segunda-feira, 30 de maio de 2011

CAPÍTULO II



    Pedro não questionou o porquê daquele pedido, limitou-se a satisfazê-lo. Chegados ao sítio pretendido, Diana saltou fora da mota e pediu ao irmão que fosse trabalhar. Ele não estava em condições de perder o emprego por um capricho seu, e também não queria expô-lo ao teatro que iria fazer.
    Diana entrou devagar no capítulo analisando o cenário. Uma sala ampla e fria com um caixão aberto no centro. Umas cadeiras desconfortáveis estavam dispostas à volta da sala. Deparou-se com os tios que caminhavam na sua direcção com um ar de poucos amigos. Não tinham os olhos vermelhos… Não tinham as faces molhadas… Não tinham a boca curvada de dor… Tinham apenas as bochechas inchadas de raiva, de fúria como se acabassem de ser injuriados.

- Como te atreves a vir aqui sua vira lata? – Olinda explodiu um sussurro dentro do ouvido de Diana, enquanto Nuno lhe apertava um braço tentando intimidar a rapariga.
- Vê como funcionam os vira lata e aprende querida tia. – e nisto Diana depositou um suave beijo na face irada de Olinda provocando um espanto geral  no meio das pessoas que zelavam o corpo. Então Diana aproximou-se do caixão pegou na mão do avô pálido e chorou… Chorou de raiva… Chorou de despeito por tudo o que aquele malvado fizera com a pobre mãe… Chorou tudo o que tinha apertado no peito, tudo o que uma vida de miséria e maus tratos lhe tinham dado… Chorou a fome que aquele avô abastado a tinha deixado passar… Chorou o frio que lhe petrificava as entranhas no Inverno quando aquele avô tinha tantos agasalhos… Chorou o futuro esperançado mas incerto numa universidade que aquele avô lhe podia ter garantido… Chorou a ingratidão daquele avô para com um neto que cuidou da sua filha e da sua neta… Chorou e esperou a reacção de quem a rodeava. Percebeu que as pessoas estavam comovidas com a sua atitude. Percebeu comentários em surdina que lhe chegavam aos ouvidos “pobre rapariga que chora a morte de um avô que nunca lhe valeu”, ou “nem parece filha daquele bêbado, com tão bom coração”, “coitadinha da menina sofre mais que os próprios filhos que lhe eram chegados”. Diana ficou satisfeita com o pensamento geral da sala e mais satisfeita ficou quando encarou os tios impotentes num canto transpirando incómodo.

- Eu perdoo-te o abandono da minha mãe… Eu perdoo-te a fome que os teus netos passaram sem que lhes estendesses um prato de comida… Eu perdoo-te os maus tratos que os teus netos sofreram por lhes teres virado as costas… Eu só quero que descanses em paz… - com estas palavras pouco sentidas mas muito emotivas Diana conquistou de vez a compaixão dos presentes que passaram a dar as condolências a ela em vez de se dirigirem aos filhos do falecido. Esta foi a primeira vez que Diana percebeu o tão fácil que lhe era manipular as mentes fracas... E gostou da sensação.

    Diana voltou para casa à noite na companhia do irmão e encontrou o pai bêbado e porco como de costume. Dirigiu-se a ele numa fúria até então desconhecida apanhando o pai e o irmão desprevenidos.
- Tu sabias que tínhamos um avô abastado e nunca nos disseste… Preferiste ver os teus próprios filhos enterrados em miséria, rotos, famintos e cheios de hematomas e nódoas negras… Tu és um estupor nas nossas vidas… Tu mataste-a e quase nos mataste também… Eu odeio-te seu inútil… - Diana atirava as palavras numa histeria louca. As veias da fronte latejavam-lhe e os lábios tornavam-se roxos.
- Não me fales assim, sua ingrata… eu fui buscar-te ao colégio interno e dei-te um casa e uma família… - José dos copos tentou levantar a mão à rapariga recebendo neste entretanto um estalo na cara que lhe provocou um ardor, e um espanto abriu-se nos seus olhos.
- Nunca mais me tocas seu merdas… Ouviste? E não te atrevas a atirar-me à cara que me foste buscar… Um pai não cobra a um filho o seu dever de cuidar dele… e só me foste buscar porque eu já tinha idade para cuidar da casa e quem sabe trabalhar para te pôr mais algum dinheiro no bolso. Ficaste zangado quando decidi continuar a estudar… Ah como ficaste zangado… Tu nem sabes que eu, a tua filha é a melhor aluna desta ilha e quem sabe do arquipélago… Tu nem sabes os sacrifícios que o teu filho mais velho faz para teres luz, água e comida nesta casa… Tu nem sabes dar valor àquilo que não criaste mas que te caiu do céu, que te foi deixado pela mulher que deixaste morrer… Ah como eu te odeio inútil. – Diana virou costas e correu para o seu quarto escapando assim à tentação de esmurrar o próprio pai.

    Adormeceu em pouco tempo e dormiu a noite toda. Acordou de manhã com os olhos inchados. Preparou-se num instante e correu a apanhar boleia do irmão.
    Na escola Raquel esperava-a pacientemente. Diana sentiu um calor no peito quando viu a amiga, a sua única amiga ali especada à porta da escola preocupada com ela.

- Então, Diana, estás bem? Saíste do café tão transtornada que ficamos todos preocupados.
- Fui ter com o meu irmão. Precisávamos de falar… Ele sabia Raquel… Todos sabiam menos eu…
- O teu irmão só te quis proteger dessa gente sem coração.
- Eu sei Raquel. O Pedro é o meu anjo da guarda. – Diana entrelaçou o seu braço no de Raquel e começaram a subir a rampa da escola calmamente. – foi a Irmã Maria Alice que apelidou o Pedro de meu anjo da guarda na manhã em que me descobriu nos braços dele à porta do colégio.
- Eu sei que deves muito ao teu irmão. Contaram-me a vossa história no café. Deves ter muito orgulho nele, Diana. Eu já sou sua fã, mesmo sem o conhecer. – as duas raparigas riram, um riso sem graça mas agradável.
- Ai Raquel o que devo fazer com esta informação.
- Eu falei ontem à noite com a minha mãe acerca de tudo o que te está a acontecer e ela diz-me que tu e o teu irmão têm direito à parte que caberia à tua mãe.
- Eu nem sei como hei-de reclamar a nossa parte da herança.
-Pois os teus amigos do café já começaram a tratar disso. Tens a sorte de estar rodeada de pessoas que gostam realmente de ti, Diana. Às vezes o facto de se ser marginal faz com que apenas nos rodeie quem interessa. Olha para mim… Posso fazer amigos com demasiada facilidade, mas qual deles gosta verdadeiramente de mim, como aqueles velhos do café gostam de ti?
- Tens razão… então que estão aqueles velhos a tramar?
- Parece que há um advogado que vai lá todos os dias lanchar. Eles estão convencidos de que é boa pessoa e pediram-lhe para lá estar hoje à hora de almoço. Querem que vás lá almoçar de modo a falares com ele.
    Diana sorriu. Bastava-lhe isto neste momento. Realmente era afortunada nas amizades. A manhã decorreu numa lentidão anormal para Diana. Os gritinhos das meninas à volta da cor bombástica do verniz da Bia irritava-lhe o espírito. Os olhares fulminantes que Ruben lhe dirigia atiçavam-lhe a malícia. Sabia que eram o resultado dele a culpar pelo fim do namoro com a filha da juíza, mas mesmo assim não conseguiu evitar e aproximou-se dele.
- Ruben agradecia que parasses de me fazer olhinhos. Sabes bem que não fazes o meu tipo. – a risota no grupo de amigos foi geral e o desconforto de Ruben resultou num pontapear frenético no estômago de Diana.

    Quando terminou deixou a rapariga deitada no chão. O grupo, anteriormente demasiado grande ia-se dispersando sem dar nas vistas e sem se rirem. Diana teve que se levantar sozinha a arrastar-se para a aula seguinte. Chegou um pouco atrasada e quando entrou na sala pediu desculpa ao professor e piscou o olho a Ruben numa atitude provocadora.
    A hora de almoço finalmente chegou. As duas amigas dirigiram-se para o café onde foram recebidas com um enorme hambúrguer por conta da casa. O advogado já lá estava. Tratava-se de um homem de meia-idade com problemas de calvície que disfarçava rapando o cabelo por completo. Vestia umas calças de sarja beges e um pólo verde seco. Apresentava-se com um visual cuidado mas mais descontraído do que aquele que Diana esperava encontrar. O Dr. dirigiu-se a Diana de mão estendida e num cumprimento caloroso. O seu aperto de mão era firme, o que agradou a rapariga. Não suportava apertos de mão frouxos, pois sentia que a personalidade de uma pessoa era demonstrada logo num primeiro contacto.

