente e o bolo feito por Guida foi recebido com agrado.
    Diana, agora menos solicitada encostou-se a uma canto a observar aquele cenário que a encantava. Ali, por sua causa estavam pescadores analfabetos, vestidos com roupas em segunda mão a conversar de igual para igual com pessoas instruídas que envergavam camisas Gant. Ela era o verdadeiro motivo daquela visão tão motivadora. Num cafezito perdido no mundo existem conversas partilhadas por gentes diferentes com estatutos sociais completamente antónimos, com perspectivas de vida opostas e que conversam de forma fluída interesses comuns sem repúdios ou preconceitos. Diana sentia-se especial neste dia em que a melhor prenda que recebeu foi uma visão gloriosa da sua pessoa.

- Vamos sair um pouco! Já ninguém vai dar pela tua falta! – Duarte pegou-lhe na mão com um à vontade que lhe agradou e conduziu-a para o exterior do estabelecimento. Na rua o sol adormecia lentamente prolongando-se num horizonte alaranjado. De mãos dadas e em silêncio o enfermeiro e a aniversariante dirigiram-se para o muro e debruçaram-se olhando demoradamente o mar que ia e vinha vagarosamente sobre a areia escura daquela baia. O monte da guia verdejava em frente apoiando uma pequena capela e servindo de limite àquele mar azul. Por detrás da praia concorria o monte queimado escuro e amuado que se ia deslizando em basalto, pequenas urzes e terminando na areia que servia de apoio às toalhas dos banhistas ausentes.

- Gosto de ti, Diana! – Duarte soltou aquela afirmação de uma forma simples com um olhar expectante depositado naquele rosto afirmado por uma personalidade forte. Diana olhou sem admiração mas comovida com aquela declaração pouco floreada. As coisas sinceras são as mais simples de se explicar, e não eram precisas mais palavras para aquele momento em que os hálitos se confundiram e os lábios se uniram sem pressas e urgências, apenas num acto de puro deleite.