-Então esta é a famosa Diana. – o advogado sorriu-lhe enquanto se sentava na mesa sem pedir licença. – És a estrela de cartaz deste café, o ídolo destes idosos. – este último comentário despertou os mais diversos protestos acalorados como esperava o advogado que piscou um olho cúmplice às raparigas. – Falemos então de assuntos sérios.

    Os ouvidos todos daquele estabelecimento apuraram-se.

- Não sei se o Doutor já está por dentro da história. – começou Diana.
- Os seus amigos que não são idosos já me contaram. Contaram-me a sua vida de uma forma resumida e quero que saiba que já sou um admirador seu e do seu irmão. E como tal gostava que me tratasse por Carlos.
- Pois bem, Carlos, como já deve ser do seu conhecimento, uma vez que os meus amigos não idosos são tão mexeriqueiros – esta réplica suscitou novas contestações que depois de acalmadas se transformaram em mil atenções na conversa que se adivinhava. – O pai da minha falecida mãe morreu ontem. Sei que ele era já viúvo. Nunca tivemos qualquer contacto com tal criatura, mas quero ter agora contacto com a parte da herança que cabe a mim e ao meu irmão.
- Bem Diana, como fazes 18 anos no próximo mês, vou tratar-te como adulta que és. Eu já fiz um levantamento dos bens. Ao que parece não fizeram partilhas quando a tua avó morreu, o que te favorece. Assim sendo os bens considerados são a casa que eles têm na freguesia de Pedro Miguel, muitas terras de lavoura na mesma freguesia, gado que sustenta o talho, o próprio talho que é um negócio bem rentável, umas terras nas Dutras que estão um tanto ao abandono e as contas bancárias.
- Diga-me uma coisa, Carlos, a herança deve ser dividida em três partes iguais, uma para a Olinda, outra para o Nuno e aquela que seria da minha mãe que será para mim e para o meu irmão, correcto?
- Certo.
- As terras de lavoura em Pedro Miguel são o dobro daquelas que existem nas dutras?
- Mais ou menos… Talvez um pouco menos…
- Então ouça o que eu quero que fique para mim e para o meu irmão. – Diana inclinou-se sobre a mesa na direcção do advogado e falou com uma clarividência difícil de encontrar. – Eu quero apenas as terras das Dutras e uma renda vitalícia do talho no valor de cem contos por mês actualizada anualmente conforme a inflação sendo que o aumento da mesma nunca pode ser inferior a 2%.

    O espanto do advogado foi declarado por um cair de queixo. Mas que raio de idade tinha aquela cachopa, para falar daquela maneira.

- Mas Diana, as terras das Dutras estão ao abandono, enquanto as de Pedro Miguel são terras de lavoura. E vais abdicar da casa e do gado?
- Os meus tios não vão querer estas partilhas. Não vão facilitar neste sentido. Se eu não exigir as coisas certas da forma mais inteligente vamos alongar as partilhas durante anos em tribunais enquanto eles continuarão a gozar do talho com toda a dignidade e nós continuaremos no limiar da pobreza. E depois, Carlos, não é de todo uma proposta tola. Primeiro devemos mostrar-lhes que eles têm o próprio tecto e sustento em causa. Devemos mostrar interesse em dividir tudo em três partes. Eles ficarão aflitos com a possibilidade de perderem o único sustento que conhecem e a única habitação que dispõem. Neste ambiente de receio, quando lhes disser que nós nos contentamos com as terras das Dutras e com a renda vitalícia do talho nos termos em que lhe falei eles aceitarão sem pestanejar.
- Faz sentido Diana, mas o problema é que essa divisão não lhe é favorável, nem a si nem ao seu irmão.
- Aí é que se engana. – Diana adoptou um brilho demasiado inteligente naquele olhar verde cuja pupila se dilatava num raciocínio genial. – Diga-me uma coisa doutor, a cidade da Horta está a crescer a olhos vistos, certo?
- Certo.
- E continuando assim não vai poder crescer para o mar, certo?
- Certo.
- E para os lados temos morros que dificultaram um crescimento da cidade nesse sentido, certo?
- Certo.
- Então para onde acham vocês que a cidade vai crescer?

    Fez-se luz em cada olhar presente naquela reunião.

- Para as Dutras claro. – o advogado sentia-se extasiado com aquele banho de sensatez, de raciocínio rápido, de visão.
- Exactamente! Daqui a 5 anos, ou até menos, aqueles prédios valerão muito mais que o resto da herança. E se os lotearmos darão imensos lotes e valerão mais. Agora só temos de acertar os seus honorários, claro. – esta era a parte que Diana tinha medo. Precisava de um advogado para impor respeito junto dos tios, mas não tinha como lhe pagar.

- Os teus amigos queriam pagar-me, mas agora que te conheci, faço questão de oferecer os meus trabalhos. Agora sei o porquê de seres tão querida neste meio… Tu és simplesmente brilhante… Tu mereces que eu vista a tua camisola.

    Diana sentiu que aquela estrutura forte presente enquanto dialogava com o advogado se começava a desmoronar e o lábio inferior começou a tremer-lhe um pouco, sinónimo da emoção que sentia naquele momento. Ali era respeitada e até admirada. Ali havia pessoas capazes de passar necessidades para a ajudarem. Ali não havia doutores, nem pescadores…
    Para celebrar os donos do café do Porto Pim ofereceram os cafés e instalou-se uma conversa de ocasião à volta da reacção dos tios.

- Vou fazer-lhes passarem um mau bocado, isso vos prometo – comprometia-se o Dr. Carlos
- Hão-de meter o rabinho entre as pernas. – adivinhava José Gaitinha.
- Vão ficar mais pequenos que eu. – esperançava-se Mário
- Vai mas é ser pouco em relação ao que fizeram. – indignava-se Manuel

    A conversa animada foi interrompida pelo toque do telefone do café. Guida atendeu e sem demora chamou Diana.

- É o teu irmão.

    Diana pegou no telefone apressadamente adivinhando más noticias.

- Oh Diana, o pai está no hospital. Ainda não sei bem o que lhe aconteceu. Vou sair agora da oficina directamente para lá. Vais lá ter?
- Claro que sim. Estou já de saída… Encontramo-nos lá.

    Desligando o telefone deparou-se com vários pares de olhos pousados nela à espera da notícia.

- O que aconteceu Diana? – perguntou Raquel
- O meu pai está no hospital. Ainda não sabemos o que aconteceu. Vou para lá agora.
- Eu levo-te. - ofereceu-se o Dr. Carlos.

    Diana entrou nas urgências do hospital na companhia de Raquel. Pedro já lá estava.

- O pai caiu de um muro alto. Entrou aqui meio adormecido, mas os médicos acreditam que é efeito da bebida. Ele ainda está sob observação… Mas só por precaução.

    Diana sentiu uma ponta de decepção. É maldade esperançar-se na morte de alguém, mas era exactamente neste desejo de morte que Diana se concentrava. Aquele malvado nem era oportuno na hora da partida. Continuará a amaldiçoar-lhe cada regresso a casa. Continuará a amedrontá-la com aqueles gestos lentos e pesados que por vezes se precipitam no seu rosto. Continuará a gastar o dinheiro que o irmão ganha com tanto esforço. Continuará a gritar-lhe com aquele bafo pestilento da bebida… Diana sai disparada das urgências de cabeça baixa e num passo demasiado apressado com as lágrimas a tentarem uma saída forçada, quando sente um embate forte no peito e cai de rabo no chão.

- Olha quem aqui está! – o enfermeiro Duarte estava de cócoras a segurar-lhe o rosto entre as suas mãos. – Estás bem? Vejo que as marcas do hematoma estão a desaparecer…

    Diana sem paciência para conversa de circunstância começou a chorar convulsivamente enquanto se tentava desenvencilhar do enfermeiro. Chegou a ser brusca nos seus movimentos para espanto do rapaz.

- Estás muito alterada. O que é que se passa?
- Não se passa nada… Agora deixe-me em paz. – Duarte agarrou-a pela mão e arrastou-a atrás de si. Enfiou-a dentro do elevador e sentiu-se atraído por aquela figura. Sentiu um calor repentino na mão que segurava a mão dela. O coração apertava-se ao vê-la deixar cair lágrimas. Que mistérios haveria naquele ser? Que força o precipitava para ela? De certeza que a vida dela estava enterrada em problemas, mas ele sentia-se tentado a aliviar-lhe o peso desses problemas… Mas que raio de pensamentos… Nem a conhece bem e já está a delirar realidades fantasiosa…
O elevador parou no andar pretendido e Duarte continuou a conduzi-la através de corredores largos com luzes trémulas que faziam lembrar um cenário de filmes de terror. Finalmente passaram a porta pretendida e Duarte sentou Diana numa mesa a um canto mandando-a esperar. Diana obedeceu, apesar de ter demorado uns bons vinte minutos. Voltou com um tabuleiro com dois galões e uma torrada.
- Agora come. – Duarte mostrava-se um pouco brusco nas suas ordens, pelo que Diana não se atreveu a contestar. – Agora diz-me o que se passa.
- És psicólogo? – pergunta Diana.
- Não! Pensei que te lembrasses de mim… Sou o enfermeiro que cuidou de ti no outro dia em que vieste às urgências… Sou o Duarte. – Apresentou-se o rapaz desiludido.
- És meu amigo, conhecido, familiar? – Pergunta Diana como se não tivesse ouvido o discurso de apresentação de Duarte.
- Não. – Duarte agora sentia-se confuso face à atitude da rapariga. Seria ela maluca…
- Então com que direito queres que te conte o que se passa comigo? – e antes que conseguisse obter uma resposta do seu interlocutor, continuou com um discurso atrapalhado – Queres conhecer as minhas misérias? Pois eu digo-te… Sou filha daquele bêbado que está nas urgências… que possui um tal estado de alcoolismo permanente que se atirou de um muro, pensando que podia voar… Sou uma pelintra sem eira nem beira, órfã de mãe e criada pelas freiras que cuidam dos abandonados… Queres saber mais?... Sou aquela que tem uma existência de fome, frio e privações… Sou aquela a quem ninguém atravessa a rua para cumprimentar… Não dizes nada… Eu posso continuar… Sou aquela de quem os pais afastam os filhos com medo que eu lhes pegue a minha miséria. – Diana calou-se de repente tomando consciência do seu desabafo. Como não houve qualquer reacção do enfermeiro, Diana adivinhou-lhe o provável embaraço de estar sentado com ela no bar do hospital. – Bem agora que sabe o que se passa comigo, pode fazer como toda gente e ir-se embora. Não quero embaraçá-lo com a minha presença aqui no seu local de trabalho.

    A rapariga levantou-se desiludida. Esperava um gesto de compreensão, uma palavra de esperança, mas afinal ela não está no café onde é apreciada. Está no meio das pessoas normais e dignas onde ela é uma marginal. E agora aquele deus grego também conhece a sua triste existência… Paciência…

- Espera Diana! – Duarte agarrou-lhe o braço com suavidade e fê-la voltar-se para ele – Eu já terminei o meu turno e gostaria muito que me fizesses companhia o resto da tarde.

    Diana sorriu. Um sorriso esplendoroso que aqueles lábios grossos e dentes brancos e perfeitos lhe proporcionavam. A rapariga seguiu-o sem questionar. Fizeram o caminho contrário sem trocarem uma palavra. Ambos demasiado conscientes da presença do outro. Ao chegarem ao carro Duarte abriu a porta num gesto cavalheiresco e Diana soltou uma gargalhada.

- Nunca ninguém me abriu a porta de um carro. Hoje sim o meu irmão podia chamar-me princesa.
- Pensei que essa gargalhada se devia à minha lata velha. – Duarte possuía um Fiat Uno muito velho, de uma cor preta gasta pelo tempo e pela maresia.
- Pois, para enfermeiro deslocas-te mal.
- Esperavas o quê? Um porshe?
- Nem mais… Depois fazias como o único proprietário de um porshe nesta ilha… Alugavas a pista do aeroporto para poderes tirar partido da máquina, já que não existem estradas para isso nesta terra…
- Não acredito que haja alguém que fez isso…
- Podes acreditar.

    A viagem de carro fez-se numa conversa simpática e que fluía sem esforço. Uma conversa sem temas deprimentes, sem preocupações, com algumas futilidades até… Como Duarte conhecia pouco a ilha, foi Diana que decidiu o destino. Ia indicando o caminho enquanto conversavam. Diana não conseguia evitar uma atenção abusiva nas faces daquele ser que a acompanhava. Os traços eram fortes e perfeitos. Tinha uma barba de dois dias que se apresentava em tons de louro escuro. Notavam-se umas poucas sardas perdidas sobre o nariz e maçãs do rosto… E aqueles olhos cor de mel que sorriam sempre que os lábios finos o faziam. O cabelo era abundante e um pouco rebelde de um louro arruivado que fazia lembrar o cabelo dos surfistas da televisão. Esta imagem agradava-lhe já que lhe era tão difícil desviar os olhos dela.
    - Chegamos. – declarou Diana com um entusiasmo que lhe era desconhecido. – Bem-vindo à Poças da Rainha, o meu lugar de eleição quando quero gritar.

    Tratava-se de umas piscinas naturais entre as rochas negras de basalto. Desceram as escadas improvisadas no meio dos enormes pedregulhos e sentaram-se no último degrau só com o negro do basalto e o azul do mar por companhia.

- Este lugar é lindo! Não conhecia. – Duarte estava demasiado concentrado na proximidade de ambos. Sentia o ombro dela encostado ao seu numa consciência desconcertante.
- Olho para esta piscina perdida no meio destes rochedos como o meu poço das lamentações. Às vezes acho que ele se enche de água do mar e de lágrimas minhas em partes iguais… - voltando-se para Duarte e olhando-o nos olhos para desconforto dele questionou – Não és de cá?
- Adivinhaste! Sou da Terceira, mas quando terminei o curso foi aqui que fiquei colocado.
- E estás a gostar?
- Começo a gostar… - estas palavras de duplo sentido provocaram em Diana uma esperança absurda.
- Não te custou deixares a família para trás?
- Não tenho família… - esta afirmação de Duarte provocou a compreensão momentanea de Diana que lhe pegou na mão num gesto de compreensão e manteve-a assim durante o tempo que ali estiveram.
- Então… Como é que foste criado?
- Num orfanato.
- Deve ter sido difícil!
- Não tanto como possas imaginar, Diana. – Duarte fixou as mãos entrelaçadas. Sentia cada ponto da sua pele que estava em contacto com a pele de Diana. Olhou-a sem vergonha. Deteve-se na testa pequena que se separava da cabeleira numa pronúncia de coração. O contorno do rosto tinha umas linhas duras que se suavizavam com o olhar verde e doce. O nariz era pequeno e redondo, um pouco empinado o que demonstrava uma certa agressividade de personalidade. A boca era uma tentação com uns lábios carnudos que se moviam de uma forma sensual, e quando se esticavam num sorriso por vezes terminavam numas covinhas ternurentas. Duarte sentia-se atraído naquela direcção. Quase se inclinou para a rapariga mas deteve-se a tempo.
-Desculpa a pergunta, mas como é que um gaiato órfão é enfermeiro?
-Estou a detectar alguma descriminação nessa pergunta Diana? Logo tu que lutas tanto contra a descriminação que sentes todos os dias?
-Não me interpretes mal. Eu própria sonho ir para a faculdade em Setembro quando terminar o secundário, e só quero ouvir da boca de alguém que também foi marginal e que conseguiu tirar o curso como é que conseguiu. Tens de admitir que a sociedade não foi feita para se encaixar em pessoas como nós. Não é à toa que existe a palavra marginal. A sociedade recebe no seu quotidiano aqueles que nascem no seio de uma família que trabalha, paga as contas, paga os estudos dos descendentes, ajuda-os a procurar emprego, a constituírem família e passam o testemunho. Nós não temos quem nos deixe o seu testemunho nem quem nos oriente na vida.
-Percebi! E deixa-me que te diga, não concordo contigo. É mais difícil para pessoas como nós atingir determinados objectivos. No entanto o facto de se ter uma família dita normal não é sinónimo de sucesso garantido. Tu é que deves olhar em volta e saber aproveitar todas as oportunidades, e com uma atenção redobrada, já que as tuas oportunidades são em menor número que as oportunidades dos outros. Eu aproveitei a única oportunidade que tive na vida… E olha o marginal a tentar arranjar uma vida em que passe o testemunho.
    O silêncio que se seguiu não significou qualquer incómodo. Diana Pensava nas oportunidades… e ela tinha oportunidades que não podia desperdiçar. Ia estar atenta a todos os bónus que a vida lhe desse e vai deixar de lado as lamentações. Afinal não é a única pessoa no mundo com dificuldades…  
    O silêncio alongou-se por um tempo indeterminado e foi interrompido por um arrepio de frio no corpo de Diana.

-Tens frio? – pergunta Duarte que detectou logo o arrepio tal era o estado de alerta do seu corpo em relação ao corpo de Diana.
- Um pouco… Mas estou a gostar da tua companhia e não me quero ir já embora… Se não te importares é claro.
-Não penses que vais livrar-te de mim com essa facilidade. Eu não faço intenção de te deixar já, mas vamos para outro lado… E agora quem decide sou eu.

    Duarte largou a mão de Diana a custo. Levantaram-se e dirigiram-se para o carro. Voltaram para a cidade e estacionaram no cais. Duarte sentia necessidade de voltar a tocar em Diana, pelo que encostou a palma da mão às costas da rapariga e conduziu-a até um restaurante que ficava numa esquina.
-Não podemos entrar aí Duarte. – e em jeito de segredo Diana aproximou a boca da orelha de Duarte e sussurrou – É demasiado caro…
     Duarte sentiu um arrepio de prazer ao sentir o rosto dela tão perto do seu. Inalou o cheiro que até agora lhe era desconhecido. O pescoço tinha um cheiro difícil que se situava entre o leite-creme e o caramelo. Um cheiro discreto quase imperceptível mas que lhe aguçava os sentidos.
-Não te preocupes. Hoje sou eu quem decide.

    Entraram e escolheram uma mesa no andar superior. Diana sentiu-se encantada com o deslumbre de uma parede em vidro que permitia uma vista sobre o cais em frenesim num vai e vem de cabeças apressadas com a chegada da lancha. A estátua de Manuel d’Arriaga elevava-se no centro da rotunda e parecia escarnecer as rotinas humanas daquele local. O cais cheio de traineiras envergonhadas face à envergadura do navio cruzeiro estacionado em alto mar,  grande demais para aquele pequeno porto. A rua estendia-se estreita passando pelo café Peter onde iatistas demasiado pálidos e louros brindavam com o famoso gin tónico o facto de estarem num dos sete bares do mundo de paragem obrigatória.
    O jantar foi servido em pequenos pedaços de carne e camarão crus que Diana e Duarte grelhavam numa pedra quente colocada na mesa. Conversaram sobre os molhos, os temperos a paisagem. Olharam-se com carinho, com desejo, com compreensão, com vergonha. Sentiam um turbilhão de sentimentos sem que os conseguissem separar e identificar.
-Afinal qual foi a tua oportunidade para tirares o curso? – pergunta Diana.
-Para te responder a isso tenho de te contar a minha história…
-Sou toda ouvidos.

    Com o fim do jantar os empregados limparam a mesa e serviram o café. Duarte debruçou-se sobre a mesa e procurou a mão de Diana. Começou a brincar distraidamente com os seus dedos magros enquanto começava o relato da sua vida.

- Fui abandonado à porta da casa dos gaiatos ainda bebé. Receberam-me na instituição e foi lá que criei os meus laços afectivos. Os outros rapazes eram na sua maioria crianças amargas, incompreendidas, que exteriorizavam na violência a revolta e a fúria que sentiam interiormente. Eu tive a sorte de um padre que ajudava a instituição se ter interessado por mim. Ainda me lembro do nosso primeiro encontro em que lhe perguntei se ele podia perguntar a Deus onde andava a minha mãe e se ela ainda demorava muito a vir buscar-me. Ele respondeu-me com um sorriso meigo: “Não deves começar por questionar o que não sabes, deves começar por valorizar o que já tens”. Pode parecer parvoíce, mas eu na inocência dos meus seis anos percebi o que ele me queria dizer. A partir daquele dia, o Padre Clemente passou a fazer parte da minha vida. Ia-me buscar todos os domingos e passávamos esse dia juntos. Eu assistia-lhe à eucaristia, almoçávamos sempre em casa de algum paroquiano e da parte da tarde jogávamos à bola e visitávamos o lar de idosos. Era sempre assim, a mesma rotina que eu ansiava ao longo de toda a semana. Tornei-me um bom aluno e creio que adoptei uma boa conduta garças a ele. Tinha sempre vontade de o fazer orgulhar-se de mim, queria sempre ter em cada domingo uma boa nota ou uma boa acção para lhe apresentar. Assim quando terminei o secundário, o padre arranjou-me um amigo abastado que me sustentou o curso sem nunca saber quem eu era. Só conheci o meu benfeitor no dia em que estava no aeroporto de Angra para vir trabalhar pela primeira vez aqui nesta ilha. Reconheceu-me logo pela descrição do padre Clemente. Dirigiu-se a mim com um olhar orgulhoso e disse-me “ És o décimo segundo rapaz dos gaiatos a quem eu disponibilizo ajuda para ir mais além. Mas és o primeiro que me dá a alegria de ver vencer”. Com estas palavras o homem abraçou-me, não de uma forma casual, mas com uma emoção que me tocou. Sabes Diana, foi nesse momento que percebi a quantidade de pessoas que desperdiçam oportunidades, e o pior é que se desculpam com as balelas de que são marginalizados e não têm apoio de ninguém. Existe Deus, Diana… Eu tenho esta certeza, e Ele é igual para todos… O que fazemos da nossa vida é que decide o nosso futuro e o futuro dos que nos rodeiam.
    Diana sentiu-se mais próxima daquele rapaz que até então lhe era desconhecido do que de qualquer cara jovem que lhe fosse familiar.

sábado, 28 de maio de 2011

Ilha Azul

Capitulo I
            
    Chegar atrasada significa uma fracção de segundos em que tem de aguentar todos aqueles olhares maliciosamente vazios sobre a sua frágil figura, procurando naqueles ténis velhos algo que se pareça com os tão em voga all-star e não encontrando mais do que uma vaga expressão de coitadinha da pobrezinha.
    É o primeiro dia do terceiro período daquele 12º ano que parece interminável. A turma continua o mesmo mar de gente insignificante que vibra com as novas madeixas da tão popular Bia. Diana consegue chegar mesmo a tempo de ouvir o toque da campainha e entra num passo miúdo mas rápido na sala 16 para mais uma aula de matemática. Senta-se no lugar de costume, na última fila o mais à esquerda possível e pousa a mochila gasta na cadeira do lado adivinhando que ficará vazia. A aula termina e segue-se o intervalo de quinze minutos, demasiado longo para Diana que se deposita fora da próxima sala onde terá a aula de economia. Com um olhar desinteressado fixa ao acaso o fundo do corredor onde vê Ruben de mão dada com a nova namorada, a filha da nova juíza da cidade… Só podia… Aquele deus grego de cabelo louro a roçar-lhe os ombros de uma forma um pouco feminina era o top ten de popularidade naquela pequena escola secundária daquela pequena ilha dos Açores, Faial. Eles dirigem-se a ela e Diana sente um formigueiro nervoso na boca do estômago.
- Olá Diana! Aqui a Raquel estava curiosa para conhecer a croma que tem aquelas notas bombásticas na pauta. – Diz Ruben sem sequer olhar Diana e demonstrando uma contrariedade evidente por se ver forçado a dirigir palavra àquela pobre de espírito.

- Eu sou a Raquel, e fiquei impressionada com as tuas notas. Ter como nota mais baixa um 17 a português é obra. Parabéns…
- Eu sou a Diana… - respondeu com o olhar baixo constrangida pela conversa. Ruben resolveu a situação pegando no braço da namorada e afastando-a para a rua.

    O resto da manhã passou-se entre uma aula e outra e quando soou o toque da campainha anunciando o fim das aulas da manhã os corredores encheram-se de um frenesim humano, um mar de cabeças que Diana deixou passar para então aventurar-se na sua saída da sala. Ao atravessar o pátio da escola ouviu uma voz esganiçada pronunciar o seu nome num tom demasiado agudo para seu gosto. Não se deu ao trabalho de olhar. Não lhe apetecia ser a cobaia de um bando de filhinhos de papá que queriam arranjar um animalzinho para mal tratar durante a hora de almoço… De repente Diana sente uma mão pousar no seu ombro e sente todos os músculos do seu corpo endurecerem. Os dentes cerram-se e os punhos fecham-se com uma força trémula. Se eles quiserem um saco de pancada vão surpreender-se…

- Não me ouviste chamar-te? – Pergunta Raquel com as bochechas vermelhas reflectindo o esforço feito para alcançá-la.
- Olha betinha de merda, se queres gozar com esta mal trapida, aberração, bicha do mato ou o que quiserem rotular, estás muito enganada. – Sibila Diana num sussurro frio fixando os olhos da novata da escola sem nunca pestanejar. De seguida baixa aqueles olhos verdes redondos apavorados e fixa-os no chão voltando-se de costas e fazendo intenção de prosseguir o seu caminho.
- Se te queres vitimizar com essa balela da pobrezinha perdes o teu tempo comigo, porque eu não tenho pena nenhuma de ti. Apenas sou nova na escola e quero fazer amizades interessantes… E eu acho que tu és uma pessoa interessante. Quanto a seres uma bicha do mato isso, querida é inegável. – Depois de dois segundos de espanto Diana rasgou os lábios numa gargalhada contagiante. – Anda daí … Vamos almoçar uma mega pizza de queijo… Oferta da betinha. – Raquel encerrou o assunto e desceram a rampa da escola mirando os muros pretos de basaltos generosamente abraçados por longos braços de era que formavam um antigo forte transformado numa cara residencial.

    As raparigas almoçaram em silêncio a pizza e Coca-Cola sentadas no muro que separava o jardim daquela marina cheia de veleiros e pequenos iates, com os muros cinza claros cobertos de desenhos daqueles que queriam deixar registado uma fugaz estadia naquela baía azul. A paisagem prolongava-se por um azul calmo e intenso até bater numa ilha triangular cujo cume é o ponto mais alto de Portugal. Um pouco mais distante e mais à esquerda alongava-se S. Jorge a ilha mais comprida do arquipélago, e ainda a Graciosa que se pronunciava numa imagem de uns seios perfeitos.

- Quais são os teus objectivos quando terminares o liceu? – pergunta Raquel afastando uma madeixa inoportuna de cabelo louro da cara e prendendo-a atrás da orelha pequena ornamentada com um brinco em forma de golfinho.
- Quero ir para a faculdade… Quero tirar economia ou gestão de empresas. - responde Diana pouco à vontade
- Mas como é que pensas fazê-lo? Os teus pais não têm condições financeiras para te pagarem os estudos, não é verdade?

    Diana espantou-se com a lata da rapariga, mas apreciou o à vontade com que ela abordava o assunto.

- Eu só tenho pai, que por ventura é o maior alcoólico que esta terra já conheceu. A minha mãe morreu quando nasci… Nunca cheguei a conhecê-la. – Diana sentiu um aperto na garganta e apressou-se no assunto de família – Por isso é que faço questão de ter tão boas notas. Tenho de conseguir uma bolsa de estudo. Já tenho dinheiro para a viagem e para o primeiro mês lá fora… Trabalho ao fim-de-semana num café…

    Raquel sentiu vergonha pela primeira vez na vida por ter uma vida tão facilitada. Sentiu vergonha da sua média de 15, da qual sempre se orgulhara… Envergonhou-se da exigência que fez aos pais há três dias atrás para que lhe comprassem uma mochila nova, quando tem seis mochilas boas dentro do guarda fato… Sentiu-se ingrata por todas as vezes que gritou a Deus o quão injusto era com ela por tê-la colocado naquela ilha insana que não tem um teatro, um cinema, uma universidade, um politécnico, um mcdonald’s… 

- Eu gostava de tirar psicologia, mas tinha de melhorar um pouco a minha média, por isso vou tentar fisioterapia, terapia da fala ou algo do género…

    Diana soltou uma gargalhada, a segunda do dia… Coisa rara nela, mas ela estava a gostar daquela espécie de inicio de amizade

- Tu és muito divertida… Em vez de fazeres um esforço nos próximos três meses para melhorares a tua média e tirares o curso que te agrada, pensas em sacrificar o resto da tua vida a uma profissão que tanto te faz… Pelo amor de Deus Raquel… - Diana acalmou o riso e declarou – Vais começar a estudar comigo todos os dias e vais subir a tua média, ou não me chamo Diana Pereira Silva e este não é o ano de 1998.

    A hora de almoço passou-se depressa de mais e as aulas da tarde começaram com o mesmo ritmo lento e chato característico do início de cada período. Diana passou os intervalos sozinha olhando para Raquel à distância, enquanto ela desfrutava com um ar demasiado sisudo a companhia do namorado e dos amigos.
    No final das aulas Diana encaminhou-se num passo apressado para fora dos portões da escola. Atravessou a cidade pela avenida sempre junto ao mar olhando o vai e vem das ondas calmas enquanto roçavam para depois se afastarem das pedras escuras num movimento eternamente prometedor. 
    Finalmente chegou à oficina de carros. Entrou conhecedora do caminho e deteve-se a olhar para o irmão todo sujo de graxa encaixado naquele fato-macaco que não fazia justiça aos seus ombros largos, ao seu abdómen bem dividido, às suas pernas altas e atléticas. Diana enchia-se de orgulho ao olhá-lo ali com poucos estudos a trabalhar num emprego humilde com todo o profissionalismo e dedicação que se pode desejar num funcionário.

- Ah princesa! Já chegaste? Nem te vi entrar… Vou só lavar as mãos e vamos embora, ok? – Pedro aproximou-se da irmã e beijou-a na testa enquanto lhe fazia um festa na ponta do nariz sujando-a de graxa.

    Diana esperou o irmão encostada à velha zundap, a motinha que os transportava todos os dias, debaixo de sol ou de chuva.
    Pedro ainda demorou-se um pouco na oficina e chegaram a casa por volta das oito da noite. Subiram os degraus de pedra, passaram o balcão da casa e entraram pela porta principal que dava acesso a uma velha cozinha com uns armários antiquados pintados de verde água e com algumas portas em vidro deixando adivinhar um conjunto de louça disparo e desajeitado. A mesa de madeira no centro da cozinha assentava num chão de soalho que rangia a cada passo e os bancos envolventes encontravam-se tombados, à excepção de um que aguentava o peso de um homem sujo, com o cabelo desgrenhado e uma barba de semanas. O homem ao sentir a chegada dos filhos levantou-se desajeitadamente e precipitou-se para os recém-chegados.

- Seus filhos da puta… Acham que isto são horas seus vadios… E o meu jantar? Hã? Onde é que está o meu jantar? Eu dou-vos um tecto e nem a merda do jantar fazem… Seus filhos da puta… - E neste discurso inflamado e mal pronunciado, José dos copos, como era conhecido, deixa cair a mão direita numa força bruta sobre o rosto assustado de Diana que resulta na inconsciência imediata desta.

    Diana quer ver mas as pálpebras pesam uma tonelada. Num esforço que lhe pareceu sobre-humano obriga os olhos a abrirem-se e depara-se com uma claridade imensa de um branco intenso… Deve ter morrido… Pois, provavelmente morreu… Não lhe parece uma ideia má de todo… E aquela imagem toda branca com uns olhos cor de mel de uma meiguice intrínseca que repousam agora nos seus devem pertencer a algum anjo que está agora a executar um ritual de boas vindas…

- Já acordou sua dorminhoca! – O anjo é mais humano do que parecia.
- Onde é que eu estou? – pergunta Diana numa voz  arrastada.
- Estás no hospital e eu sou o enfermeiro Duarte – Afinal não é um anjo… Ainda bem… Os anjos são assexuados.
- O meu irmão?
- Está lá fora, muito angustiado. Antes de o mandar entrar quero falar um pouco contigo.
- Sobre o quê?
- Ambos sabemos que esse hematoma que ganhaste hoje não é resultado de uma queda. Foi uma agressão… Queres falar disso?
- Apenas caí na banheira...
- Engraçado… O teu irmão diz que o acidente deu-se nas escadas. Foi ele que te bateu?
   
    Diana sente um aperto na garganta e uma humidade irritante nos olhos que teima em converter-se em lágrimas.
 - Não… - responde finalmente num sussurro.
- Um namorado?
    Diana deixa escapar um gargalhada atabalhoada antes de responder.
- Não tenho…
- Ah! Deve ser o meu dia de sorte! – Respondeu o enfermeiro Duarte com um sorriso aberto mostrando os dentes brilhante encaixados nuns lábios finos que terminavam numa barba rasa que lhe davam um ar potente.
    O irmão entrou no quarto com os olhos vermelhos e inchados. A testa enrugada de preocupação e as mãos trémulas agarrando com demasiada firmeza o cartão de saúde da irmã.

- Desculpa Princesa! Não consegui evitar a tempo… Desculpa! – Pedro deixou enterrar o rosto sofrido no peito da irmã que o abraçou e chorou com ele.
- Tu sabes que a culpa não é tua! Afinal tu és o meu anjo da guarda, não é? – pergunta Diana num fio de voz que trás à memória muitas recordações dolorosas. Aquele cenário comove o enfermeiro que se retira discretamente do quarto, mas levando na alma aquele drama familiar que não consegue entender.

    Pedro fez uma rápida retrospectiva à sua vida sempre condicionada pelos maus modos do pai. José dos copos sempre gostou da boa vida. Este gosto vem desde os tempos de solteiro. Com a fama de preguiçoso casou-se com uma rapariga ingénua e muito trabalhadora de nome Ermelinda. Dizem que ele gostava muito dela, mas a preguiça era maior que o amor que sentia pela mulher. Ela tratava da casa e das poucas terras que tinham, único sustento daquela família. Engravidou do primeiro filho ainda muito jovem, apenas com 18 anos, mas o excesso de trabalho e a falta de apoio para fazê-lo resultaram num aborto. Teve então o primeiro filho, Pedro, cinco anos depois, para grande alegria sua. Pedro costuma falar da mãe descrevendo-a como uma mulher simples e fácil de contentar. Estava sempre de bem com a vida. Mesmo nos momentos em que se sentia mais cansada tinha sempre um sorriso ou uma desculpa para justificar a falta de ajuda por parte do marido. Foi Pedro que desde muito cedo começou a ajudar a mãe. Quando Pedro tinha oito anos, Ermelinda engravidou novamente. Com o aumentar dos meses e da barriga, Ermelinda caiu na cama muito doente, mas José, apesar da sua aflição teve demasiada preguiça para levá-la ao médico. O tamanho da barriga crescia acompanhado pelo inchaço dos pés e pernas. Pedro desdobrou-se no trabalho da terra e dos animais de forma a ter pelo menos ter uma sopa e leite para alimentar a mãe. De vez em quando conseguia um pouco de carne junto dos vizinhos que se compadeciam da situação. A hora do parto chegou e lá estava o pequeno Pedro contando apenas com a ausência do pai como ajuda. Foi Pedro que ajudou a mãe a dar à luz aquela menina pequenina. Foi Pedro que cortou o cordão umbilical, embrulhou a recém-nascida e colocou-a no colo de Ermelinda. Foi Pedro que a chamou pela primeira vez de Diana. E foi Pedro que ajudou a mãe na hora da sua morte a partir com um sorriso nos lábios, reflexo da sua última alegria.
    Seguiram-se os seis meses mais difíceis da sua vida. Sem ter tempo para chorar a morte da mãe que tanto lhe pesava no peito, na garganta, nos olhos sempre dormentes e desejosos de se libertarem daquela angústia, Pedro começava o seu dia antes do próprio sol. Trabalhava as terras o melhor que podia e tratava das duas únicas vacas que tinham. Alimentava a irmã principalmente de leite e batata esmagada. Durante as aulas deixava a bebé sozinha dentro de um berço improvisado por ele. Voltava das aulas sempre cheio de pressa e ansiedade para ver se a irmã estava bem. Num destes regressos encontrou a irmã caída no chão do quarto com um hematoma na face. Desesperado agarrou-a e saiu de casa a correr. Os seus olhos deixavam escapar toda a dor e ressentimentos que rolavam face abaixo num desespero gritado por uivos. As suas pernas moviam-se mais rápido do que o esperado num miúdo de nove anos, e o seu pensamento fluía numa tentativa de raciocínio. Pedro lembra-se de ter ouvido na escola que os casos de maus tratos eram tratados por senhoras Assistentes Sociais. Ele sabia que o hospital tinha senhoras dessas e era para lá que concentrava todo o seu esforço. Demorou apenas uma hora e meia a lá chegar. Entrou de rompante pela porta principal e gritou que queria falar com uma Assistente Social. Face ao nervosismo da criança, o segurança aproximou-se dele com uma atenção demasiado artificial para ser notada pelo rapaz e conduziu-o para fora do gabinete da Dr.ª Isabel. Ao ler a placa com as palavras desejadas Pedro acalmou-se. Quando finalmente entrou no gabinete estendeu a bebé para a delicada senhora e pediu-lhe fervorosamente que ficasse com ela, pois o pai não sabia tomar conta de bebés. A meiga senhora sorriu-lhe e fez-lhe algumas perguntas… Era bom sinal… Foram encaminhados para a rua onde a senhora segredou qualquer coisa a um taxista, e com mais um sorriso meteram as crianças dentro do táxi. Pedro relaxou finalmente… Deviam estar a ser levados para uma nova casa… Encostou a cabeça no assento e deixou que os seus olhos descansassem por um instante. Quando os voltou a abrir, foi com a surpresa que ainda lhe ardia na cara. A desilusão de estar a ser arrancado do táxi pelas mãos brutas do pai e arrastado novamente para a mesma casa provocou-lhe um pânico crescente com um movimento rápido de braços que tentavam proteger a cabeça dos golpes que iam sendo desferidos continuamente sobre o seu frágil corpo. José só parou quando o cansaço físico provocado pelo imenso esforço de repreender o filho se apoderou dos seus membros e decidiu ir deitar-se. Pedro ali ficou imóvel horas a fio olhando para a irmã que estava largada no canto oposto da divisão. Num último esforço desesperado levantou-se, pegou na bebé e voltou a sair. Foi-se arrastando lentamente rumo à sua última esperança. Com o corpo curvado de dores e crivado de nódoas e hematomas caminhou durante toda a noite, levando seis horas a chegar ao seu destino. Foi acordado com um suave abanar. Estava deitado fora da porta do colégio de Stº António. Não conseguiu evitar um leve sorriso ao ver que tinha conseguido chegar ao seu destino. Foi recebido pela irmã Maria Alice que logo se compadeceu daqueles irmãos. As freiras ficaram com a menina, mas nada puderam fazer em relação a Pedro que teve de voltar para casa. Pedro não se importou. Estava grato por ter conseguido colocar a irmã em segurança naquele colégio interno para raparigas. A mãe estaria, com toda a certeza orgulhosa dele…

- Podem sair quando quiserem. A Diana leva aqui uns comprimidos que só deve tomar se tiver dores.

    Os irmãos voltaram para aquela casa agora demasiado sossegada. Foi uma noite falsamente pacífica em que Diana só conseguiu adormecer quando se meteu na cama do irmão e voltou a sentir-se segura debaixo daquele braço forte.

    O dia amanheceu e Diana vestiu uma roupa qualquer sem sequer olhá-la, come um pouco de pão seco com leite lavou a cara e os dentes e escovou o cabelo deixando-o solto e caído sobre o lado da cara inchado tentando disfarçar o rosto magoado.
    Subiu a rampa da escola sempre de cabeça baixa tentando passar o mais despercebida possível. Entrou na sala onde teria a aula de inglês e sentou-se no mesmo lugar de sempre, pousando a mochila na carteira ao lado.

- Podes afastar a mochila? – pergunta Raquel com aquele sorriso fácil que lhe era característico e desfazendo-se dele com a mesma facilidade quando Diana levantou e deixou visível o inchaço roxo que se alongava desde a base do nariz até ao queixo.

    Ficaram a olhar uma para a outra durante uns segundos constrangedores, enquanto Diana tentava dominar as emoções fracas que se apoderavam dela. Ambas deixaram cair um par de lágrimas discretas e sentaram-se lado a lado em silêncio. A aula decorreu normalmente e Raquel não pode deixar de admirar aquela rapariga de pele demasiado queimada própria de quem trabalha no campo ou faz demasiada demora na rua tentando tardar sempre o regresso a casa. O cabelo castanho claro, sem ter um corte definido caia-lhe em caracóis sobre os ombros largos. O corpo esguio fazia adivinhar-se bem tonificado, uns seios pequenos mas redondos, uma barriga longa e dura e umas pernas bem torneadas escondiam-se por debaixo de uns trapos velhos e mal estimados. Mesmo com o rosto danificado, mesmo com uma vida familiar e pessoal difícil, mesmo vítima de maus tratos, Diana estava concentrada na aula captando tudo o que era ali dito retendo a informação imediata e anotando o que deve rever em casa. Que força de vontade… Que motivação se move nas suas entranhas… É sem dúvida uma pessoa merecedora de toda a admiração e Raquel admirava-a.
    A aula terminou e Diana começou a arrumar as suas coisas sem pressa. Raquel pelo contrário atirou com tudo para dentro da mochila de forma a poder aproveitar o máximo de tempo possível do intervalo.

- Então Raquel! Não me viste quando entraste na sala? Tinha guardado o lugar ao meu lado para ti… - Reclama Ruben magoado com a falta de atenção.
- Vi. – Responde Raquel com firmeza – Mas já tinha combinado com a Diana que ficaríamos juntas nas aulas de inglês já que é a única disciplina que temos juntas. Não é amiga? – e com isto emitiu um piscar de olho prometedor e com uma certa malícia de quem se divertia com a situação.
- Estás a gozar, certo? – Pergunta Ruben incrédulo e um pouco envergonhado com o facto de a namorada estar a estabelecer uma relação amigável com aquela campónia.
- Não, não estou a gozar. Queres passar o intervalo connosco?

    Ruben sente-se ultrajado e humilhado. Volta as costas às duas raparigas e sai da sala. Como é que Raquel pode dar confiança àquele tipo de gentinha… Claro que o namoro está terminado… A Raquel teve a oportunidade de se dar com pessoal porreiro na escola e escolhe gente duvidosa para desenvolver amizades… Nem parece filha de quem é. O que será que a juíza Fernanda e o marido, o médico Guilherme pensarão desta nova companhia? É pena as coisas terminarem assim, até porque a Raquel não é de se deitar fora…

- Agora vou ter aula de educação física, mas à tarde não tenho aulas. Falamos nessa altura está bem Diana?

    Diana encolheu os ombros e olhou aquela nova amiga com uma gratidão que incomodou Raquel. As aulas da manhã passaram depressa e a tarde chegou para alívio de todo o 12º ano que não tinham aulas às terças-feiras da parte da tarde. Raquel procurou Diana para que pudessem conversar um pouco mas sem sucesso. Só voltou a vê-la na manhã seguinte.

- Então bicha do mato? Procurei-te ontem por toda a parte… Onde é que te meteste?
- Com uns amigos – respondeu Diana que não pode evitar um sorriso quando olhou para o ar estupefacto da amiga…
- Não sabia que tinhas assim tantos amigos.
- Queres conhecê-los hoje na hora de almoço? Convidaram-me para comer com eles.
- Teria todo o gosto. Encontramo-nos junto ao portão quando tocar a campainha, combinado?
- Claro betinha…
    Pela primeira vez na sua vida estudantil as aulas pareceram mais aborrecidas e Diana tinha pressa de voltar a estar com a sua nova e única amiga adolescente. Estava um pouco reticente em apresentar os seus verdadeiros amigos. A reacção de Raquel decidiria a relação das duas daí para a frente. Achava que era importante a amiga saber com que tipo de gente se dava, ver o quão diferente são os seus amigos.
    Ao meio-dia em ponto as duas raparigas puseram-se a caminho.

- Para onde me levas? – Questiona Raquel curiosa.
    Diana esboçou um sorriso nervoso. Manteve-se calada o caminho todo, com uma ruga de preocupação na testa. Talvez não tenha sido assim tão boa ideia introduzir Raquel no seu mundo. Talvez seja cedo demais…

- Chegamos!... – Declara Diana com uma nova animação enquanto entra num café à beira da praia do porto pim.

    Raquel entra a medo observando pela primeira vez o interior daquele café. Os clientes resumiam-se a um grupo de velhos de pele curtida e um pouco desdentados que cheiravam a peixe, mas não de uma forma desagradável. A sensação de repugnância depressa foi ultrapassada pelo calor humano que aquela gente depositou na recepção a Diana.

- Quero apresentar-vos a minha amiga Raquel. – Diana apontou para aquela rapariga loura com um orgulho que se pronunciava no seu sorriso.

- Ah! Não sabia que te davas com gente. – Arreliou-a um homem alto e demasiado magro com um ar de gozo natural que se evidenciava nos seus pequenos olhos negros e no riso rasgado e desavergonhado que deixava à mostra a falta evidente de dentadura.

- E este é o José Gaitinha, Raquel… Não te deixes enganar por este Romeu atraente…

    Agora o café rompia em gargalhadas. Raquel começava a apreciar aquele ambiente de pescadores onde era notório o carinho que todos sentiam por Diana. Para além das conversas banais mostravam interesse e orgulho nos estudos de Diana e faziam planos em conjunto para quando ela fosse estudar para o continente. Todos estavam dispostos a dividir o tão pouco que tinham de modo a tornar o sonho de Diana realidade.

- Eu já tenho dinheiro para a viagem e para o primeiro mês, não é assim Guida?

    Raquel percebeu que a Guida era a dona do café. Tratava-se de uma mulher que estava a chegar à casa dos quarenta e que aparentava bem essa idade nas rugas que lhe sulcavam a testa e contorno dos olhos. Possuía uma cabeleira de caracóis pesados e negros, sem brilho que contrastava com a pele demasiado pálida. A mulher de estatura média esticou-se e tirou um pote escondido na última prateleira. Abriu o pote e tirou de lá um molho de notas cuidadosamente enroladas.

- Até agora é isto que temos poupado Diana, mas se Deus quiser vamos conseguir angariar mais algum para além do teu ordenado, é claro. – Guida exibiu um sorriso maternal expondo os seus dentes demasiado grandes.
- Não precisam de fazer isso por mim… Vocês já vivem com tantas dificuldades e sei bem que fazem tantos sacrifícios para terem uma vida familiar um pouco desafogada, não se devem privar de nada para porem mais dinheiro nesse pote… - Diana falou com uma emoção trémula na voz.
- Ah, mas nós queremos ter uma amiga doutora e que nos leve a sítios finos comer aquelas comidas demasiado caras que nem chegam a encher o prato. – José Gaitinha provocava Diana de uma forma saudável enquanto tirava 500 escudos do bolso – e aqui vai mais uma notita para o fundo da nossa menina.

    Raquel emocionada sentia uma energia solidária percorrer-lhe a espinha. Olhava aquele café iluminado e limpo cheio de gentes simples, mal trapidas e pouco educadas a comerem de boca aberta e a sorverem o galão. Pessoas que normalmente lhe suscitavam desconfiança e até um pouco de repugnância e que a levavam a um afastamento automático. Naquele exacto momento achava aquela gente linda… Não havia outro adjectivo que qualificasse melhor os amigos de Diana. Os pescadores depositavam ternas palmadinhas nas costas de Diana, por vezes abraçavam-na e chegavam a beijar-lhe o topo da cabeça com uma ternura que lhe tocava o coração. E foi na corrente desta onda que Raquel puxou da carteira.

- Eu também quero contribuir para o futuro da aluna mais brilhante da nossa escola. – e nisto inseriu uma nota de dois contos no pote. Este gesto provocou um espanto geral que se reflectiu num silêncio absurdo. Foi Paulo, o marido de Guida, um homem robusto com um pouco de peso a mais, uns ombros demasiado largos e um nariz bicudo que cortou aquele gelo.

- Como é que uma miúda da tua idade anda com tanto dinheiro no bolso? – A pergunta foi feita de forma cordial, mas Raquel e Diana leram a desconfiança naqueles olhos pequenos e castanhos encovados num rosto redondo.

- A Raquel é uma betinha. – respondeu Diana arrancando uma gargalhada geral e desanuviando o ambiente.
- És filha de quem? – eis a pergunta típica dos meios pequenos gerada pela boca de um dos pescadores, mas questionada pela mente de todos.

    Raquel tinha muita vontade de agradar aquela plateia, queria que olhassem para ela com o mesmo respeito que olhavam para a amiga.

- Sou nova cá na ilha. A minha mãe é a nova juíza do vosso tribunal. E se estás com inveja por eu ter contribuído para o fundo da Diana, posso criar um fundo também para ti…

Pronto! Aí estava a reacção esperada. Os pescadores riram-se com vontade. Alguns até lhe deram uma palmadinha no braço enquanto brincavam com a situação, “Oh Mário também queres ir para a universidade?”, “olha que ouvi dizer que é preciso saber ler e escrever”, “ aquilo é como na tropa, tens de ter pelo menos metro e meio”. Mário era um pescador de cabelo cinza abundante e de baixa e estreita estatura. Sempre que se falava no tamanho do homem que era capitão de uma traineira com muito orgulho lá contava ele a mesma história:

- Sabes porque sou pequeno em tamanho? – perguntou o homem a Raquel
- Porque é preguiçoso demais para crescer!... – arriscou a novata com um sucesso espelhado na risota geral.

- Essa foi boa pequena. – respondeu Mário piscando-lhe o olho – Mas a verdade é que quando eu era miúdo o meu pai dizia-me sempre “ tens de aprender a fazer alguma coisa para quando cresceres trabalhares muito e sustentares uma família”, como aquela parte do trabalhar muito não me agradava, então resolvi não crescer.

    Raquel riu-se tanto até lhe chegarem as lágrimas aos olhos e lhe doer a barriga.

    Diana reparou num dos homens que se mantinha quieto numa mesa a um canto com o rosto moreno e cheio, uns óculos demasiados grandes e antiquados, vestia uma suera cinzenta que lhe ficava demasiado justa na barriga proeminente.

- Então Manuel! Passa-se alguma coisa? – Diana sentou-se na mesa dele a comer a tosta mista.
- Olha pequena, diz-me cá uma coisa… Conheces alguém da família da tua mãe? – Diana nunca havia pensado numa família para além do irmão e do pai. Sentiu de repente um vazio na sua história, na sua personalidade. Não sabia sequer o nome dos avós maternos.
- Não conheço ninguém. Devem já ter morrido…

    O café silenciou-se. Todos pararam a olhar para Diana. Podia-se ler naqueles olhos experientes e cansados uma incredulidade impossível.

- Tu não sabes quem é o teu avô materno? – desta vez era Paulo que a abordava sentando-se na mesa ao lado da rapariga enquanto lhe entalava suavemente a mão pequena no meio das suas acariciando-a como se a preparasse para algo menos bom. Guida colocou-se atrás do marido com a mão pousada no ombro deste num gesto que demonstrava incentivo para que fosse ele a conduzir aquela conversa.
- Eu acho que deves saber algumas coisas sobre a família da tua mãe, mas deves ser forte, porque o que te vou contar não te vai mostrar uma família feliz e que está aberta para te receber… Juro que estávamos convencidos que sabias Diana, por isso é que nunca falámos disto contigo… Pensámos que…
- Diz lá o que queres dizer Paulo que eu estou a ficar aflita. – Diana sentia aquela ansiedade doentia da espera. Sentia a garganta seca, as mãos tremiam-lhe e transpirava como se estivesse num estado febril…
- O teu avô, o pai da tua mãe era um homem bastante abastado, cheio de dinheiro que virou as costas à tua mãe quando ela casou com o Zé dos copos. Nunca foi capaz de esticar a mão à filha quando a viu passar por tantas dificuldades na vida. Convenceu-se que o teu pai era um oportunista que queria apenas o dinheiro dele. Não estava totalmente enganado, mas também não estava completamente certo. O teu pai é o traste que toda a ilha sabe, mas de dinheiro só quer o que lhe chegue para a bebida.
- Afinal quem é esse homem abastado? – perguntou Diana numa calma aparente. Não foi capaz de chamar avô a essa personagem que começava a odiar.

    Desta vez foi Guida que lhe deu a resposta. Colocou-se de cócoras em frente àquela rapariga meio selvagem afagou-lhe o cabelo queimado pelo sol, encaixou aquele rosto moreno entre as suas mãos e fixou-lhe aqueles olhos verdes opacos e inexpressivos.

- O teu avô era o Pereira do talho. – Guida sentiu as lágrimas de Diana escorrerem-lhe pelas mãos. – Ele morreu ontem à noite. Dizem que teve um ataque de coração.
- Olha Diana, nós só te estamos a dizer isto porque achamos que tu e o teu irmão devem saber que o vosso avô morreu. – José Gaitinha tinha perdido o sorriso maroto, o olhar estava triste e a voz tremia-lhe enquanto falava.
- Perdoem-me a frieza, mas eu acho que te deves impor Diana, e este é o momento para isso… Pensei que soubesses, que esse distanciamento da família da tua mãe fosse consciente, mas nem te deram opção de escolha… São uns porcos esganados é isso que são… - Manuel sentia um lume, uma chama que lhe crescia dentro do peito na mesma medida em que tomava consciência do tamanho da injustiça.

- Tem calma Manuel… A rapariga acabou de saber que tinha um avô. – Mário tentava pôr água na fervura.

- Um traste… Um avarento… Um homem que podia ter ajudado os netos, que os podia ter tirado da miséria. Esta pequena foi criada pelas freiras até aos doze anos sem ter ninguém que lhe deitasse a mão, sujeita à caridade das freiras e ao amor do irmão… - Manuel sentia uma fúria que se demonstrava na vermelhidão das bochechas.

    Diana levantou-se bruscamente, pegou na mochila e saiu porta fora. Correu no máximo que as suas pernas permitiam guiada pela intuição já que os olhos estavam baços. As lágrimas soltaram-se numa corrente e o coração batia apressado batendo o ritmo da sua passada. Diana atravessou a cidade em menos de 15 minutos, entrou pela oficina dentro do irmão sem pedir licença e dirigiu-se a ele como uma voz acusadora.

 - Sabias disto tudo?... Diz-me que não sabias, Pedro… Diz-me que não fazias ideia de quem era o nosso… - incapaz de pronunciar a palavra avô, alongou o discurso – o pai da nossa mãe…

    Pedro não respondeu. Limitou-se a puxar a irmã para si e abraçou-a. Diana sentiu o cheiro a graxa que lhe era tão familiar e acalmou-se naquele peito demasiado conhecido. Passaram-se vários minutos sem que nenhum dos dois se atrevesse a falar.

- Vamos sair daqui. – decidiu Pedro.

    Saltaram ambos para a velha Zundap. Saíram da rua estreita em direcção à avenida marginal, subiram o morro da Espalamaca e pararam no miradouro da Santa como era conhecido, devido a uma imagem enorme de Maria cujos olhos se depositavam de uma forma protectora sobre a cidade que se alongava a seus pés naquela paisagem magnífica, como se de um presépio se tratasse.

- Eu não te disse, porque essa gente não nos é nada. Eles nunca olharam para nós como seres do mesmo sangue. Não nos têm como familiares. – Diana sabia que aquelas palavras eram sinceras. Ela não podia criticar a atitude do irmão. Ele sempre fez tudo para protegê-la. A sua vida girou à volta da felicidade da irmã. Era injusto culpá-lo daquele segredo.
- Sabes que ele morreu ontem? – perguntou Diana
- Ouvi dizer…
- Então temos tios, não é assim?
- Pois… O Sr. Pereira tinha mais um filho e uma filha para além da nossa mãe. Trata-se da D. Olinda e do Sr. Nuno que trabalham no talho. Deves saber quem são.
- Claro que sei… - depois de mais um momento de reflexão Diana perguntou sem ter muita esperança na resposta – eles sabem que têm sobrinhos?
- Sabem… Mas não querem saber…
- Que crueldade, Pedro…Ver uma irmã a morrer, a precisar de ajuda e não estender uma mão… Essa gente merece um pouco de aflição nas suas vidas. – e era exactamente isso que Diana lhes ia dar. – Levas-me ao capítulo?